A grande aventura

Amar é mais arriscado que desbravar a natureza selvagem

Acabo de chegar do cinema. Fui sozinha assistir “Up – Altas aventuras“, a nova animação da Pixar. É aquele filme em que um velhinho sai voando em sua casa suspensa por balões quando vêm buscá-lo para levá-lo para um asilo. Ele voa com toda a sua vida junto. Vai para o futuro, rumo a um sonho do passado. Quer justificar a sua vida – talvez mais que a sua, a da mulher que ama. Conheceram-se quando eram duas crianças que sonhavam viver grandes aventuras, explorar o mundo. Agora viúvo, cheio de dores, apoiado em sua bengala, Carl Fredricksen (esse é o nome dele) voa em busca da terra das cachoeiras gigantes de sua infância, naquela que parece a mais arrojada de todas as expedições de uma vida que vale a pena. Descobre então que não há aventura maior – e mais arriscada – que a vida compartilhada com quem se ama.

Não, eu não contei o fim do filme. Só a vida de todos nós. Uma fábula que, de tão banal que é, nem sempre alcançamos. Nos últimos anos, por diferentes motivos, acompanhei o fim da vida de muitas pessoas. Algumas delas não morreram, mas viveram a experiência de ter a morte bem concreta, logo ali no dia seguinte. Bem perto do fim, o que elas queriam saber é se a vida delas havia sido uma vida plena. O que precisavam ter certeza é que sua existência tinha valido a pena. Percebi que só morriam em paz aqueles que se reconciliavam com a vida vivida. Com todas as suas perdas, desistências e covardias. Com os limites todos, sendo o maior deles a morte logo ali adiante. Os que não conseguiam olhar para sua própria vida com generosidade, morriam agitados, convulsos. Nessa hora, não havia morfina que aplacasse sua dor.

Não há vida que não tenha sua cota de desistências, perdas e covardias. Seja a de um astro de Hollywood que ganha milhões por filme, seja a do mendigo que carrega a casa nas costas, seja a de qualquer um de nós. Nossas semelhanças são avassaladoras. “Up”, essa animação tão adulta (não leve seus filhos com menos de 6 anos), nos dá a chance de uma reconciliação. Não precisamos, como Carl Fredricksen, chegar perto dos 80 anos para descobrir que os pequenos morros que escalamos com nossas pernas nem sempre em forma e nossos pulmões ofegantes foram pelo menos tão altos quanto o Everest. Quanto mais cedo nos reconciliarmos com nossa aventura pessoal, mais cedo estaremos livres para nos lançarmos em descobertas outras.

Há uma frase de Russell, o menino que acompanha Fredricksen nesta aventura, que pode nos ajudar a olharmos para a nossa vida, nem sempre no topo, com a generosidade necessária. Quando já estão em meio à natureza selvagem, a externa e a de si mesmos, o garoto lembra que costumava observar as cores dos carros que passavam com seu pai. E diz a Fredricksen: “Eu sei que é chato, mas são as coisas chatas as que eu mais me lembro”.

É um exercício que vale a pena empreender. Do que você se lembra, o que guardou por todos esses anos? Ouso apostar que, como Russell, você também guarda na sua caixa de jóias da memória as “coisas mais chatas”, as supostamente banais. Eu fiz esse exercício. Lembrei de uma cena, repetida em muitos domingos da minha infância, que pode ser considerada ultrajantemente

Quase todo domingo, meus pais nos botavam no fusca verde-milico (depois substituído por uma Brasília verde-limão). Partíamos felizes para um programa que eu adorava. Chamava-se “ver as casas bonitas”. Eu ficava no meio, por ser a caçula, espremida entre meus dois irmãos. Embora atrapalhasse um pouco a vista, eu gostava porque me sentia quentinha. E então percorríamos o mesmo roteiro que já sabíamos de cor. Invariavelmente fazíamos os mesmos comentários. E cada um de nós tinha a “sua” casa, aquela que considerava “a MAIS bonita de todas”.

Em geral, quem tinha “casas bonitas” em Ijuí eram os médicos, os dentistas e os empresários que haviam se dado bem no tal do Milagre Econômico da ditadura militar. Como se pode imaginar, a cidade não era exatamente um pólo de expansão imobiliário. Demorava para aparecer algo novo no nosso roteiro. Quando acontecia, nós acompanhávamos com rigorosa atenção cada passo da construção do que nos parecia uma mansão. Se o arquiteto tivesse nos ouvido, algumas imperfeições teriam sido corrigidas a tempo. Quando finalmente alguma casa era concluída, para mim era uma final de Copa do Mundo com placar de 5X0 contra a Argentina.

Meu pai dava uma paradinha discreta, para não chamar a atenção dos donos. A gente olhava e se assombrava. Junto com isso vinha uma sociologia caseira. Cada casa motivava uma avaliação de como fulano tinha ganhado tanto dinheiro de repente. Ou, ao contrário, algum pequeno drama que havia obrigado sicrano a interromper uma construção que nos prometia grandes momentos.

A vistoria das casas bonitas acontecia no finalzinho da tarde de domingo e acabava junto com a luz do sol. Depois voltávamos para a nossa casa bem menos bonita, mas iluminada por dentro. Não havia nenhuma inveja nesse olhar. A gente só gostava de ver coisas bonitas. E eu de tentar imaginar o que acontecia lá dentro, como viviam as pessoas bonitas das casas bonitas.

