O que o velho Araweté pensa dos brancos enquanto seu mundo é destruído?

Se não nos movermos, o mundo encolherá para além do imaginável. Não só no lá distante. Mas aqui. (Tudo agora é um grande aqui.) Era Belo Monte, agora é Belo Monte + Belo Sun. Antes era energia. Agora é ouro. É monstruoso o que está acontecendo com os povos indígenas, e os impactos de Belo Monte mal começaram. E, mesmo com uma tragédia em curso e se agravando, Belo Sun foi liberada dias atrás na já arrasada Volta Grande do Xingu, também atingindo terras indígenas. Etnocídio não pode ser uma palavra desencarnada. Escrevi este texto para lembrar do sangue e da alma dos que morrem. Já vi muita coisa nesses Brasis tantos, mas fui marcada pela experiência deste final de janeiro. A experiência de existir violentamente.

Sei que às vezes é árido ler sobre Belo Monte. Mas garanto que é mais árido para os Araweté e outros, que passam horas sentados em nossas cadeiras de plástico, ouvindo sua morte ser decretada numa língua que não compreendem.

Foto: Lilo Clareto

Foto: Lilo Clareto

O Brasil etnocida avança na Amazônia paraense: primeiro Belo Monte, agora Belo Sun

Ele era um ancião. Seu povo, Araweté. Tinha o corpo vermelho de urucum. O cabelo num corte arredondado. E estava sentado ereto, as mãos abraçando o arco e as flechas à sua frente. Ficou assim por quase 12 horas. Não comeu. Não vergou. Eu o olhava, mas ele jamais estabeleceu um contato visual comigo. Diante dele, lideranças indígenas dos vários povos atingidos por Belo Monte se revezavam no microfone exigindo o cumprimento dos acordos pela Norte Energia, a empresa concessionária da hidrelétrica, e o fortalecimento da Funai. Ele, como outros, não entendia o português. Estava ali, sentado numa cadeira de plástico vermelho, no centro de convenções de Altamira, no Pará. O que ele via? Há 40 anos, ele e seu povo nem mesmo sabiam que existia algo chamado Brasil. Possivelmente isso siga não fazendo nenhum sentido, mas agora ele está ali, debaixo de luminárias, sentado numa cadeira de plástico vermelho, aguardando seu destino ser decidido em português. O que ele via?

Não sei o que ele via. Sei o que eu via. E o que vi me fez alcançar não uma dimensão dele, mas de mim. Ou de nós, “os brancos”. Sempre que escrevo sobre os meandros técnicos e jurídicos de Belo Monte, e agora também de Belo Sun, sei que perco algumas centenas de leitores por frase, por mais que simplifique o que é complexo. Porque a linguagem da justiça, assim como a da burocracia, com todas as suas siglas, é feita para produzir analfabetos mesmo em quem tem doutorado em letras. Mas o que resta para os indígenas que se esforçam para se expressar na língua daqueles que os destroem no mesmo momento em que a vida é destruída? O que resta para o velho Araweté sentado ali por quase 12 horas? Ele não tem escolha, já que é com estas palavras que sua existência é aniquilada.

 

Leia na minha coluna no El País