A primeira família de duas mulheres

As psicanalistas Michele Kamers e Carla Cumiotto conquistaram na Justiça o direito de registrar seus filhos gêmeos no nome de ambas

primeira nova familia

RETRATO DE FAMÍLIA De pé, Michele Kamers, de 31 anos, e Maria Clara. Sentados, Carla Cumiotto, de 38, e Joaquim Amandio. Eles posam diante de sua casa, em Blumenau, Santa Catarina, dias depois de receber autorização judicial para o registro dos gêmeos em nome das duas mulheres

Eliane Brum e Marcelo Min (fotos), de Blumenau (SC)

O primeiro foi Joaquim Amandio, com 2,8 quilos. Dois minutos depois chegou Maria Clara, só alguns gramas mais pesada. Michele estendeu a mão para Carla, deitada na mesa cirúrgica onde fez cesariana. Às 9h55 de 8 de fevereiro de 2007, as palavras faltaram. Com olhos castanhos boiando em lágrimas, Michele acolheu os bebês: “Filhos, a pami está aqui”. Sabia que reconheceriam sua voz porque havia contado a eles muitas histórias ao longo dos nove meses de gestação em que habitaram o ventre de Carla. A enfermeira olhou para Michele: “A Maria Clara é a sua cara”. Michele exultou. Até hoje conta essa história muitas e muitas vezes. Disparou então para o corredor do Hospital Santa Catarina, em Blumenau, gritando: “Meus filhos nasceram, meus filhos nasceram”. Na sala de espera, as pessoas a olhavam com susto. Afinal, como ela acabou de dar à luz e está gritando e correndo feito doida? Nascia ali uma nova família. Diferente, sem dúvida. Mas uma família.

Sem dúvida.

Um mês mais tarde, Carla e Michele anunciaram à escrivã do cartório de registro civil, em Blumenau: “Somos casadas, nossos filhos foram gerados por inseminação artificial e queremos registrá-los no nosso nome”. A mulher perguntou quem era o pai. Michele respondeu: “Eles não têm pai. Têm a mim”. A escrivã afirmou que só poderia registrar em nome da mãe biológica. “Nós vamos tentar na Justiça, então”, disse Carla. A escrivã retrucou: “Podem tentar, o máximo que vão conseguir é um não”.

Em 12 de dezembro de 2008, o juiz Cairo Roberto Rodrigues Madruga, da 8ª Vara de Família e Sucessões de Porto Alegre, disse “sim”. Em 14 de maio, foi determinada a alteração da certidão de nascimento dos gêmeos. Joaquim Amandio e Maria Clara Cumiotto Kamers são agora filhos de Carla Cumiotto e Michele Kamers e seus avós são Alcides e Clara Cumiotto e Jaime e Maria Kamers.

A sentença é histórica. Pela primeira vez é reconhecido na Justiça o direito de uma mulher, sem nenhum vínculo biológico com seus filhos, ocupar um lugar parental. A Justiça gaúcha, conhecida por decisões de vanguarda, reconheceu e legitimou um vínculo afetivo, amparado por uma história de amor de 11 anos entre duas mulheres, comprovada por vídeos, fotos, documentos e testemunhas. “Algumas pessoas pensam que os novos arranjos estão destruindo as famílias”, diz Michele. “Não é verdade. Eu não poderia adotar filhos que sempre foram meus, que nasceram não apenas do desejo da Carla, mas do meu também. Quem critica não pensa no direito dos meus filhos a ter meu nome, minha herança, o meu amparo legal. Lutamos tanto pelo reconhecimento desse vínculo justamente porque acreditamos na importância da família. Tanto que nos autorizamos a reinventá-la. Pode parecer paradoxal, mas somos tradicionais.”

Ao dar a notícia, a advogada Ana Rita do Nascimento Jerusalinsky desandou a chorar. “Essa sentença mostra que a família não morre nunca. Vai viver para sempre, se a sociedade não for preconceituosa”, afirma. “As novas famílias agregam novos membros, alguns que ainda não sabemos como nominar. É uma grande inclusão. E é esse processo social que está nos levando não ao fim, mas à revalorização da família.”
E como nasce uma família? A de Carla e Michele começou numa troca de olhares numa aula de história da psicologia, nocampus do pequeno município de Biguaçu, da Universidade do Vale do Itajaí, em Santa Catarina. Michele, 19 anos, era a aluna. Carla, 27, a professora. Ao ver Carla metida em um vestido justo, verde-claro, de um ombro só, as unhas vermelhas, Michele achou que ela era linda. Carla sentiu, como sente até hoje, 11 anos depois, “como se fosse um homem me tirando a roupa com o olhar”.

Quem eram elas até aqui? Michele é filha de comerciantes bem-sucedidos de Florianópolis, descendentes de alemães. Única menina dos três filhos, “era mais menino que os meninos”. Eram garotas os objetos de seus amores de infância. Mas sofria na escola quando a chamavam de “machorra”. Aos 11 anos, tentou resolver a questão da identidade sexual com uma mudança radical. Michele assumiu o estereótipo da garota feminina. Tornou-se modelo. Tão profundamente que sofreu de anorexia e bulimia até os 17 anos. As fotos do book mostram uma loira muito magra, de cabelos longos, encaracolados, olhar profundo. Michele debutou, namorou muitos garotos, foi capa de jornal.

Num evento, ao pegar uma bebida, outra modelo a beijou na boca. Michele descobriu que adorava. Passou a namorar garotos e garotas, sem nada esconder da família. Aos 18 anos, conseguiu conciliar pela primeira vez a mulher que era à posição masculina com que se identificava. Matriculou-se num colégio de padres, tornou- -se ótima aluna e ingressou na psicologia. Quando perfurou Carla com seu olhar na aula da faculdade, era uma mulher bonita, bem cuidada, mas dotada de uma postura e um magnetismo inscritos nas referências culturais como masculinos.

Carla era a caçula de uma numerosa família de imigrantes italianos de Santa Rosa, interior do Rio Grande do Sul. Loira de olhos azuis e traços delicados, sua feminilidade não era apontada numa família de homens com sexualidade explícita. A Carla era destinado o lugar de “intelectual”. Não era feita para namorar, mas para cuidar dos livros. Mesmo assim, namorou por três anos um colega de psicologia. E depois, quando terminou, teve muitos casos de uma noite só. A Carla nunca havia aparecido a possibilidade de amar outra mulher.

Quando Michele, dona de um olhar mais masculino que muitos homens, a encarou, Carla sentiu-se atraída e confusa. Numa noite, as duas encontraram-se num bar e, quando o bar fechou, transferiram-se para um café. Discutiam algo só verossímil no encontro de uma psicanalista e de uma estudante de psicologia: o que sentiam era “querer ou desejo”?

De repente, Carla perguntou: “Para você, é querer ou desejo?”. Michele respondeu bem rápido: “Desejo”. E já pegou a chave do carro e um par de balas de manga. Quando Carla aceitou a bala, ela veio junto com o primeiro beijo. Passaram a noite dentro do carro, na Praia de Jurerê, em Florianópolis. Até hoje guardam o papel da bala e uma foto das roupas do primeiro encontro.

Carla passou alguns anos tentando entender esse amor tão surpreendente em sua trajetória de vida. A liberação erótica só veio no dia em que ela, muito tímida, sussurrou a Michele: “Eu gosto quando você usa camisa”. Funcionou como uma espécie de senha não só para as fantasias sexuais, como para a libertação das palavras usadas na intimidade. “Até hoje eu continuo gostando de homens, olhando para homens. Só olho para as botas ou os cintos das mulheres, não para elas”, diz Carla. “Descobri que gosto de homens masculinos, de mulheres masculinas. Não conseguiria beijar ou transar com um homem feminino ou uma mulher feminina. Por isso, não consigo me apresentar como homossexual. Não por preconceito, mas porque não me interesso por iguais. Pelo contrário, o que me atrai é a diferença de posição, seja em homens ou mulheres.”

Carla e Michele escolheram a cidade de Blumenau para morar. A princípio, uma cidade com fama de conservadora, povoada por descendentes de alemães, poderia parecer uma má escolha. Mas, depois de alguns risos nervosos nos primeiros tempos, as duas tornaram-se respeitadas na comunidade como psicanalistas e professoras universitárias, autoridades em sua área.

Quando o pai de Carla adoeceu, cuidaram juntas dele até quase a morte. Michele, porém, tinha uma queixa. Enquanto participavam com desenvoltura da vida na família de Michele, como casal, a de Carla ignorava a relação. No enterro, a família agradeceu a todos os que ajudaram a cuidar dele na doença, não sobrou nenhuma palavra para Michele. Ela então exigiu ser assumida. Carla não se sentia capaz desse ato, confusa com a novidade do que sentia. Antes de se separar, Michele lhe entregou uma rosa vermelha e dois cálices de champanhe: “Se nunca te casares, saiba que um dia alguém te pediu em casamento”.

Carla namorou “um homem bacana, numa relação muito interessante”. Michele teve casos com várias mulheres, alguns deles ao mesmo tempo. Um dia Carla descobriu que, mesmo vivendo uma relação com um homem que valia a pena, ela gostava mesmo era de Michele. “Acho isso muito importante, bonito”, diz. “Eu escolhi a Michele.”

CENAS DO COTIDIANO  Os gêmeos têm uma rotina de crianças amadas e pais presentes. Na primeira foto, Michele dá café aos filhos; na segunda, Carla brinca com Joaquim na pracinha; na terceira, Michele deixa os bebês na escola. E, na quarta, ambas dão banho e preparam as crianças para dormir

CENAS DO COTIDIANO
Os gêmeos têm uma rotina de crianças amadas e pais presentes. Na primeira foto, Michele dá café aos filhos; na segunda, Carla brinca com Joaquim na pracinha; na terceira, Michele deixa os bebês na escola. E, na quarta, ambas dão banho e preparam as crianças para dormir

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Depois de vários drinques num bar com uma amiga, decidiu ir até o apartamento de Michele. Ela estava de pijama, no carro, espiando diante da porta do bar. Recomeçaram. Carla procurou cada parente para contar sua escolha. Mãe, irmãos, sobrinhos. Dessa vez, foi Carla que assustou Michele. Ela queria casar. “Para mim, casar era morar junto”, diz Michele. “A gente não teria documento, nenhum papel. Eu queria um ritual”, diz Carla. “Queria tornar público para nossas famílias e amigos, para a comunidade.” Michele debateu-se ao longo de muitas sessões de análise. “Sabíamos que não podíamos ser duas noivinhas. E era eu, claro, que ocuparia a posição de noivo. E noivo usa smoking. Ficava pensando: ‘Será que só eu sou a homossexual’?”. Decidiu mandar fazer um conjunto de calça e casaco, que usou com camisa branca, colar, brincos e maquiagem. Carla encomendou um vestido de noiva a rigor. “Por que eu não poderia me vestir de noiva?”, diz. “Eu me sentia noiva. A Michele não seria minha mulher, mas meu marido.” A casa que compraram juntas, num bucólico bairro de classe média de Blumenau, foi decorada com todos os elementos que testemunhavam sua história: pétalas de rosas vermelhas, grãos de café, velas, mapas das regiões de onde vieram os antepassados, as árvores genealógicas das duas famílias, fotografias, cartas e bilhetes do romance. Michele esperou Carla na porta. E um amigo celebrou o casamento, numa cerimônia em que contou a trajetória daquele amor. No altar, as duas choravam. Era 3 de setembro de 2004.

“Acreditamos tanto na importância da família que
nos autorizamos a reinventá-la. Somos tradicionais”
MICHELE KAMERS

“Não me vejo como homossexual. Sou uma mulher
feminina, atraída por homens e mulheres masculinos”
CARLA CUMIOTTO

Em 2005, Carla começou a esboçar um comportamento estranho até para si mesma. Na conversa com uma amiga, trocou a palavra “psiquiatra” por “pediatra”. Depois, ao falar de um bar, em vez do nome “Tip-Tim, disse “tip-top”. Um dia, surpreendeu-se no centro da cidade espiando vitrines de lojas de roupas de bebê. Por fim, começou a sonhar com bebês. E, um dia, quando atravessavam uma ponte, anunciou, sem preliminares: “Michele, acho que quero ter filhos”. O carro quase despencou lá de cima.
Nos dois anos seguintes, as duas discutiram possibilidades e riscos. “Comecei a desejar o desejo dela de ter filhos”, diz Michele. “E um dia tornou-se meu desejo. Mas queríamos ter a tranquilidade de saber que nosso filho ou filha ficariam bem.” Para Michele, havia uma questão crucial. Como seus filhos a chamariam? Nunca houve nenhuma dúvida, na vida e no casamento, de que ela ocupava a posição masculina. “Era claro para mim que eu teria a função paterna na vida do bebê, mas ele não poderia me chamar de pai”, diz. “Era preciso criar outro nome para uma mulher que ocupa a função paterna. Mas qual?”