Foi disso que eu lembrei, acordada pela frase de Russell. Era tão estúpido e, ao mesmo tempo, tão sensacional. Voltei então ao presente. Há algum tempo, não muito, descobri que a maior aventura de todas é amar alguém que escolhemos – e que nos escolhe. O amor é sempre território não desbravado. Entregar-se a ele com toda a verdade de que somos capazes é um enorme risco. Porque damos ao outro um grande poder, o poder de nos refletir.

Aprendi que vale a pena amar aquelas pessoas que, quando nos vimos nos olhos delas, temos vontade de ser alguém melhor do que somos. Elas vêem não apenas aquilo que realmente somos, mas aquilo que podemos ser. Tudo aquilo de bom e de generoso que podemos ser. Não significa que não enxergam nossas imperfeições e mesquinharias, mas que vêem além delas. Então, do lado de cá do espelho, ficamos desejando nos tornar o que vemos refletido lá.

O homem que eu amo tem esse olhos que me vêem boa e bela. E quando ele olha nos meus olhos também se vê bom e belo. A cada ano que passamos juntos, tempos em que a vida nos exigiu muito, cada um de nós chega mais perto do que vê de si no olhar do outro. E isso não tem nada a ver com sermos outros, mas com a capacidade que só o amor generoso tem de nos tornar mais radicalmente o que somos.

Muita gente se pergunta se está com a pessoa certa. Não entendo bem o conceito de “pessoa certa”. Em geral, acho que essa pergunta já diz que algo está errado. Mas se existe um jeito de saber, eu acho que é esse. Quem diz me amar faz de mim alguém não diferente do que sou, mas melhor? Eu faço de quem amo alguém não diferente do que é, mas melhor? Pelo olhar do outro me torno mais o que sou? E vice-versa?

Observo muito as pessoas e suas relações amorosas. Vejo que vão se tornando muito parecidas com aquilo que o outro da relação diz que ela ou ele é. Quando esse olhar não é amoroso, não é generoso, é uma tragédia. Já sabemos disso muito antes da vida adulta, pelo que se tornam as crianças que são realmente amadas, amadas o suficiente para que os pais gastem tempo lhes dando também limites. Mas não só. Amadas o suficiente para serem enxergadas e escutadas e acariciadas. E o que se tornam aquelas que foram aniquiladas pelo olhar dos pais.

Quando crescemos, alguns de nós, que receberam na infância um olhar pouco generoso ou mesmo ausente, reincidem ao buscar um companheiro ou companheira para a vida que repete esse olhar aniquilador. Atribuem para si a missão fadada ao fracasso de mudar o outro. Alterar esse olhar, transformar o outro e o olhar do outro para redimir toda uma vida. E, tentativa após tentativa, encontrando sempre esse mesmo olhar mesquinho, acaba acreditando que é ela ou ele que não vale a pena. É bem triste. Em geral, esses casais passam a vida massacrando um ao outro, já que duas pessoas só ficam juntas se algo nelas se encaixa. Mesmo que seja uma tremenda neurose. É preciso que um dos dois consiga quebrar esse espelho ruim e partir para algo que faça bem a si mesmo.

Dias atrás aterrissou nas minhas mãos um livro da desenhista Carla Caffé, lançado há pouco. Chama-se “Av. Paulista” (CosacNaify). Fui virando as páginas e me encantando de tal maneira que já presenteei pessoas queridas com ele. O que encanta tanto? Carla é uma mulher que senta pelas calçadas da cidade e desenha prédios, praças, túneis, monumentos. Mas o que torna o livro deslumbrante é que Carla desenha a cidade com o olhar de quem ama. A Paulista de Carla é aquela que pode vir a ser. É a Paulista, mas a Paulista depois de se descobrir amada.

Veja o que Carla diz em depoimento no fim do livro. “Gostaria que os meus desenhos transmitissem a mesma generosidade que Saul Steinberg dedicou a Nova York. No cinema de Woody Allen há muito disso. Em Hannah e suas irmãs, duas moças dentro de um carro disputam a atenção de um arquiteto. No caminho, ele vai mostrando os prédios mais bonitos da cidade. É uma maneira de o cineasta educar o olhar das pessoas. Através de seus filmes descobrimos uma cidade fascinante e ainda inexplorada. Passado algum tempo, todos começam a desejar que ela se preserve ou se transforme naquilo. Isso humaniza as pessoas (…) Eu queria fazer uma cidade bonita, um metrô bonito, os prédios bonitos, a rua Augusta bonita. Acho que a gente tem que desenhar mais a nossa cidade. Com amor”.

Descobri recentemente que as casas bonitas de Ijuí não eram tão bonitas assim. Eram até bem sem graça. Mas elas se tornavam bonitas porque meus olhos eram amorosos, meus olhos as viam bonitas. Apertados dentro de um fusca, nós éramos uma família amorosa,olhando para o mundo com olhos generosos. Esse olhar me carregou pela vida afora.

Ao sair do cinema depois de assistir à “Up – Altas Aventuras“, passei no supermercado apenas para comprar, para o homem que me enxerga com os olhos do amor, todas as coisas boas que ele gosta de comer. Ele passou o final de semana trabalhando. Eu sabia que não podia ligar, porque ele estava submerso no caos da gravação de um programa de TV. Mas eu tinha de dar um jeito de alcançá-lo. Mandei então um torpedo dizendo “te amo”. Banal assim. Clichê e piegas. Mas foi a única coisa que me ocorreu para agradecer a ele pela grande aventura que compartilhamos juntos.

Quando ele voltou para casa, nosso apartamento saiu voando. E nem tinha balões.

(Publicado na Revista Época em 07/09/2009)