A Igreja do Livro Transformador

O escritor Luiz Ruffato conta como foi salvo pela literatura

Luiz Ruffato costuma contar que é filho não do primeiro, mas do segundo pipoqueiro mais importante da cidade mineira de Cataguases. O primeiro fazia ponto na Praça Ruy Barbosa, perto dos cinemas e bares. Já seu pai assentava o carrinho na Praça Santa Rita, a da igreja. A pipoca ornava mais com o footing do que com a reza, portanto o concorrente faturava mais. A história serve como uma fita métrica capaz de mensurar a lonjura do salto que fez do filho do segundo pipoqueiro mais importante de Cataguases um dos escritores mais interessantes do Brasil de hoje, com vários prêmios e livros traduzidos em países como França, Itália e Portugal. Quase um milagre, num país tão desigual. Mas, como lembra Ruffato, um milagre da Igreja do Livro Transformador.

Desde que ouvi Luiz Ruffato contar sua história, em Paraty no ano passado, que ficava ensaiando o convite para que ele a compartilhasse com vocês aqui nesta coluna. Há escritores cujos livros a gente ama, mas quando os conhece encarnados, são tão arrogantes e mesquinhos que dá nhaca da obra. Por isso, em geral até prefiro não conhecer os autores dos livros que amo para não misturar as almas – e perder os livros que já possuem um pedaço da minha. No caso de Ruffato, o risco não existe. Ele é uma das pessoas mais encantadoras e generosas que já conheci. Encontrá-lo é como chegar em casa.

Nesta entrevista ele nos conta a história de como foi salvo pela literatura. Se fosse uma igreja mesmo, a do livro transformador, seria o que os religiosos chamam de “testemunho”. Mas a literatura nos salva pelo avesso: porque nos enche de perguntas em vez de respostas, nos inquieta, nos dá comichão e insônia, perturba mais que pernilongo e nos transtorna para todo o sempre ao mostrar que o mundo é grande e sempre além. A literatura acaba nos salvando exatamente porque nos põe a perder dos destinos determinados.

No caso de Ruffato, o destino idealizado pelos pais era de que subisse na vida virando operário especializado, o que ele até foi por uns tempos. O que ele vai nos contar aqui é como de entregador, balconista e torneiro mecânico terminou virando jornalista e depois escritor. Por quais caminhos acabou migrando para Juiz de Fora, entre outras paradas, e depois desembarcando em São Paulo, onde chegou a morar na rodoviária do Tietê por um mês. E também vai nos contar por quê. Sim, porque Ruffato só admitia escrever se encontrasse uma boa razão. Uma forte o suficiente para alimentar o homem e a busca.

Ao perseguir seus porquês, ele tornou-se um dos poucos escritores brasileiros a escrever sobre o universo da classe média baixa. Carrega para as páginas da ficção a subjetividade do trabalhador urbano, até então praticamente um exilado da literatura brasileira. E, para contar essa saga, buscou uma forma que pudesse dar conta desses personagens desenraizados, fragmentados no movimento imposto pela sobrevivência.

Eles eram muitos cavalos (Record) é o livro que deu reconhecimento a Ruffato, pelo qual recebeu os prêmios Machado de Assis e APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte). Agora, ele escreve o quinto e último volume da saga que chamou de Inferno Provisório (Record), dos quais quatro já foram publicados: Mamma, son tanto Felice, O mundo inimigo, ambos premiados pela APCA, Vista parcial da noite, pelo qual ganhou um Jabuti, e O livro das impossibilidades.

Dividi sua história em tópicos, para facilitar a leitura. Como nos romances de Ruffato, é possível começar pelo fim ou mesmo pelo meio. E depois ir ao começo. Ou seguir a trajetória mais ou menos linear. Cada leitor descobre seu rumo. Abusei um pouco do fato de a coluna ser minha e marquei as partes que achei mais lindas.

Boa leitura. Espero que você também faça parte desta Igreja!

A bibliotecária que estava lá

“Na minha casa não tinha livros. Meu pai, Sebastião, um pipoqueiro semianalfabeto, e minha mãe, Geni, uma lavadeira de roupas analfabeta, sabiam da importância da educação para o futuro dos três filhos, mas lutavam com muitas dificuldades pela sobrevivência cotidiana.

Antes dos 12 anos, eu lia algumas coisas que por acaso caíam em minhas mãos, revistas em quadrinhos, bulas de remédio, jornais que embrulhavam verduras, até mesmo algum livro (lembro-me, por exemplo, de um título, Os últimos dias de Pompeia, de Lord Bulwer-Lytton, avidamente consumido numa tarde de calor, às escondidas, no quarto de uma vizinha costureira, sombrio e abafado…).

Mas, um dia, meu pai e eu estávamos trabalhando numa das praças de Cataguases, minha cidade natal, num domingo após a missa das sete horas, quando um senhor se aproximou e, após comprar um pacotinho de pipoca, perguntou se eu estava estudando e onde. Meu pai respondeu que sim e declinou o nome de uma péssima escola, em fama e ensino. Ele perguntou por que eu não estava no Colégio Cataguases, uma ótima escola pública, onde estudava a elite econômica. Meu pai explicou que todos os anos tentava uma vaga, mas nunca conseguia. O homem, talvez condoído, naquele momento, pela postura humildemente decepcionada do meu pai, falou que era diretor lá e que no ano seguinte ele garantiria minha matrícula.