Muitas sessões de análise depois, Michele chegou à palavra “pami”. Um nome que, mais tarde, entendeu como a união de “pai” e da primeira sílaba de “Michele”, mas também o masculino de uma palavra popular na vida das crianças: “mami”. Na saída do consultório, ligou para Carla. “Encontrei um nome!” Carla respondeu na hora: “Gostei”. A partir da nomeação, a decisão de ter filhos ganhou serenidade. Depois de conversar com o primeiro especialista, em Porto Alegre, compraram na viagem de volta o primeiro presente do bebê. Um Fusca se fosse menino, um dado para a menina – “já que as bonecas ali eram muito feias”.

Ao receber o catálogo, por e-mail, das opções disponíveis no banco de esperma, em São Paulo, optaram por um doador de ascendência alemã, italiana ou portuguesa, para ser parecido com elas, e de olhos castanhos, como os de Michele. Na primeira inseminação, o médico, um especialista renomado, foi taxativo: “Não sei para que tanta emoção se as chances são só de 20%”. Logo depois Carla menstruou, e elas passaram dois dias com a sensação de que alguém tinha morrido. Tentaram de novo. Dessa vez, o médico, um assistente, foi caloroso. “Vai dar certo!” Deixou que Michele fizesse a inseminação. Há fotos com o registro de cada passo. Para elas, era tudo romance. Carla engravidou. E Michele até hoje se vangloria da “pontaria”.

No segundo mês de gestação, ao acompanhar a ultrassonografia, Michele apontou: “Olha só, há outro pontinho preto aqui”. Foi assim que descobriram que teriam gêmeos. Michele adorou. Carla ficou assustada. Aos quatro meses, outra ultrassonografia revelou que os gêmeos eram um casal. Carla relaxou. Já tinham até nomes. Maria Clara era a soma dos nomes das avós: Maria, mãe de Michele, e Clara, mãe de Carla. Joaquim Amandio, dos patriarcas das duas famílias: Joaquim, “nonno” de Carla, e Amandio, avô de Michele. O casal teve o cuidado de inscrever os filhos na linhagem das duas famílias. Eles chegariam ao mundo amparados pela tradição. Pelas paredes da casa, muitas fotos de Joaquim, Amandio, Maria e Clara. Assim como de Joaquim Amandio e de Maria Clara.

Os dois anos de preparação foram decisivos para organizar com amor e inteligência a chegada de crianças que viveriam num arranjo familiar marcado pela diferença. E também para cometer aqueles absurdos dignos de pais que se prezem. Decidiram que Maria Clara seria escritora e Joaquim Amandio aviador. “Loucura, né?”, dizem hoje, rindo muito. Loucura ou não, Joaquim Amandio ganhou um kit aviação. Mas parece ter mais vocação para caminhoneiro, já que não larga seu caminhão cegonheiro por nada.
Carla logo se tornou uma grávida clássica. Com deslocamento de placenta no início da gestação, encolheu o ritmo de trabalho. E sentiu-se uma rainha, mas uma rainha carente. “Você não me olha, não me vê, está sempre trabalhando”, dizia, mal Michele assomava na porta. Se ela se atrasava cinco minutos para chegar da universidade, Carla sentia-se abandonada. Michele então se dedicou a uma ampla reforma do quarto do casal e dos bebês. Iniciar uma reforma, sempre que algo importante está em curso, tornou-se uma marca de Michele.

Quando os gêmeos nasceram, foram tantas as flores que Michele precisou fazer três viagens de carro entre o hospital e a casa para trazê-las. “Eles foram muito bem recebidos”, diz. O primeiro ano foi duro. Carla teve licença-maternidade, Michele nenhuma. “Passava a noite levando os bebês para mamar e depois tinha de acordar às 7 horas para ir à universidade.” É dela o papel de impor limites. Botou horário nas mamadas e aguentou a choradeira, proibindo Carla de chegar perto do quarto para acudir os filhos. Os gêmeos começaram chamando-a de “a pai”. Depois, “a papai”, em seguida “pã”. E, por fim, “pami”. “Quem é o pai da Maria Clara e do Joaquim Amandio?”, perguntou uma coleguinha de escola. “Você tem pai, eles têm pami”, é a resposta. “Eles são filhos seus ou dela?”, indagou um sobrinho na primeira festa de família. “De nós duas”, disse Carla. “Ah, que legal, assim cada uma pode cuidar de um.” Carla e Michele descobriram que as crianças sempre acham uma boa saída. “Que nojo, beijar uma mulher na boca”, disse uma menina na pracinha. “É mesmo, quando elas não se amam, deve ser bem nojento”, retrucou Carla. “Mas, quando se amam, é bonito.” Um garotinho que circulava por perto falou: “Meu pai namora um homem”.

Nem Carla nem Michele vivem em guetos gays. “Nunca me identifiquei como homossexual. Frequentei pouco bares gays. Porque, ao se apresentar como homossexual, me parece que a identidade é reduzida à escolha sexual. Entendo que, na vida, somos homens ou mulheres e, a partir de marcas infantis e dos bons encontros, cada um vai se referenciando a partir do feminino e do masculino”, diz Michele. “Enquanto um casal tem uma relação homoafetiva, homoerótica e quer viver em guetos, problema dele. Mas, a partir do momento em que um casal tem filhos, acho delicado uma criança ser apresentada ao mundo num gueto. Porque todo gueto, e não só o gueto homossexual, visa excluir a diferença. É o confronto com a diversidade, com outras famílias, outras classes sociais, outras experiências, que aumenta as possibilidades, faz com que cada um seja capaz de inventar uma vida melhor. Nas ocasiões em que tentaram eliminar as diferenças, determinar que só existia uma forma de viver, foi muito triste, como no nazismo e no fascismo.”

Michele espera que “pami”, seu nome para os
filhos, vire uma nova palavra inscrita na língua

A pré-escola das crianças foi escolhida por dar prioridade à brincadeira. “Não queremos nossos filhos no computador ou aprendendo inglês, para isso vão ter muito tempo depois”, diz Carla. Quando as crianças fizeram sua estreia para além dos limites da casa da família, Michele e Carla enviaram uma carta à diretora e aos professores. Nela, contavam suas expectativas, sua história de vida e os hábitos dos filhos. A carta é um testemunho de pais amorosos tentando preparar o mundo para os filhos, até que tenham tamanho e maturidade para se defender sozinhos. Num dos itens, denominado “o mito da origem”, escrevem: “Toda criança investiga, lá pelas tantas, de onde eu venho e por que os pais me tiveram. Na verdade, elas querem saber da sexualidade dos pais (não da anatomia), assim como do desejo que as trouxe ao mundo. Isso é o que importa. Como queremos que a escola conte sobre isso para nossos filhos e para as outras crianças, gostaríamos de situar uma pequena história: A mamãe e a pami (nome inventado pela Michele para se apresentar para os filhos) se amavam tanto que chegou uma hora da vida delas que elas quiseram ter filhos. E, como eram duas mulheres, precisavam de um médico que as ajudasse. Aí, elas viajaram para São Paulo e encontraram um médico que as ajudou a encontrar um homem que lhes doou uma sementinha para a vinda dos bebês. Um homem desconhecido, mas muito gentil. É importante que vocês situem que é um doador, e não um pai. Explicar que pai não vem da genética ou do sangue, mas do coração. Por isso, vocês podem explicar que, do mesmo modo que os amiguinhos têm pai e mãe, o Joaquim Amandio e a Maria Clara têm a pami e a mamãe”.

Carla e Michele escreveram uma carta aos professores
da escola para prepará-los para a chegada dos filhos

Na passagem do primeiro para o segundo ano de vida dos gêmeos, Carla e Michele tiveram a primeira crise depois do casamento. Carla reclamava que Michele só pensava no trabalho. Michele dizia que era “a mulher que devia ficar mais com as crianças”. “Imagina se eu casei com uma mulher para ouvir uma coisa machista como essa”, diz Carla.

Hoje, as duas dedicam-se a superar o impasse vivido pela maioria dos casais a partir do primeiro filho: como um casal se transforma em família. “As pessoas acham que, como a gente teve tantas dificuldades para se firmar como casal, não poderia ter crise”, diz Michele. “Temos crises como todo mundo. Nossa questão, no segundo ano, foi como voltar a namorar. Além disso, tenho muitos planos, como fazer meu doutorado na França. Não abri mão desse plano por causa dos bebês ou da Carla. Agora, virou um projeto da família, estamos pensando em morar um tempo na França. A questão aqui é como não perder a singularidade.”

Álbum de família
A história de Michele, Carla, Joaquim Amandio e Maria Clara, contada em imagens

MOSAICO As fotos narram a trajetória de Michele Kamers (à esq. na foto maior, nas fotos de infância e de baile) e Carla Cumiotto, desde que eram crianças e adolescentes até se conhecer, casar-se e formar uma família

MOSAICO
As fotos narram a trajetória de Michele Kamers (à esq. na foto maior, nas fotos de infância e de baile) e Carla Cumiotto, desde que eram crianças e adolescentes até se conhecer, casar-se e formar uma família

Carla e Michele compartilham o pacto de manter o desejo erótico entre elas. “Nosso casamento começou com erotismo. E a gente não larga mão disso”, diz Carla. “Muita gente, depois de ter filhos, deixa de ser homem e mulher, mas achamos que esse é um preço muito alto. Então estamos reinventando nosso casamento.”

A família vive numa casa ampla e antiga, numa rua sem saída que parece feita para criar filhos. No fim do calçamento há uma mata nativa, onde “pami” faz barquinhos de papel para os gêmeos atirarem no rio. Na outra ponta, há uma pracinha. As crianças brincam pelas calçadas com os filhos dos vizinhos. Lá, são conhecidas como “Mano” e “Mana”. Os consultórios das duas estão instalados na parte frontal da casa, o que torna a vida mais fácil e mais próxima das crianças. Há ainda dois membros completando o clã: os cachorros Sofia, um maltês, e Smeagol, um pincher.

Até o início de maio, Carla e Michele não pensavam em divulgar sua vitória na Justiça. A decisão de expor sua trajetória foi tomada depois que a Justiça negou a um casal de mulheres de Carapicuíba, em São Paulo, a tutela antecipada de seus filhos, uma história revelada pela reportagem de ÉPOCA. Nesse caso, os óvulos de Munira Khalil El Ourra foram implantados no útero de sua companheira, Adriana Tito Maciel, gerando gêmeos. Com a negativa, Carla e Michele entenderam que tinham uma responsabilidade “ética e social”. “Se a gente ficasse quietinha, estaríamos fazendo coro à sociedade do narcisismo. Tipo: eu consegui o meu, os outros que se virem”, diz Michele. “Tornar público é uma tentativa de inscrever essa possibilidade no tecido social. Em nenhum momento a gente fez apologia, como se nosso arranjo fosse uma solução ou nossa família fosse melhor que as outras. Cada um faz seu arranjo para se tornar uma família interessante.”

DE VOLTA PARA CASA Michele (à esq.) e Carla retornam depois de passar a manhã brincando com os filhos na pracinha, jogando barquinhos de papel no rio e divertindo-se pela vizinhança da rua onde vivem, em Blumenau, Santa Catarina

DE VOLTA PARA CASA
Michele (à esq.) e Carla retornam depois de passar a manhã brincando com os filhos na pracinha, jogando barquinhos de papel no rio e divertindo-se pela vizinhança da rua onde vivem, em Blumenau, Santa Catarina

Carla e Michele não perderam nenhum paciente devido à exposição, como era o temor de alguns familiares. A reação de pacientes e alunos é de “admiração pela coragem”. “A gente tem uma posição confortável e uma sustentabilidade para dar esse passo sem sofrer com a reação pública”, diz Carla. “As pessoas podem até falar dentro de suas casas, mas não dizem nada para nós. Conseguimos lidar com tranquilidade também porque estamos representadas a partir de diversos referenciais, para além da escolha sexual.” Elas se esforçam para não deixar nada sem dizer. “Enquanto a sociedade pede para esconder, nós fizemos questão de deixar tudo transparente”, diz Carla. Quando são apresentadas a alguém, sempre contam que são casadas e tiveram dois filhos por inseminação artificial. Carla chama Michele de “companheira” ou “marido”. Michele chama Carla de “mulher” ou “princesa”. Ambas se chamam de “amor”. “A gente não acha feio, por isso podemos expor”, diz Michele. “Espero que as pessoas possam mudar um pouco o olhar sobre o que é uma família. Estamos pautadas pelas mesmas leis de toda família, funcionamos a partir dos mesmos códigos. Não estamos fora. Eu tive de inventar um nome, e não é um nome fora da cultura, porque existe um ‘mami’, inventado pelas crianças. Espero que o ‘pami’ possa se inscrever também na cultura, como uma nova palavra, significando coisas diversas para cada um. Tenho muito orgulho da nossa família.”

A história de Joaquim Amandio e Maria Clara está documentada desde o primeiro Kamers e o primeiro Cumiotto que chegaram ao Brasil. Os retratos antigos dividem as paredes da casa com as fotografias que contam o romance de seus pais e seus dois primeiros anos de vida. Michele é quem registra a história dessa nova família. São dezenas de DVDs, centenas de fotos. Até o dia da audiência com o juiz está gravado.
Os gêmeos acordam cedo e pulam dos berços para a cama de “mami” e “pami”. Depois que todo mundo se enrosca um pouco, vão para a mesa do café, quando comem de forma surpreendente para o tamanho. E de tudo um pouco. Depois vão para a rua brincar. À tarde, na escola, Joaquim é conhecido como “conversador” e Maria Clara como “carinhosa”. Michele, Carla ou ambas vão buscá-los. Depois do banho e da mamadeira, as duas se deitam numa joaninha gigante, de pelúcia, até que cada um durma em seu respectivo berço.

No primeiro Dia dos Pais de suas vidas, a escola fez um cartaz com fotografias. Lá está “pami” em duas fotos: uma com Joaquim Amandio, a outra com Maria Clara. Não é a única mulher. Há outras que ficaram viúvas ou cujo marido se tornou ausente – e que tiveram de assumir também a função paterna para os filhos.

A história da família Cumiotto Kamers, não fosse ter duas mulheres à frente, é bem tradicional. Carla e Michele trazem novas nuances à questão. Uma delas é: por que elas não poderiam ser tradicionais? Ou, posto de outra forma, por que, pelo fato de formarem um casal de mulheres, seria imperativo que todas as decisões e arranjos fossem de vanguarda? Se assim fosse, talvez elas não tivessem se empenhado tanto para que sua família fosse reconhecida.

Na volta da escola, a família tem sua brincadeira particular: “Quem é o príncipe do castelo da ‘pami’?”, pergunta Michele. Joaquim responde: “O Mano!”. “Quem é a princesa do castelo da ‘pami’?” Maria Clara diz:“A Mana”. “Quem é a rainha do castelo da ‘pami’?” Carla e os gêmeos afirmam: “A mamãe”. “E quem é a dona do castelo?” Todos gritam, felizes: “A ‘pami’!”.

(Publicado na Revista Época em 29/09/2009)

Sérgio Vaz, o poeta que agita vida cultural da periferia de São Paulo

Ele é invocado, teimoso e original. Conheça o escritor que criou a Cooperifa, fenômeno que tem levado intelectuais e classe média à periferia

COLECIONADOR DE PEDRAS O poeta Sérgio Vaz tornou-se uma das vozes mais originais da periferia. Na foto, ele posa numa das “quebradas” da Zona Sul de São Paulo

COLECIONADOR DE PEDRAS
O poeta Sérgio Vaz tornou-se uma das vozes mais originais da periferia. Na foto, ele posa numa das “quebradas” da Zona Sul de São Paulo

O poeta Sérgio Vaz sofre de insônia. Por volta de 1 hora da madrugada, ele se aconchega à mulher, Sônia, e até dorme. Três horas depois, acorda com o coração em batida de rap no peito e as ideias falando alto, todas ao mesmo tempo na cabeça. Tem os olhos arregalados, as mãos não param quietas nem ele deitado. Ninguém, com exceção de Sônia, tem vontade de curar a vigília forçada de Sérgio Vaz. Por uma razão egoísta. A insônia desse homem entroncado, de personalidade marrenta e traços que parecem esculpidos por Mestre Vitalino – o célebre ceramista de Caruaru – tem despertado um Brasil que dorme mesmo quando acordado.

O dia começa pontualmente antes da hora na casa típica da periferia paulista, nos arredores de Taboão da Serra. Um portãozinho lá na frente e uma tripa de casas unidas por um corredor. A dele, onde vive com a mulher e a filha Mariana, de 16 anos, é a última. Na parede externa, Vaz mandou pintar uma praia com coqueiros no concreto para que pudesse pegar um sol nos churrascos de domingo. Com sua ironia afiada a cada madrugada, por uma mistura de amor e raiva, é na praia que ele recebe as visitas.

Quando acorda de supetão, antes de todos, mas com a sensação de estar atrasado para a aventura do mundo, Sérgio Vaz não come nada. Só engole um café com leite para não correr o risco de perder a insônia. Ele não come porque, a cada manhã, aos bocados e com todos os dentes, mastiga o biscoito fino do poeta modernista Oswald de Andrade (1890-1954). Como diz o historiador Eleilson Leite, um dos maiores conhecedores da cultura de periferia, Vaz faz ainda um pouco mais do que o escritor antropofágico sonhou: ele próprio se tornou “o biscoito fino que veio da massa”.

“As pedras não falam, mas quebram vidraças”
SÉRGIO VAZ, poeta da periferia

O mais recente produto da falta de sono de Sérgio Vaz estreou na úlitma segunda-feira: o “Cinema na Laje”. Tempos atrás ele acordara com esta inquietação: “Por que na periferia não tem cinema?”. E, já no sofá da sala, concluiu: “Se não nos deram cinema, vamos criar um. De graça”. Na estreia, reuniu mais de cem pessoas, algumas num cinema pela primeira vez aos 42 anos de vida, como a faxineira Rosilda de Souza. O público comia pipoca, mas também algo um pouco mais substancioso: jabá com mandioca, costela de porco com angu. A caráter, paramentado de vermelho e dourado, o pedreiro Piauí virou lanterninha. Ali, eram todos ao mesmo tempo plateia e protagonistas. O filme de estreia era um documentário sobre a Cooperifa, o produto mais espetacular da insônia de Sérgio Vaz. Ou, como ele diz: “O filme de ação mais romântico da breve história da nossa humanidade comunitária”.

Dizer que Sérgio Vaz criou o maior sarau de poesias do Brasil não dimensiona o significado da Cooperifa. A cada quarta-feira, nos últimos sete anos, centenas de pessoas vindas de todos os cantos da periferia paulista recitam e ouvem poesia num boteco de quebrada. Office boys, taxistas, funileiros, sorveteiros, empregadas domésticas, eles pegam o microfone e tomam conta da literatura, que nunca tinha sido deles até então. “Trabalho a vida toda com poesia e nunca vi uma plateia reagir assim”, diz a crítica literária Heloisa Buarque de Hollanda. “Sérgio Vaz e a Cooperifa democratizaram o uso da palavra, numa operação política brilhante.”

Vaz começou tomando uma fábrica interditada, em 2001, para fazer uma mostra cultural. Depois, vagou por muitos botecos, até instalar-se no bar do Zé Batidão, na Piraporinha, Zona Sul de São Paulo. O bar é passado e futuro para Vaz. Foi lá que ele trabalhou dos 12 aos 22 anos, no balcão, quando o dono era o pai. Um patrão implacável, mas também grande leitor, o pai ao mesmo tempo oprimiu e inspirou. Enquanto os meninos perseguiam na várzea o sonho que também era dele, Vaz escrevia furiosamente em papel de pão. Ao conhecer mais personagens reais do que qualquer escritor sonharia, o palmeirense acabou virando poeta. “Eu queria estar jogando futebol. Para me libertar, lia e escrevia muito”, diz. “Com Os miseráveis, de Victor Hugo, descobri que não existia só a miséria material, mas a humana, a que atinge todas as classes sociais. Foi uma grande descoberta.”

Quando o sarau de poesias ficou sem lugar, Vaz procurou o novo dono de sua antiga “senzala”. Zé Batidão é um mineiro com olhos que tudo veem, fala mansa. Quando alguém acha que o Zé está indo, ele já foi e voltou meia dúzia de vezes. Tornou-se “o mecenas da Cooperifa”. Até biblioteca criou, entrincheirada dentro do bar. Sobre a estante, os troféus de seu time, o Sete Velas Caveirão, ofuscam os clássicos.

De volta ao cenário da adolescência, Vaz inventou um “quilombo moderno”. Não só libertou a si mesmo, como arrancou os grilhões históricos que impediam a periferia de alcançar a palavra escrita. “A periferia não tem museu, não tem teatro, não tem cinema. Mas tem boteco”, diz. “Então transformamos o bar do Zé Batidão em centro cultural.”

(Publicado na Revista Época em 06/03/2009)

Os novos antropófagos

Artistas da periferia de São Paulo lançam sua própria Semana de Arte Moderna

Eliane Brum (texto) e Frederic Jean (fotos)

Manifesto da Antropofagia Periférica

A Periferia nos une pelo amor, pela dor e pela cor. Dos becos e vielas há de vir a voz que grita contra o silêncio que nos pune. Eis que surge das ladeiras um povo lindo e inteligente galopando contra o passado. A favor de um futuro limpo, para todos os brasileiros.
A favor de um subúrbio que clama por arte e cultura, e universidade para a diversidade. Agogôs e tamborins acompanhados de violinos, só depois da aula.
Contra a arte patrocinada pelos que corrompem a liberdade de opção. Contra a arte fabricada para destruir o senso crítico, a emoção e a sensibilidade que nasce da múltipla escolha.
A Arte que liberta não pode vir da mão que escraviza.
A favor do batuque da cozinha que nasce na cozinha e sinhá não quer. Da poesia periférica que brota na porta do bar.
Do teatro que não vem do “ter ou não ter…”. Do cinema real que transmite ilusão.
Das Artes Plásticas, que, de concreto, querem substituir os barracos de madeira.
Da Dança que desafoga no lago dos cisnes.
Da Música que não embala os adormecidos.
Da Literatura das ruas despertando nas calçadas.
A Periferia unida, no centro de todas as coisas.
Contra o racismo, a intolerância e as injustiças sociais das quais a arte vigente não fala.
Contra o artista surdo-mudo e a letra que não fala.
É preciso sugar da arte um novo tipo de artista: o artista-cidadão. Aquele que na sua arte não revoluciona o mundo, mas também não compactua com a mediocridade que imbeciliza um povo desprovido de oportunidades. Um artista a serviço da comunidade, do país. Que, armado da verdade, por si só exercita a revolução.
Contra a arte domingueira que defeca em nossa sala e nos hipnotiza no colo da poltrona.
Contra a barbárie que é a falta de bibliotecas, cinemas, museus, teatros e espaços para o acesso à produção cultural.
Contra reis e rainhas do castelo globalizado e quadril avantajado.
Contra o capital que ignora o interior a favor do exterior. Miami pra eles? “Me ame pra nós!”.
Contra os carrascos e as vítimas do sistema.
Contra os covardes e eruditos de aquário.
Contra o artista serviçal escravo da vaidade.
Contra os vampiros das verbas públicas e arte privada.
A Arte que liberta não pode vir da mão que escraviza.
Por uma Periferia que nos une pelo amor, pela dor e pela cor.

É TUDO NOSSO!
Sérgio Vaz
Poeta da Periferia

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ARTISTAS DE DOIS MUNDOS Na foto, Sérgio Vaz e a comissão organizadora da Semana de Arte Moderna da Periferia, no boteco do Zé Batidão, na zona sul de São Paulo.

ARTISTAS DE DOIS MUNDOS
Na foto, Sérgio Vaz e a comissão organizadora da Semana de Arte Moderna da Periferia, no boteco do Zé Batidão, na zona sul de São Paulo.

O escritor Oswald de Andrade, um dos líderes da Semana de Arte Moderna de 1922, fez uma profecia: “a massa ainda comerá do biscoito fino que fabrico”. Morreu sem vê-la realizada. Oitenta e cinco anos depois do marco do movimento modernista, Sérgio Vaz, poeta da periferia de São Paulo, pretende comer o biscoito fino, o próprio Oswald, o Bispo Sardinha, a “elite que viaja para Miami” e mais alguma coisa. E depois, diz ele, “vomitar”. Líder da Cooperifa, o maior sarau de poesia do Brasil, Vaz é o idealizador da Semana de Arte Moderna da Periferia, a Semana de 2007. De 4 a 11 de novembro, os artistas querem “provocar” o centro onde o destino do país é forjado – e onde também se determina o que é arte. Se fosse vivo, o modernista Oswald possivelmente teria um sorriso nos lábios ao ser devorado pelos antropófagos das margens de São Paulo.

A força da Semana de 2007 vem da primeira geração de escritores da periferia, forjada à margem da escola, na legião dos sem-museu, sem-cinema, sem-teatro, sem-biblioteca. Pela primeira vez, o Brasil tem não um, nem dois autores, mas um movimento literário nascido nas margens. Seus protagonistas se identificam pela origem, marcam essa diferença e buscam uma estética fundada nessa raiz. Eles se apropriaram de um código da elite – a palavra escrita – e começaram a escrever sua versão da História. Agora, preparam-se para sacudir o marasmo cultural de um país que viu muito pouco de original desde o tropicalismo dos anos 60.

“Antes eram os intelectuais que escreviam sobre a periferia. Hoje, alguns dizem que não sabemos escrever. Estamos chegando agora pra aprender, depois de 500 anos”, diz Sérgio Vaz, de 43 anos. “A arte sempre foi o pão do privilégio. Agora é servida no café-da-manhã da periferia. Com menos manteiga, talvez, mas arte. Nossa literatura tem menos esses, menos crases, mas é literatura. Agora que escrevemos sobre nós, o que os intelectuais vão fazer? Que comam brioches!”

quem e quem

1) Sérgio Vaz, 2) Jairo, 3) Sales, 4) Gunnar, 5) Wéley Noog, 6) Ademir, 7) Cocão, 8) Ana Bela, 9) Marcelo, 10) Mavortirc, 11) Juliana, 12) Robson Canto, 13) Casulo, 14) Preto Will, 15) Ricarda, 16) Rose Dorea, 17) Tadeu, 18) Euller, 19) Roberto, 20) Jair Guilherme, 21) Wagner Felipe, 22) Marcio Batista, 23) Lerói, 24) Anderson, 25) Vicente

Mais uma provocação. O antropófago da periferia vive na última de uma tripa de casas nos arredores de Taboão da Serra, na Grande São Paulo. Deixou uma carreira de auxiliar de escritório para ser poeta no Brasil. Vendeu 5 mil livros de poesia sem editora e sem livraria, de mão em mão. Só o quinto – Colecionador de Pedras (Global) – chegou ao mercado. Em 2001, Vaz criou a Cooperativa Cultural da Periferia (Cooperifa) ao ocupar uma fábrica abandonada para fazer um evento de arte. Já estava tentado pela Semana de 1922.

O sarau da Cooperifa passou de bar em bar até achar seu lugar no boteco do Zé Batidão, na zona sul de São Paulo. “Na periferia não tem museu, tem boteco”, diz Vaz. “Então transformamos o Zé Batidão em centro cultural.” Toda quarta-feira, três centenas de cidadãos periféricos ali desembarcam depois de um dia de trabalho duro para fazer e ouvir poesia. “Povo lindo! Povo inteligente! É tudo nosso!”, diz Vaz, abrindo a noite. E o boteco vem abaixo, a multidão se espalha pelas ruas. É tudo deles, sim.

A Semana de 2007 começou a nascer nessa esquina, pelas mãos ásperas de poetas sem berço. Seu primeiro ato será uma caminhada dos artistas pela periferia. Nada vai acontecer no centro. Quem quiser conhecer o que se passa nas bordas de São Paulo terá de inverter o tráfego. Os grupos Manicômicos (teatro), Arte na Periferia (cinema), Espírito de Zumbi e Umoja (dança) são alguns dos autoproclamados “focos de resistência” que tentam fincar sua estética em ruas onde antes só corria esgoto. “Escolhemos um símbolo da elite paulistana pra provocar. Vamos à casa grande mexer com eles”, diz Vaz. “Que seja o estopim.”

Imagem dos organizadores da Semana de Arte Moderna de 1922, no Hotel Terminus, no centro de São Paulo

Imagem dos organizadores da Semana de Arte Moderna de 1922, no Hotel Terminus, no centro de São Paulo

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RAIZ FORTE

O hip-hop está na raiz dessa árvore antropofágica. O movimento praticamente inventou a identidade periférica. Especialmente seu símbolo maior: os Racionais MCs e seu líder, Mano Brown. Capazes de vender milhões de CDs sem precisar nem de gravadoras nem de imprensa, eles provaram que é possível viver, fazer sucesso e sustentar a família fora do mercado. E sem sair da periferia.

Desde o fim dos anos 80, os “manos” e as “minas” passaram a proclamar: “Eu sou da periferia. Vocês são do centro, playboys”. Comportamento oposto ao dos pais, migrantes nordestinos que, de cabeça baixa, mentiam o endereço. O hip-hop dançou break sobre o mito da democracia racial. Agora havia “nós” – e havia “eles”. As diferenças – explícitas no cotidiano, mas não pronunciadas – estavam colocadas. E por quem, havia pouco tempo, só tinha voz quando cantava samba. Foi também a primeira vez que os ídolos não se mudaram da periferia como sempre fizeram os astros de futebol na primeira oportunidade.

O hip-hop mantém parte de sua força. Mas, neste início de milênio, uma figura nova assumiu a vanguarda: o escritor. Em 1960, uma negra semi-analfabeta chamada Carolina Maria de Jesus assombrou o Brasil – e o mundo. Ao fazer uma reportagem numa favela do Canindé, na beira do Rio Tietê, em São Paulo, o jornalista Audálio Dantas descobriu Carolina e “uns 20 cadernos encardidos em seu barraco”. Quarto de Despejo – Diário de uma Favelada vendeu 10 mil exemplares numa semana. Foi traduzido para 13 idiomas. Carolina só teve dois anos de estudo formal. Tornou-se a primeira favelada publicada no Brasil.

Na virada do milênio, três novos escritores mostraram que algo diferente acontecia nas margens das capitais brasileiras: o carioca Paulo Lins, com Cidade de Deus (Companhia das Letras), em 1997, e os paulistanos Ferréz, com Capão Pecado (Labortexto, reeditado pela Objetiva), de 2000, e Luiz Alberto Mendes, que descobriu a literatura durante mais de 30 anos de cárcere, com Memórias de um Sobrevivente (Companhia das Letras), de 2001.

A partir de 2000, Ferréz e a revista Caros Amigos organizaram três edições especiais com a produção de 30 escritores das periferias do Brasil, sob o título Literatura Marginal. Em 2005, uma coletânea do material virou livro. O escritor não era mais caso isolado, mas fenômeno coletivo. Na apresentação, Ferréz escreveu: “Cala a boca uma p…, agora a gente fala, agora a gente canta, e na moral agora a gente escreve. Quem inventou o barato não separou entre literatura boa/feita com caneta de ouro e literatura ruim/escrita com carvão (…). Não somos o retrato, pelo contrário, mudamos o foco e tiramos nós mesmos a nossa foto”.

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SUBURBANO CONVICTO

alessandro buzo
Quando Alessandro Buzo caminha pelo Itaim Paulista, nos confins da zona leste de São Paulo, os meninos o cumprimentam, reverência na voz: “Aê, Buzo”. Só daqui a uma década será possível avaliar o impacto da mudança: a referência de sucesso na periferia não é mais – ou apenas – o traficante, mas o escritor. “A elite achava que a gente não sabia nem ler”, diz Buzo. “E agora a gente escreve.”

Aos 35 anos, Buzo tem quatro livros publicados, o último deles um romance, Guerreira. Editou na base da prestação, pagou uma parte com feijão, arroz, macarrão e azeite, porque ganhava a vida vendendo comida. Há alguns meses, vive de arte, R$ 1.500 por mês. Ele sozinho é um movimento cultural. Criou uma biblioteca num bloco carnavalesco. Comanda o Favela Toma Conta, evento anual de hip-hop. Duas vezes por mês faz o Cine Favela, levando filmes brasileiros às periferias. É dono de uma “lojinha de periféricos” (livros, DVDs e CDs feitos nos guetos). Dá oficinas de escrita para os garotos da Febem. No dia 25, lança uma coletânea de 12 autores das periferias de sete Estados. E ainda faz literatura nos dois cômodos de sua casa na Favela do Buraco, onde vive com a mulher, Marilda, e o filho Evandro, de 7 anos. Alessandro Buzo declara-se “Suburbano Convicto, escritor da periferia”.

Oitava série incompleta, Buzo é filho de mãe doméstica e pai “que se mandou”. A mãe fugia da devastação da vida devorando livros comprados com trocados nos sebos. Um dia deu ao filho um presente raro: o Menino Maluquinho, de Ziraldo. Ainda moleque, Buzo endoidou pela história. Anos depois, maluco por cocaína e mesclado (maconha com pedra), diz que só não foi bandido porque a mãe que tudo lia avisou com antecedência que jamais leria carta de presidiário.

“Aqui o tráfico não é nem de maconha
nem de cocaína. Nós traficamos livros”
Alessandro Buzo“

Buzo conta que começou a escrever por indignação. O trem remendado e triste que carrega o povo da zona leste ao centro levou Buzo para a literatura. Ele queria expressar sua revolta com tanta gente amontoada, tanta indiferença. Escreveu um texto, espalhou pelo trem e, no dia seguinte, era celebridade.

O trem virou o primeiro livro. Vendeu pouco, os passageiros mal tinham dinheiro para comer, livro era de outro planeta. Buzo ia se desgarrando da literatura quando escutou o rap dos Racionais: O covarde morre sem tentar… você é do tamanho dos seus sonhos… junta seus pedaços e desce pra arena. Buzo se levantou. Ou melhor: sentou e escreveu mais. E o resto é – literalmente – história.

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A SEMANA DE 2007

No Manifesto Antropófago, lançado em 1928, Oswald de Andrade data o início do Brasil por um episódio insólito: a morte do Bispo Sardinha, devorado por índios canibais. É uma ironia para definir o conceito de arte antropofágica: os primeiros brasileiros digeriram – literalmente – a cultura européia. Com o Manifesto da Antropofagia Periférica, os organizadores da Semana de 2007 escrevem um capítulo inédito. Nele, os novos antropófagos tratam pouco de estética, muito de política e de comportamento. Sérgio Vaz comenta os principais pontos:

1) Somos periféricos
“Ninguém gosta de esgoto a céu aberto nem de barraco. Mas nós queremos mudar a periferia – e não da periferia.”

2) Criamos nosso mercado
“Nós produzimos a nossa arte. Estamos criando um outro mercado, o nosso. Vamos comprar nossos CDs, nossos livros, nossos filmes.”

3) Sabemos consumir
“Ninguém nos diz o que devemos consumir. Não podemos boicotar o Cirque du Soleil porque nunca tivemos dinheiro pra pagar. Mas podemos boicotar Ivete Sangalo, livro de auto-ajuda, um monte de coisas. Não queremos nossas filhas dançando na boquinha da garrafa nem cantando Festa no Apê. Nem nossos filhos precisando de tênis Nike. Nós boicotamos o pirata, porque não somos cidadãos de segunda classe, e boicotamos o original porque é ruim ou é caro ou não precisamos.”

4) Queremos educação
“Revolução sem r é evolução. Queremos escola de qualidade. Não pregamos a saída pela arte. Não dá pra todo mundo virar artista. As ONGs querem ensinar o povo a cantar e a dançar. A gente não agüenta esse discurso ongueiro, que pega R$ 1 milhão pra ensinar a batucar. TV, pra nós, é entretenimento. Nos preocupa a televisão que educa. Queremos escola que eduque. Se a escola educar, nossos filhos vão saber ver TV.”

5) O artista tem de ser cidadão
“Queremos artista comprometido com a comunidade. Não queremos arte que imbeciliza, teatro que quando acaba dá pra comer pizza, música que vende guaraná de manhã, macarrão à tarde e carro às 15 pras 8. Somos contra artista enriquecer. ”

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LADRÃO DE LIVROS

sacolinha
Na abertura do primeiro romance, Graduado em Marginalidade, o escritor apresenta sua origem em oito linhas. Nela, os homens são reduzidos a um espermatozóide sem nome, mas com profissão: “De Isabel Alves de Souza, com um dono de escravos, nasceu Maria. A junção de Maria Alves de Sousa, com um trabalhador rural, gerou Geralda. De Geralda Alves de Sousa, com um pedreiro, nasceu Maria Natalina. Do namoro de Maria Natalina Alves, com um carpinteiro, nasceu Ademiro Alves”. Ademiro Alves é Sacolinha, o primeiro homem da linhagem com nome e sobrenome. E pseudônimo: Sacolinha é escritor.

Aos 24 anos, ele diz: “Se não fossem os livros, eu estaria a sete palmos de terra”. Sacolinha – filho de pai sumido e mãe feirante – trabalhou dos 9 aos 21 anos como cobrador de lotação: “Metrô Itaquera, Cidade Tiradentes, Jacupêssego, Iguatemi…”. Nessa linha urbana, diz que beijou na boca a primeira menina, despediu-se alegremente da virgindade, virou homem e foi batizado de Sacolinha.

Para chegar ao trabalho, eram 40 minutos de trem. Sacolinha terminara o ensino médio “semi-analfabeto, sem entender o que lia”, mas estava enjoado de olhar a cara dos passageiros. “Reparei então que tinha gente que lia e resolvi experimentar, pra passar o tempo.” O único parente possuidor de livros era um tio que estudava para padre. Sacolinha bem que pediu com gentileza, mas o tio não acreditou nas intenções letradas. O sobrinho conta que iniciou então uma bem-sucedida carreira de ladrão de livros pela própria família. Ampliou suas atividades por livrarias, bienais e conferências. Tem certeza de que não cometeu crime algum. “Eu precisava muito e não tinha dinheiro”, diz.

Aos 18 anos, Sacolinha começou a ler. Aos 22, conta que fez uma rifa para publicar o primeiro romance. Chefe de família, vivia com a mãe e dois irmãos em dois cômodos construídos abaixo do nível da rua. Não tinha água nem luz. Estragou os olhos lendo à luz de velas, mas iluminou-se todo. Ao encontrar Carolina Maria de Jesus em seu Quarto de Despejo, sua vida sofreu uma freada brusca e pegou outro rumo: “Não acreditei que tava lendo um livro assim. Bati na mão e disse: ‘É isso que eu quero ser’”.

Sacolinha partiu em busca de professores de Literatura. “Me disseram que eu podia ler Ferréz e Paulo Lins, mas devia também ler os clássicos”, conta. Sua jornada pela literatura é um sobressalto: “Aluísio Azevedo descreveu de um jeito a primeira menstruação da Pombinha que me deu até vontade de menstruar. Memórias do Cárcere, do Graciliano Ramos, tava muito chato. Até eu perceber que ele tava passando a chatice do cárcere pro leitor. Fantástico!”.

“O Brasil só vai melhorar quando o povo começar
a roubar livros em vez de armas, drogas e dinheiro”
Sacolinha

“Salvo pela literatura”, Sacolinha criou uma ONG para divulgar novos autores, organizou trocas literárias para abastecer bibliotecas, criou dois saraus de poesia, promoveu oficinas de escrita, entrou na faculdade de Letras e publicou um livro de contos. Desde 2005 é coordenador de literatura da Prefeitura de Suzano, na Grande São Paulo. “Se a porta do banco trava porque sou negro, feio e uso calça larga, não discuto mais com o segurança”, diz. “Meu projeto é muito maior: tenho de discutir com o público.” Sacolinha dá entrevista em sua nova casa-escritório: dois cômodos mobiliados em 45 prestações nas Casas Bahia. Serve vinho rosé. Guarda os manuscritos do primeiro romance em perfeitas condições – “para a posteridade”.
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A TOMADA DA CANETA

A primeira geração de escritores da periferia se formou à margem da escola. Em alguns casos, apesar dela. A conquista da escola se iniciou de forma inusitada: pela literatura das ruas, entrando pelo portão na mão dos alunos. “Literatura sempre foi uma palavra alienígena pra nós. Fica do outro lado do interditado. A gente sempre se viu mal representado como personagem”, diz o escritor Allan da Rosa. “Nossa missão é entrar dentro do sistema pra conseguir nosso espaço. E o sistema é letrado. Quem marioneta a parada são os letrados. Então vamos fustigar o sistema de dentro dele.”

Aos 31 anos, Allan é um dos poucos escritores que chegaram à universidade. Formou-se em História na USP e hoje faz mestrado em Educação. Filho de atendente de enfermagem e presidiário, começou a trabalhar aos 13 anos, como office boy. Depois vendeu churros, incenso, livros, seguros, jazigos de cemitério. Começou a escrever por causa do futebol de botão. Inventava times e criava uma biografia para cada craque. “Eu não tenho lembranças positivas de leituras dentro da escola. Tenho de fora, de outros rolês”, diz Allan.

Hoje, ele é um dos escritores reivindicados nas aulas por alunos de escolas públicas. “Quando a gente entra no sistema escrito, consegue poder. Não o poder substantivo, mas o poder verbo. Poder criar em vez de só sair de manhã, pegar duas horas de busão lotado e trabalhar prum cara onde você não pode nada. E depois voltar cansado demais pra viver”, diz ele. “A palavra falada é majestosa, a música é rainha. Mas a palavra escrita tem dentro dela algo que só ela tem. Que é poder chegar nas escolas com seu jeito de escrever, com seu tema e começar a tomar conta do que sempre usaram pra nos orquestrar.”

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MUÇULMANO DO GUETO

Ridson
A primeira piada racista que o menino Ridson ouviu foi em casa, contada pelo pai, um negro. Seu Lourival, baiano que migrara para São Paulo, padeiro de profissão, dizia que não tinha sotaque “porque já tava domesticado”. O filho achava graça. Quando o irmão mais novo tinha 6 anos, Ridson conta que o garoto começou a se recusar a tomar café e a comer feijão. Só aceitava leite e arroz. A mãe, Hosana, mistura de africano com europeu, estranhou. O menino então explicou: “Se eu comer só arroz e leite agora que sou pequeno, quando eu crescer vou ficar branco”.

Ridson tinha 10 anos. Nunca mais riu das piadas do pai: “Foi a primeira vez que percebi que algo de muito errado acontecia ao meu redor”. Ridson começou então a se transformar em Dugueto, nome que tatuou no braço direito para gravar na pele raça e geografia. “Eu sou negro. Minha identidade quem define sou eu”, diz. “E isso incomoda. Até hoje me perguntam por que digo que sou negro se ‘sou tão bonito e tenho olhos verdes’. Nenhum branco é racista até ter a seu lado um negro orgulhoso.”

Há dois anos, ele se transformou em Dugueto Shabazz. Havia descoberto sua terceira identidade – muçulmano. Shabazz, como Malcolm X, o ativista negro dos Estados Unidos convertido ao islã. Muçulmano negro do gueto, ele usa a caneta para denunciar preconceito e desigualdade. É uma das vozes mais contundentes do movimento literário da periferia. Além de escritor, é rapper. Já esteve na Venezuela, em Cuba e na França, onde conviveu com jovens muçulmanos dos subúrbios franceses, em 2005. Lá, conta ele, foi expulso de uma loja num ato de discriminação.

Educado, gentil, com voz baixa e suave, ele fala sobre dores e convicções numa mesquita. A seu redor, muçulmanos de várias partes da África, migrantes em São Paulo, formam uma babel de línguas e dialetos entre uma oração e outra. “Espero que não me faltem poesias porque tenho muita raiva”, diz Dugueto Shabazz. Tem 24 anos.

Espero que não me faltem poesias porque tenho
muita raiva. Não queremos cisão, mas reparação”
Dugueto Shabazz

Então fala longamente sobre uma nação ferida: “Acho que ainda vai haver uma grande cisão neste país. A sociedade branca e rica tem se incomodado cada vez mais com o orgulho negro. Nós queremos nossa contribuição reconhecida. Basta olhar a história. Quem deve pra quem? Quem está nas favelas, nas cadeias, na rua? Todos os dias há uma cobrança nos faróis, encarnada pelo menino que faz malabares quando deveria estar na escola, de 50 pessoas no coletivo e o cara atrás do blindado. Mas não percebem. Como muçulmano, busco a paz até o último instante. A gente não quer cisão, a gente quer reparação. Mas, se for para ter uma nação bicolor, então escolhemos ser negros – e não brasileiros”.

Dugueto Shabazz se cala para atender ao chamado da última oração do dia.
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A REINVENÇÃO DO LIVRO

Em 2005, Allan da Rosa decidiu fazer “livro pra quem não sabe ler”. A Toró, um selo editorial, nasceu dentro da Cooperifa. Já publicou oito escritores periféricos. “Toró vem da chuva que alaga ruas e barracos e porque chegou a hora de fazer chover livros”, diz ele. A mudança estética, proposta pelo movimento literário periférico, já começa pelo objeto livro. O livro da Toró é impresso numa gráfica, mas chega nu. Cada exemplar é acabado em casa, alguns deles escritos à mão, em letra cursiva. Têm pano, bordados, conchinhas, corda. “Dizem que nossos livros não podem ir pra biblioteca porque não seguem os padrões. Paciência. Pra nós, é segundo plano que nossos livros estejam nas bibliotecas do centro. Queremos ser lidos nas duas horas de busão”, diz Allan.

Na prosa e na poesia, além de falar de seu próprio mundo, de um cotidiano estrangeiro à classe média, os periféricos usam palavras inventadas nas margens, trazem o movimento e a riqueza da língua recriada nos guetos, às vezes misturada a dialetos africanos, obedecendo a outras sintaxes. Algumas palavras trazem s a grafia “errada” para estar literariamente “certas”. A escolha é expressão artística e ato político: a exclusão pela linguagem empurrou muitas crianças pobres para fora da escola. “A arte da palavra permite que a gente ventile as coisas, mas é preciso ter sensibilidade”, diz Allan. “O Gato Preto (escritor baiano) deu o título pro seu texto de ‘Colombo, Pobrema, Problemas’. Há um diálogo aí, ele sabe o que tá fazendo.”

O escritor das margens é novo também no modo de estar no mundo: ele não é uma figura submersa em si mesma, distante. Cada um é ligado a uma ação cultural. Ou a várias. A maioria deles tem casas de um ou dois cômodos. Tecem enredos sem solenidade, enquanto alguém frita um pastel, o filho joga bola. “A gente é trágico, sentimental, gosta de tocar nas pessoas”, diz Sérgio Vaz.

Escrever na periferia é um ato profano. A literatura nasce ao rés do chão, sem pedestal. Por ter atravessado séculos inalcançável, a palavra escrita precisa ser dessacralizada. Quando a Toró decide fazer livros à mão, escritos à mão, não é um capricho. É preciso que o leitor toque – também literalmente – a letra do escritor. Para que possa ser tocado pelo que sempre lhe esteve interditado. Na antropofagia periférica, por definição nada é sagrado. Muito menos as letras, agora capturadas entre as presas de antropófagos que até pouco tempo atrás se supunha sem dentes.

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PERIFÉRICO NO CENTRO
sebastiao
Sebastião Nicomedes é de outra periferia: o centro geográfico de São Paulo. Nascido em Assis, interior paulista, ele praticamente ressuscitou no centro depois de uma queda de 4 metros de altura. Tentava instalar o luminoso de uma loja quando, há três anos, despencou lá de cima. Quando acordou, Sebastião estava só. Machucado, sem poder trabalhar, ninguém apareceu para ampará-lo. Estava no chão. Até para se matar, coisa que diz ter cogitado, era preciso subir alguns degraus. Sebastião virou morador de rua. Percebeu então que só precisava ter uma caneta para reescrever sua vida. E lentamente foi escalando sua queda, agarrado às cordas das letras.

Hoje, Sebastião vive só na “cobertura” de uma pensão do Brás. Em agosto, o Teatro Sérgio Cardoso abrigou a segunda temporada de sua peça, Diário dum Carroceiro. Seu primeiro livro, Simone, Cátia e Outras Marvadas (Dulcinéia Catadora), foi lançado no ano passado. “Minhas histórias vêm do segundo mundo, que ninguém quer ver”, diz.

Quando anda pelas ruas do centro, ele vai apontando as placas arrancadas pela Lei Kassab para combater a “poluição visual”. Placas pintadas por ele, de que se orgulhava. As últimas provas materiais de que Sebastião Nicomedes teve outra vida. Seu celular toca. Do outro lado, uma voz avisa que mais um morador de rua morreu de frio. Sebastião sofre. “Minha escrita é o clamor da alma de cada indigente que morre”, diz. “Escrevo pra não me armar de fuzil.”

Toda a literalidade de sua vida – começando pela queda real – não é um detalhe. Marca também sua escrita. Isso fica explícito quando, depois de muito tempo, ele confessa, envergonhado, que passa frio à noite. Até então não tinha cobertor, só uma colcha fina. Sebastião não interpreta o frio, não inventa o frio, não nomeia o frio. Sebastião – quando escreve sobre o frio – sente o frio.

Tempos atrás, ele andava assediado por ONGs e governos. Por ser uma figura simbólica, recebia propostas. Numa, ganharia R$ 900 por mês para trabalhar num albergue. Sebastião conta que caminhou até a porta, viu os moradores de rua, percebeu que caberia a ele expulsar os bêbados, “os que mais precisam”. “Não era um emprego, era um cala-boca”, diz. Virou as costas.

“Minha escrita é o clamor da alma de cada indigente
que morre. Escrevo pra não me armar de fuzil”
Sebastião Nicomedes

Naquela noite, deixou seu quartinho pobre na pensão e dormiu na rua. Ao amanhecer, escreveu de uma lan house do centro um e-mail. Nele, conta ter decidido não manter nada de seu, exceto a alma: “Ontem eu refiz um caminho de busca para reencontrar esse cara que ressurgiu das cinzas. Catei um papelão e fui dormir na rua. Fiquei a maior parte do tempo acordado. Lembrei dos meus anseios e das coisas que queria ter. Eu não pedia grandes coisas. Um lugar pra me proteger da chuva, um travesseiro, um chuveiro, um fogão pra comer o que me desse vontade, sem esperar hora e ordem pra fazer o que quero. E fazer o que mais gosto: escrever. Quando acordei pela manhã, nos primeiros raios de sol, o clarão forte ardeu-me os olhos. Levantei e vi que tudo o que pedi eu tenho. Eu não pedi carro, não pedi cheques e roupas de marca, relógio, ouro ou tela plana. Eu tenho exatamente tudo o que sonhava”.

Fotos: Frederic Jean/ÉPOCA, Anderson Schneider/ÉPOCA, André Valentim/ÉPOCA e I.E.B.

(Publicado na Revista Época em 20/02/2009)

A lista de Aracy

Enquanto namorava Guimarães Rosa, ela enganou a diplomacia de Getúlio Vargas para salvar dezenas de judeus na Segunda Guerra Mundial

Eliane Brum (texto) e Frederic Jean (fotos)

O ANJO DE HAMBURGO Funcionária do consulado brasileiro, Aracy Moebius de Carvalho Guimarães Rosa arriscou a vida para salvar judeus na Segunda Guerra Mundial. Em 20 de abril, ela completará 1 século

O ANJO DE HAMBURGO
Funcionária do consulado brasileiro, Aracy Moebius de Carvalho Guimarães Rosa arriscou a vida para salvar judeus na Segunda Guerra Mundial. Em 20 de abril, ela completará 1 século

Adolf Hitler queria matar Günter Heilborn. Se tivesse conseguido, Luiza, de 4 anos, não contaria histórias mirabolantes para a família com ares de heroína trágica, Marina não teria criado uma taturana para descobrir como ela virava borboleta e Juliana, ao ouvir uma amiga da mãe dizer que era baiana, não teria declarado: “Eu sou mamífera”. Não teria existido futuro para Günter. E não haveria presente para suas bisnetas trigêmeas. O assassinato num campo de extermínio poderia ter interrompido não apenas a história de Günter, mas toda a teia de acontecimentos, piqueniques, lágrimas, dentes de leite, decepções, joelhos esfolados e perguntas sem resposta que sua vida gerou.

É com essa fita métrica que a História vai medir a estatura de Aracy Moebius de Carvalho Guimarães Rosa, a funcionária do consulado brasileiro em Hamburgo que enganou a diplomacia de Getúlio Vargas para ajudar dezenas de judeus a conseguir vistos para fugir da perseguição nazista na Segunda Guerra Mundial. Ela completará 100 anos no domingo 20 de abril. Separados em tudo, Aracy e Hitler compartilham a mesma data de aniversário. Quando ela nasceu, a mais de 10.000 quilômetros da Alemanha, em Rio Negro, no Paraná, ele completava 19 anos e sonhava em ser artista. Décadas mais tarde, ela viria a tornar-se o anjo de Hamburgo. Ele, o carrasco de 6 milhões de judeus. Em meio ao horror inventado por ele, Aracy descobriu quem era ela.

O que faz alguém decidir que o único modo de salvar também a si mesma é desobedecer a ordens que prometeu cumprir? Que para ser uma boa pessoa é preciso ser uma má funcionária? A mulher sentada numa poltrona do apartamento do filho, em São Paulo, não pode mais responder. Ela sofre de Alzheimer. Os fios de sua memória são como um novelo que escorregou do colo e se perdeu.

Quando a trajetória de Aracy cruzou a de Günter, ela era jovem. E era linda. E não era vista com bons olhos. Em 1934, Aracy era uma mulher desquitada. Naquela época, para a maioria das mulheres, o máximo de ousadia era comprar um fogão a gás. Filha de uma imigrante alemã, Aracy pegou o filho de 5 anos pela mão e embarcou num navio para a Alemanha. Tinha 26 anos, era fluente em várias línguas e decidira ser a dona de sua história.

A vitória da vida Karl Franken sobreviveu a Hitler graças a Aracy. No Brasil, ele encontrou outra fugitiva do nazismo, Gertraud (acima, ela segura sua foto). E com ela Karl iniciou uma família...

A vitória da vida
Karl Franken sobreviveu a Hitler graças a Aracy. No Brasil, ele encontrou outra fugitiva do nazismo, Gertraud (acima, ela segura sua foto). E com ela Karl iniciou uma família…

Depois de uma temporada na casa de uma tia, Aracy conseguiu emprego no consulado brasileiro em Hamburgo. Os judeus haviam sido expulsos de universidades, repartições públicas e do Exército. Foram obrigados a entregar seus negócios a arianos. Do Itamaraty eram desferidas “circulares secretas” para embaixadas e consulados. Nelas, a ordem era dificultar a entrada de judeus no Brasil. O Estado Novo de Vargas flertava com o nazismo.

O dentista Günter Heilborn não conhecia nem Aracy nem o Brasil. No fim de 1938, ele foi preso num campo de concentração com milhares de homens judeus. Para não morrer de fome, contou à família que tinha de comer as próprias fezes. Enquanto Günter padecia em Buchenwald, Aracy fazia sua escolha. Com a ajuda de Hardner, antigo guarda civil e proprietário da auto-escola onde aprendera a dirigir seu Opel Olympia, ela forjava atestados de residência falsos para que judeus de qualquer parte da Alemanha pudessem pedir vistos em Hamburgo. Conseguia também passaportes sem o J vermelho que assinalava os documentos. Misturava os pedidos à papelada que levava ao cônsul. Ele assinava os vistos, possivelmente sem saber que despachava judeus para o Brasil.

Parece fácil fazer a coisa certa. Mas só é fácil para quem vê os fatos iluminados pelo julgamento da História. Aracy era uma mulher sozinha com um filho pequeno num país à beira da guerra. Suas ordens eram fechar a porta para os judeus. Anos atrás, quando lhe perguntaram por que fez o que fez, ela disse: “Porque era o justo”. Em 1982, Aracy foi reconhecida como “Justa entre as Nações”, título conferido pelo Museu do Holocausto, em Jerusalém, aos não-judeus que arriscaram sua vida na Segunda Guerra Mundial para salvar a de judeus. Seu nome figura ao lado de Oskar Schindler e do então embaixador do Brasil em Paris, Luiz Martins de Souza Dantas, outro brasileiro entre as 22 mil pessoas que já receberam a homenagem.

Inge, a noiva de Günter, ouviu rumores sobre o “anjo de Hamburgo”. Naquele momento, ainda era possível conseguir a libertação de judeus que tivessem vistos para deixar a Alemanha. Os nazistas se contentavam em vê-los longe. Em breve, só se satisfariam com eles mortos.

O difícil era conseguir um visto. Na sala do consulado, Inge juntou-se a dezenas de judeus que haviam batido em muitas portas diplomáticas sem conseguir abri-las. Aracy aconselhou Inge a trocar os passaportes de suas cidades – Breslau e Gleiwitz – pelos de Hamburgo para que pudesse ajudá-los. Inge pode ter cruzado ali com Grete e Max Callmann, acuados num canto da sala. “Eu me lembro como se fosse ontem”, diz Grete. “Meu marido viajou para todas as cidades da Alemanha onde existia consulado do Brasil e dos Estados Unidos. Um dia me ligou dizendo que havia chance em Hamburgo. No dia seguinte, estávamos num canto, esperando nossa vez na sala cheia. De repente, uma moça nos chamou. Era a dona Aracy. Ela nos arrumou visto para viajar para o Brasil. Nós quisemos pagar. Mas ela disse: ‘Vocês não me devem nada’.” Na noite de 9 de novembro de 1938, Grete era recém-casada com Max, 22 anos mais velho. Ele havia sido diretor de uma grande loja de departamentos. Como todos os judeus, perdera o posto por um decreto nazista. Sobreviviam agora com uma fábrica de aventais. Grete não conseguia dormir porque Max roncava. Pegou travesseiro e cobertor e transferiu-se para o sofá da sala. “Acordei às 5 horas da madrugada, com um barulho terrível na rua. Os nazistas quebraram tudo o que era de vidro, as janelas das lojas”, diz. Ela sacudiu o marido: “Algo muito ruim está acontecendo”. No dia seguinte, o mundo saberia que os nazistas haviam assassinado dezenas de judeus, incendiado, saqueado e destruído sinagogas, lojas e empresas hebraicas, confinado quase 30 mil homens em campos de concentração. A “Noite dos Cristais” inaugurou o que a História chamaria de Holocausto.

Karl Franken, funcionário de uma loja de roupas para senhoras em Hamburgo, embarcou às pressas num trem para Essen. Pretendia se esconder na casa da mãe. Quando se acomodou numa mesa do vagão-restaurante para jantar, havia ainda um lugar vago. Minutos depois, sentou-se diante dele um oficial da SS. Karl ouviu impassível o nazista discursar. “Foi a única vez na minha vida que tive de levantar e estender a mão. Tive de fazer Heil Hitler”, disse a ÉPOCA, pouco antes de morrer. Tinha 99 anos e ainda vivia a insanidade daquele momento.

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‘‘O que Aracy significou para nós? A vida’’ Grete Callmann, de 94 anos, fugiu da Alemanha com o marido, Max, graças a um visto de Aracy

O oficial desceu em Bremen sem desconfiar que o jovem alto, olhos azuis, era judeu. Essa história será contada em um livro do Núcleo de História Oral Gaby Becker, do Arquivo Histórico Judaico Brasileiro. Karl escapou e, com a ajuda de Aracy, embarcou no vapor Cap Norte com 10 marcos no bolso. Seu pai, o alfaiate Alex Franken, morrera em Verdun, na França, combatendo pela Alemanha na mais longa batalha da Primeira Guerra Mundial. Em Moers, sua cidade natal, uma placa saudava-o como herói.

Com o visto dado por Aracy, Inge arrancou Günter do campo de concentração. Casaram-se antes de embarcar para o Brasil no navio Monte Sarmiento. A noiva estava de preto – um luto profético. Para muitos, partir significava viver, mas abandonar os pais para morrer. “No trem para Hamburgo, vi pela janela minha mãe quase desmaiar”, diz Grete. “Foi a última vez que eu a vi.” Aos 94 anos, Grete chora sem soluçar. Suas lágrimas deslizam com a mansidão de quem nunca parou de chorar.
Enquanto o povo alemão envergonhava a si mesmo, Aracy desobedecia ao cônsul-geral, Joaquim Antônio de Souza Ribeiro. E apaixonava-se pelo adjunto, João Guimarães Rosa. O jovem diplomata ancorou na Alemanha em maio de 1938. Tinha 30 anos, trocara a medicina pela diplomacia, havia vencido um concurso literário e perdido outro. No Brasil, deixara sua primeira mulher, Lygia, e as duas filhas, Vilma e Agnes.

Aracy era uma morena com mais curvas que o Reno, capaz de fazer os alemães gingar ao virar a cabeça para vê-la passar a caminho do consulado. Para sorte dos judeus, também tinha uma personalidade capaz de azedar um Apfelstrudel. Um dia deu uma bronca tão grande num policial que queria revistá-la que ele se encolheu diante de sua baixa estatura. Aracy, então, atravessou calmamente a fronteira com um judeu no porta-malas do carro.

ROMANCE DE NÃO-FICÇÃO Para Aracy, Guimarães Rosa escreveu mais de uma centena de cartas de amor

ROMANCE DE NÃO-FICÇÃO
Para Aracy, Guimarães Rosa escreveu mais de uma centena de cartas de amor

Entre 1938 e 1942, Rosa registrou as impressões de um diplomata brasileiro na Alemanha nazista. No diário, ele é contundente ao narrar a perseguição aos judeus – e parcimonioso nas referências ao romance com Aracy: apenas 16 menções. Mesmo assim, a publicação desse diário é barrada pelas filhas do escritor. Agnes e Vilma desejariam reduzir o tamanho de Aracy na biografia do pai. Procuradas, não quiseram dar entrevista.

O romance está bem documentado nas cartas que “Joãozinho” escreveu para “Ara”. “Deixa que eu diga que você estava linda, linda, na hora de partir. (…) Dormi abraçado com a camisolinha cor-de-rosa, toda impregnada do aroma do corpo maravilhoso da dona de meu amor. (…) Serei absolutamente fiel, não olhando para as alemãzinhas, as quais, por sinal, todas viraram sapos!”, escreveu em 24 de agosto de 1938.

A declaração integra um acervo de 107 cartas e 44 cartões, bilhetes e telegramas escritos por ele. Com base no material, as historiadoras Neuma Cavalcante e Elza Miné preparam uma biografia de Aracy. Rosa registrou sem pudor quanto era feliz aos pés de Aracy – pés que eram objeto de fetiche. “Agora vou para a cama, para dormir com a camisolinha cor-de-rosa, depois de conversar um pouco com os chinelinhos chineses, que me falarão dos lindos pezinhos da sua dona”, escreveu no dia seguinte.

Enquanto a Alemanha se incinerava em ódio, Ara e Joãozinho queimavam de amor. O que em nada atrapalhou as atividades subversivas de Aracy. O casal nunca viveu debaixo do mesmo teto em Hamburgo. Ela chegou a esconder judeus em casa. “Ele dizia que eu exagerava, mas não se metia muito”, contou Aracy, anos atrás. “Nunca tive medo de nada nem de ninguém.”

Getúlio Vargas passou os primeiros anos da guerra fazendo um agrado ao Eixo pela manhã, piscando para os Aliados à tarde. O ataque japonês a Pearl Harbor derrubou-o do muro. Em janeiro de 1942, o Brasil rompeu relações com o Eixo. Rosa e Aracy foram confinados no balneário de Baden-Baden por quatro meses. Na viagem de volta ao Brasil, casaram-se por procuração no México. Em quase 30 anos ao lado de Aracy, Rosa inventou um mundo e reinventou a língua portuguesa. Ao lançar sua obra-prima, Grande Sertão: veredas, escreveu: “A Aracy, minha mulher, Ara, pertence este livro”.

Quando Rosa e Aracy desembarcaram no Brasil, a filha mais velha de Günter e Inge começava a falar. Deram a ela o nome da mulher que lhes deu uma segunda vida. A pequena Marion Aracy só falava em alemão – e o governo havia proibido o uso do idioma. “Eu quero descer do bonde”, gritava a menina na língua do Führer. E Günter precisava fugir correndo com a filha no colo. Se fosse preso, só poderia dizer em alemão que também não gostava de Hitler.

A solteirice de Karl Franken durou pouco no Brasil. Logo se encantou por uma fugitiva do nazismo, Gertraud. O primeiro dos três filhos nasceu no ano em que o Brasil declarou guerra à Alemanha. Karl trabalharia por toda a vida na mesma empresa, a Mueller, de brinquedos e botões. Ele e Gertraud se tornariam uma referência na história da Congregação Israelita Paulista.

A única jóia que Grete Callmann conseguiu trazer foi roubada pelos funcionários brasileiros quando o navio ancorou no Rio de Janeiro, em fevereiro de 1939. Era seu anel de casamento. Grete era pianista. Tinha estudado desde os 6 anos para interpretar Beethoven, Mozart, até Wagner, conhecido por ter sido o compositor preferido dos nazistas. “Quando chegamos, eu sentia em mim todas as doenças que existem. Mas os médicos não encontravam nada”, diz. “Era medo.”

Quando as cartas da Alemanha chegavam, Grete tremia tanto que não conseguia ler. Seus pais estavam num campo de concentração. Ela sabia que um dia as cartas se calariam. Quando a guerra acabou, em 1945, a Alemanha estava coberta de cinzas humanas. Hitler teria dado um tiro na cabeça. Vargas foi deposto. Ao apoiar a democracia lá fora, não dava mais para manter a ditadura aqui. Karl Franken, Grete e Max Callmann, Günter e Inge Heilborn estavam vivos. Assim como as dezenas de judeus salvos por Aracy.

O RECOMEÇO Karl e Gertraud casaram-se no Brasil e iniciaram a família ao lado: três netos e três bisnetos não estão na foto porque vivem em Israel

O RECOMEÇO
Karl e Gertraud casaram-se no Brasil e iniciaram a família ao lado: três netos e três bisnetos não estão na foto porque vivem em Israel

…Karl e Gertraud tiveram três filhos. Da esq. para a dir., Arnaldo, casado com Rosana, Claudio, com Tamara, e Roberto, com Siona…

…Karl e Gertraud tiveram três filhos. Da esq. para a dir., Arnaldo, casado com Rosana, Claudio, com Tamara, e Roberto, com Siona…

...Nos anos 70, Karl e Gertraud tiveram os primeiros dos nove netos. Alguns deles se casaram e....

…Nos anos 70, Karl e Gertraud tiveram os primeiros dos nove netos. Alguns deles se casaram e….

aracy bisnetos

…lhes deram cinco bisnetos. A seqüência de fotos da família Franken foi feita uma semana após a morte de Karl. É uma homenagem a ele e a Aracy

Quando a guerra acabou, Grete soube que os pais estavam mortos. Karl descobriu que pouco tinha restado da família. Günter e Inge foram informados de que seus pais tinham sido incinerados. Os “judeus de Aracy” teriam de viver num país tropical, do outro lado do Atlântico com essa herança. Viver era sua vingança. E foi o que fizeram.

Günter e Inge tiveram três filhos – Marion Aracy, Miguel e Ruth – durante a guerra. Günter levou uma década para ter reconhecido seu diploma de dentista. Nos primeiros anos, sustentou a família com a ajuda de prostitutas. Tratava os dentes das mulheres num quartinho de prostíbulo. Quando um policial aparecia, elas diziam que o quarto era usado para fins comerciais. Inge costurou para fora, teve malharia, fez congelados, criou uma colônia de férias em Campos do Jordão. Parecia suportar melhor o peso da vida partida, sorria mais. Günter proibiu o filho de usar marrom, cor do terno que vestia quando foi preso pelos nazistas. Nunca teve bigode. Era chamado pelos netos de “biblioteca ambulante”, porque discorria sobre qualquer tema, de mitologia grega a botânica. Menos sobre o Holocausto.

Em 19 de novembro de 1967, Vera Tess, a neta preferida de Guimarães Rosa, buscava o avô em passos claudicantes pelo apartamento do Rio. Encontrou-o no escritório, tendo um infarto. Aracy perdeu seu grande amor, mas não perdeu a si mesma. No fim de 1968, Geraldo Vandré começou a ser perseguido pelo regime porque a canção “Caminhando” virou um hino de protesto contra a ditadura. Enquanto a repressão o caçava, Vandré compunha, todo refestelado num sofá do apartamento de Aracy.

O prédio era repleto de oficiais e tinha vista para o Forte de Copacabana. Os netos de Aracy, que passavam as férias no Rio, foram incumbidos pela avó de alertar sobre qualquer movimento verde-oliva. Vandré ficou por lá tocando violão, jogando conversa fora. Depois viajou para São Paulo numa Kombi, com o neto mais velho de Aracy, Eduardo Tess Filho. E de lá para o exílio.

Karl Franken morreu no último dia 1o de março. Faltavam menos de seis meses para completar 1 século. Anos atrás, ele voltou à Alemanha. Não encontrou a placa que homenageava seu pai como herói de guerra. Karl Franken afirmou a ÉPOCA, cinco dias antes de morrer: “Eu sou só brasileiro”.

Günter Heilborn criou uma espécie nova de orquídea. Deu a ela o nome de sua mãe, queimada num forno crematório. Selma tinha pétalas brancas e amarelas. Günter apoderou-se por completo da vida que Hitler queria tomar. Morreu quando quis, em 1992. Inge o seguiu em 2000. Todas as tardes, ele e Inge sentavam-se para ouvir música clássica. Jamais ouviram Wagner. E nunca viram filmes sobre o Holocausto.

Grete Callmann tentou ver um filme sobre o nazismo. Começou a gritar dentro do cinema. Não voltou. Quando seu marido morreu, Grete comprou um piano usado. Seus dedos já não reconheciam as teclas. Aos 94 anos, Grete liga seu radinho ao acordar e atravessa o dia embalada por pianistas cuja vida não foi interrompida.

Aos 80 anos, Aracy acabara de retirar dinheiro no banco quando tentaram lhe arrancar a bolsa. Deu tantas bolsadas no ladrão que o deixou estirado na calçada de Nossa Senhora de Copacabana. De lá para cá, a cidade que mais amava no mundo foi se tornando campo minado também para ela. E com relutância, bem devagar, Aracy foi aceitando São Paulo. Nos últimos anos, enquanto saboreava um cigarro, foi cortando um a um os fios que a ligavam ao mundo de fora. Um dia levantou âncora e partiu inteira para dentro de si mesma.

Aos 4 anos, as bisnetas trigêmeas de Günter Heilborn queriam saber por que posavam para fotos. A mãe explicou: “Homens muito maus prenderam seu bisavô, e uma moça muito boa, chamada Aracy, ajudou ele a fugir. Em homenagem a ela, a vovó se chama Aracy”. E por que prenderam?, foi a pergunta seguinte. “Porque não aceitavam que eles eram diferentes.” A família se uniu então no exercício de lembrar de todas as pessoas de diferentes “cores, crenças, tipos e tamanhos” que amavam.

Aracy Guimarães Rosa esqueceu-se de si mesma, mas jamais será esquecida.

O legado de Aracy

POR UM TRIZ Com o visto, Inge tirou Günter do campo de concentração

POR UM TRIZ
Com o visto, Inge tirou Günter do campo de concentração

Marion Aracy (sentada) é a filha mais velha de Günter e Inge Heilborn. Seu nome é uma homenagem à mulher que salvou a vida dos pais e tornou a sua possível. Ela teve dois filhos, Selma e Paulo. Selma (de azul), casada com Jorge (de listrado), teve as trigêmeas Marina, Juliana (de rosa) e Luiza (de braços cruzados) e Alexandre, de 2 anos. Paulo, casado com Ana Cintia, é pai de Carolina, de 3. “Sem Aracy, nem eu nem minha família existiríamos. Simplesmente não teríamos acontecido”, diz Paulo Heilborn.

aracy familia

Duas mulheres contra Hitler

Margarethe Bertel Levy e Aracy Moebius de Carvalho foram protagonistas de uma aventura cinematográfica na Alemanha nazista. Tornaram-se amigas para sempre

“Entre mim e Aracy foi um golpe de amor. Só que entre duas mulheres”, ela diz a ÉPOCA. Tem 99 anos, quase não caminha, não enxerga e não ouve. Mas a mente está límpida – o que faz do corpo uma prisão. Em nenhum momento sua situação vira lamúria. Maria Margarethe Bertel Levy prefere a auto-ironia. É uma mulher impressionante. Como sua grande amiga, Aracy. A aventura dessas duas mulheres extraordinárias na Alemanha nazista é um roteiro de cinema pronto.

“Eu era sexy”, ela diz. E Aracy? “Muito sexy, linda, provocante, um corpo maravilhoso, os moços saltavam.” Elas eram tudo isso mesmo. As fotos ao lado (Margarethe de chapéu, Aracy de ombros nus) documentam a afirmação. Conheceram-se porque Aracy precisou salvar Margarethe. Encontraram-se no consulado de Hamburgo, em 1938. Até hoje estão juntas. Margarethe visita Aracy, que não mais a reconhece. O filho único de Aracy, Eduardo, cuida de Margarethe, que é viúva e não quis ter filhos “porque gostava muito de viajar”.

Os muitos significados dessa amizade improvável são tema de investigação da historiadora Mônica Raisa Schpun, do Centro de Pesquisas sobre o Brasil Contemporâneo, da École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris. “Enquanto as pessoas eram separadas pelo nazismo, essas duas mulheres se encontraram”, diz Mônica. “Sua amizade vai muito além de gratidão.” Sobre elas, Mônica publicou um artigo chamado “História de um happy end transatlântico”.

Margarethe pertencia a uma família rica e liberal. Aprendeu sete línguas viajando. Conheceu o marido, o dentista Hugo Levy, no consultório dele. Ela era sua bela paciente, 16 anos mais jovem. Margarethe e Hugo eram cidadãos do mundo. Quando o cerco nazista apertou, Margarethe procurou Aracy, que escondeu Hugo em casa. Depois, emprestou o carro diplomático para que Margarethe o levasse ao interior. Aracy incluiu uma observação nos documentos do casal: “Transformar em visto permanente na chegada”. Cobriu essas letras miúdas ao levar o visto para o cônsul assinar.

É nesse ponto que a história fica ainda mais cinematográfica. Uma rede de alemães – arianos – ajudou os Levys. Um dia, um oficial da SS, Zumkley, bateu na porta do consultório para contar que a mãe de Hugo salvou sua vida ao amamentá-lo. “Agora chegou a minha vez de salvá-lo”, disse. Zumkley avisou o momento certo de partir. Um paciente, Plambeck, escondeu Hugo em sua casa por 12 dias. Outro paciente, funcionário público, conseguiu convencer um colega a encarregá-lo da letra “L” e, assim, fez o inventário – subavaliado – do patrimônio dos Levys. Eles partiram para o Brasil com todos os bens, do consultório aos dois cachorros. Um terceiro paciente garantiu a eles o conforto de quatro cabines no navio Cap Ancona.

Ao desembarcarem em São Paulo, com dinheiro e visto permanente, Margarethe e Hugo integraram-se logo ao Brasil. Margarethe, porém, não escapou da tragédia. “Pegaram minha mãe em Varsóvia. Puseram minha mãe no forno. Ela queimou”, diz. Margarethe crava uns olhos perfurantes, que ela jura que não enxergam direito, e diz: “Com o tempo, a gente não esquece”.

Aracy foi uma católica fervorosa. Margarethe, uma judia sem religião. “Eu não tenho esse apoio. Nasci judia e vou morrer judia, mas não sei nada de religião”, diz. Seu testemunho foi decisivo para que Aracy ocupasse seu lugar histórico no Museu do Holocausto, em Israel. Margarethe ainda visita Aracy, mas não consegue alcançá-la. Aracy esqueceu-se dela. À beira dos 100 anos, as duas mulheres e sua extraordinária amizade só resistem na memória de uma delas.

‘‘Com o tempo, a gente não esquece’’ Acima, as duas amigas quando jovens: Margarethe, à esquerda, e Aracy, à direita Margarethe Levy, de 99 anos.

‘‘Com o tempo, a gente não esquece’’
Acima, as duas amigas quando jovens: Margarethe, à esquerda, e Aracy, à direita Margarethe Levy, de 99 anos.

(Publicado na Revista Época em 10/09/2008)

P.S.: Beijo tua boquinha gulosa

As cartas de amor de Guimarães Rosa para Aracy revelam o lado mais sensual do autor de Grande Sertão: Veredas

MUSA  Aracy Guimarães Rosa, na época em que encantou o escritor. Hoje, ela ainda vive, aos 100 anos

MUSA
Aracy Guimarães Rosa, na época em que encantou o escritor. Hoje, ela ainda vive, aos 100 anos

Olhe bem para a boca da bela mulher do retrato. Para esses lábios, um dos maiores nomes da literatura brasileira escreveu: “Antes e depois, beijar, longamente, a tua boquinha. Essa tua boca sensual e perversamente bonita, expressiva, quente, sabida, sabidíssima, suavíssima, ousada, ávida, requintada, ‘rafinierte’, gulosa, pecadora, especialista, perfumada, gostosa, tão gostosa como você toda inteira, meu anjo de Aracy bonita, muito minha, dona do meu coração”.

Sim, ele mesmo. João Guimarães Rosa, o autor de Grande Sertão: Veredas, entre outras obras-primas da língua portuguesa, o diplomata sempre refinado do Itamaraty, escreveu essas linhas condimentadas e centenas de outras para a grande companheira de sua vida, num estilo que em nada lembra a prosa de Riobaldo e Diadorim. Quando “Joãozinho” escrevia para “Ara” (era assim que eles chamavam um ao outro ), era direto, rasgado, explícito. Só pensava em “boquinha sabida”, “pintazinha do pé esquerdo”, “camisolinha cor-de-rosa”.

O acervo – grande parte dele inédito – é composto por 107 cartas, 44 postais, bilhetes e telegramas, escritos por Rosa para Aracy entre 24 de agosto de 1938 e 18 de agosto de 1960. A pesquisa da correspondência foi confiada a duas estudiosas da obra do escritor, Neuma Cavalcante, da Universidade Federal do Ceará, e Elza Miné, da Universidade de São Paulo. Elas se dedicam agora a escrever a biografia de Aracy Moebius de Carvalho Guimarães Rosa, uma personagem extraordinária por motivos que vão muito além da condição de mulher de grande homem.

O livro será lançado ainda no ano do centenário de Aracy, que se encerra em 20 de abril. “Quando comecei a ler as cartas, fiquei muito tímida, como sempre acontece quando lemos a correspondência de alguém”, diz Neuma. “Fiquei muito emocionada com a vida deles. Aos poucos, senti como se fossem da família.”

A pesquisa foi iniciada no fim da década de 90. Em 2006, Neuma e Elza publicaram um artigo analisando a correspondência amorosa, nos Anais do Seminário Internacional em comemoração aos 50 anos de Grande Sertão: Veredas. Na biografia que preparam, as cartas serão reveladas e ganharão sentido no contexto da vida e da época de Aracy.

Aos 100 anos, Aracy vive em São Paulo com a família de seu único filho, Eduardo Tess. Sofre de mal de Alzheimer e esqueceu-se de quem é. Rosa a conheceu ao desembarcar na Alemanha, em 1938, para assumir o posto de cônsul-adjunto em Hamburgo. No Brasil, ele deixara a primeira mulher e as duas filhas. Aracy, desquitada e com um filho pequeno, era funcionária do consulado. Já era notável por três características: a estampa de atriz, a língua afiada e uma determinação capaz de meter medo nos SS de Hitler. Apaixonaram-se.

Aracy fez sua própria lenda ao ajudar judeus a conseguir vistos para fugir da Alemanha nazista. Ao fazê-lo, ela desobedecia à diplomacia de Getúlio Vargas. Pelas vidas que salvou, recebeu o título de “Justa entre as Nações”, conferido pelo Museu do Holocausto, em Jerusalém.

Rosa morreu praticamente em seus braços, em 1967. Nas três décadas de sua história de amor, ele publicou os livros que o tornaram imortal. A Aracy dedicou sua obra-prima, Grande Sertão: Veredas. Dedicou, não. “Deu”, como explicou ao tradutor do livro para o francês.

A correspondência revela o alcance desse romance da vida real. Aracy era a amante cujo perfume – Femme – ele sentia mesmo quando havia um oceano entre eles. E era a crítica exigente de sua obra: “Melhor ficaria se a minha mulherzinha estivesse ao meu lado, (…) revendo os meus escritos e dando a sua acertada opinião. Digo isso, porque introduzi todas aquelas alterações propostas por você”.

As cartas iluminam o lugar de Aracy nas várias dimensões da vida de Rosa. E algumas são belas. Mas a delícia dessa correspondência, como de boa parte das cartas de amor de grandes literatos, são os trechos de absoluto desatino. As frases derramadas os aproximam da carne imperfeita dos leitores. Cada excesso, uma fragilidade exposta. Como apaixonado, o gênio é um homem comum. Até mesmo Fernando Pessoa – Todas as cartas de amor são ridículas/Não fossem ridículas não seriam cartas de amor – provou a agudeza de sua poesia ao cometer algumas bem estapafúrdias. Do amor ninguém escapa: nem os príncipes de Gales, nem os gênios.

Rosa reinventou a língua em sua obra, mas, como qualquer homem, ao pegar da caneta para escrever à amada, não inventou coisa alguma. Nada de “nonada”. No amor, era só “João Babão”. É um Rosa deliciosamente prosaico que emerge dessas linhas, chamando sua mulher de “m%” (“meu cem por cento”). E disposto a tomar veredas estilisticamente arriscadas para honrar os “pezinhos” de Aracy: “Meu amorzinho, podes, claro, comprar os três pares de sapatos de que gostaste. Se sobrar algo, compra outros chinelinhos, também. E… traz, depressa, os pezinhos para mim…”.

FELINOS  Rosa gostava de gatos porque são animais “contemplativos”. Aracy chamava o marido de “Gatão”, por conta de seu temperamento caseiro

FELINOS
Rosa gostava de gatos porque são animais “contemplativos”. Aracy chamava o marido de “Gatão”, por conta de seu temperamento caseiro

Trechos de cartas escritas por Guimarães Rosa para Aracy entre 1938 e 1960

”Mas meu amorzinho, para mim você não é só corpo, se bem que você é e será sempre a minha Vênus, a minha cocaína, o diabinho carnal que se apoderou da minha pele e penetrou em mim até a medula dos ossos.”

”Quando é que irás compreender que eu sou mais teu do que é tua aquela pintazinha que tens no pé esquerdo, ou do que aquela verrugazinha que tens no flanco?”

”Será que você está nesta hora também pensando em mim? Agora vou para a cama, para dormir com a camisolinha cor-de-rosa, depois de conversar um pouco com os chinelinhos chineses, que me falarão dos lindos pezinhos de sua dona.” (25/8/1938)

“Uso externo:
Sorriso para o amado 10,0 grs
Cara fechada para os outros 5,0 grs
Tintura de gentileza 5 gotas
Pó de bom humor 5,0 grs
Vaselina 30,0 grs (rasurado)
Uso explicado.
VI-VI-939
Dr. João Babão”

FANTASIA  Aracy vestida para um baile de Carnaval no anos 20, antes de conhecer Rosa

FANTASIA
Aracy vestida para um baile de Carnaval no anos 20, antes de conhecer Rosa

”O Ilmar mostrou-me hoje um colar de pérolas naturais, que havia comprado para ela. Gostarias? Dizem que vale a pena comprar jóias antigas, algumas com pérolas, que são bonitas e não tão caras como no Brasil. Também estou em busca de rendas de encaixe. Pretendo assistir a um desfile de modelos, em grande costureiro. O que me agradaria seria comprar um belo modelo para ti, meu amor.” (Paris, 18/8/1946)

”Sinto e tenho a necessidade tremenda de sentir o amor como cousa NÃO HUMANA, SUPER-HUMANA, sublime, acima de tudo merecendo todos os sacrifícios, mesmo os mais inauditos. Sempre precisei disto. Isto ou nada. ‘Ou a perfeição, ou a pândega!’ Não me satisfaria um amor burguês, morno, conformado, dosado, raciocinando sobre conveniências ou inconveniências. Quando conheci você, estava já descrente de encontrar a mulher que seria a MINHA, capaz de sentir como eu e amar assim.” (Bogotá, 24/3/1943)

”Os outros eu conheci por ocioso acaso. A ti vim encontrar porque era preciso.” (1946)

PERSONAGENS DE ROMANCE  O casal em noite de gala, no início de sua história de amor

PERSONAGENS DE ROMANCE
O casal em noite de gala, no início de sua história de amor

Seriam duas alegrias enormes: a chegada de ARA e a chegada de SAGARANA. (Mas, em caso de perigo – TÓI! Tói! Tói! – joga fora o Sagarana e venha só a ARA, que é trezentos bilhões de vezes mais importante para mim.” (24/3/1946)

Para mim tuas cartas são como marmelada, doce de laranja, aipim, manjar branco, artigo elogiando ‘Sagarana’ no suplemento do jornal… Oh, Ara, que feitiço é esse?” (24/9/1946)

Serás tudo para mim: mulher, amante, amiga e companheira. Sim, querida, hás-de ajudar-me, ao escrever os nossos livros. Não só passarás à máquina o que eu escrever, como poderás auxiliar-me muito. Tu mesma não sabes o que vales. Eu sei. Sei, e sempre disse, que tens extraordinário gosto, para julgar coisas escritas. Muito bom gosto e bom senso crítico. Serás, além de inspiradora, uma colaboradora valiosa, apesar ou talvez mesmo por não teres pretensões de ‘literata pedante’. E estaremos sempre juntos, leremos juntos, passearemos juntos, nos divertiremos juntos, envelheceremos juntos, morreremos juntos.” (6/11/1942)

Assim, querida, ‘chérie’, eu me despeço. Com um abraço tão forte que depois de abraçada você ficará ainda presa contra o meu corpo e só com dificuldade poderá se desprender. Então eu beijarei a luz dos teus olhos e o riso da tua boca. Amo-a, Ara.”

(Publicado na Revista Época em 05/09/2008)

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