E assim foi. Em fevereiro, aos 12 anos, eu, de uniforme novo, estreava a minha timidez nos corredores do Colégio Cataguases. Mas tudo era tão diferente! Até então, eu estudava à noite no Ginásio Comercial Antônio Amaro, uma escola mantida pela comunidade, que nem sede tinha, todo ano alugava o imóvel de uma escola pública para o curso noturno, e trabalhava de dia. Além de ajudante do meu pai, entregava as trouxas de roupa que minha mãe lavava e passava, e já havia sido caixeiro em um botequim.

No Colégio Cataguases as aulas eram de manhã e os colegas estranhos. Fui designado para uma classe de repetentes (a maioria por indisciplina) e não consegui me adaptar ao novo ambiente. Comecei então a, nos intervalos, me afastar para os cantos. Até que um dia descobri, maravilhado, que existia um lugar tranquilo, silencioso, pouco frequentado… E passei a fazer daquele espaço, a biblioteca, o meu refúgio.

Só que, após me ver várias vezes por ali, sentado sem fazer nada, a bibliotecária provavelmente pensou que eu quisesse o empréstimo de um livro, mas que, por algum motivo, vergonha talvez, eu não tivesse coragem de me dirigir a ela. Então, tomando a iniciativa, ela me chamou um dia, preencheu uma ficha, colocou um livro em minha mão e disse: Leva esse, leia e me devolva daqui a tantos dias… Eu, muito tímido, não contestei. Enrubescido, peguei a brochura, enfiei na pasta e carreguei para casa.

Quando cheguei, a primeira coisa que meu pai perguntou, como ele fazia sempre que aparecíamos com algo diferente em casa, foi: O que é isso, menino? Eu respondi, sem graça: Um livro. E ele: Onde você pegou isso, menino? Eu: Peguei não, pai, foi a moça lá que me deu… Ele: Deu? Eu: É, ela falou pra eu ler e devolver pra ela. Ele: Se ela falou pra você ler, vai ler então!

Dias depois, levei-o de volta, e a bibliotecária perguntou, desconfiada: Leu o livro? Respondi: Sim, senhora. E ela, exultante, falou: Que bom! Então, tome este. Eu, obediente, levei-o para casa, li, devolvi, e ela, achando que havia conquistado um novo leitor, passou o ano inteiro me emprestando livros. Lembro, por exemplo, que li todos os volumes do Tesouro da Juventude…

Ao fim daquele ano, inadaptado ainda, saí do Colégio Cataguases e voltei para o Antônio Amaro, onde, estudando à noite, retomei o trabalho durante o dia (balconista de armarinho, operário têxtil). Mas, de alguma maneira, havia sido contaminado pelo vírus da leitura.”

O livro que foi um abalo sísmico

“Aquele primeiro livro, que não sei por que estava naquela biblioteca e muito menos porque a bibliotecária achou que eu iria gostar, me mudou completamente. O livro se intitulava Bábi Iar, do escritor ucraniano, à época soviético, Anatoly Kuznetsov, e era um documentário ficcionalizado de um massacre de judeus pelo exército alemão em Kiev.

Foi quando, pela primeira vez, tomei consciência de várias coisas ao mesmo tempo: de que o mundo era mais amplo que eu imaginava (até então eu conhecia, fora de Cataguases, apenas Ubá e Rodeiro, onde moravam meus parentes, e Santos Dumont, onde meu pai permaneceu durante um ano internado num sanatório para tuberculosos); e que neste mundo amplo havia outras línguas, outros povos, outras religiões, outros climas, outras geografias; e que neste mundo amplo havia também a perversidade, a violência, a estupidez extremadas – ao fim e ao cabo, descobri que o mundo era barbárie e era civilização…

E em pleno outono cataguasense (modo de dizer, porque lá é sempre verão…) eu senti o frio glacial da Ucrânia, e senti medo e compaixão, e percebi que mais dia menos dia teria de deixar o conforto, ainda que precário, mas conforto, da casa dos meus pais, da minha cidade, para, atravessando os morros que circundam Cataguases, ver o que haveria alhures…”

Comendo sonho e vivendo feijão

“Passei a dizer para todo mundo, sem saber exatamente o que significava isso, que queria ser escritor, para desespero da minha mãe… Por essa época, havia uma novela na televisão, O Feijão e o Sonho, baseada num romance de Orígenes Lessa, que mostrava exatamente a luta de um professor cheio de sonhos e veleidades literárias, envolvido em terríveis dificuldades financeiras e enovelado na mediocridade de uma pequena cidade do interior…

Minha mãe, muito prática, me fez ver que se quisesse alimentar a idéia de um futuro melhor teria de arrumar uma profissão séria – e que não seria evidentemente a de escritor… Assim, entrei para o Senai, onde me formei em tornearia-mecânica, ao mesmo tempo em que fazia um curso noturno de contabilidade. Se no Senai pensava no feijão, à noite um professor, Alcino Antonucci, me desviava para o sonho, orientando as minhas leituras e incentivando meus primeiros passos na escrita.

Finalmente, um pouco antes de completar 17 anos, percebi que teria de cortar os laços com minha cidade, em definitivo. Por essa época, as grandes greves do ABC haviam interrompido o fluxo natural de mão de obra especializada de Cataguases, e os meus colegas de Senai estavam indo trabalhar na Fiat, na região de Belo Horizonte, ou nas grandes siderúrgicas do Vale do Aço mineiro.

Acabei no meio do caminho: parei em Juiz de Fora, onde trabalhava durante o dia como torneiro-mecânico e fazia cursinho à noite visando o vestibular da Universidade Federal. Entrei no curso de Comunicação Social num momento interessante, pois, vivenciando os estertores da ditadura, podíamos conciliar a luta política com as descobertas pessoais. No meu caso, uma formação literária alicerçada pela generosa orientação do poeta e professor Gilvan P. Ribeiro (antes, no cursinho, duas professoras também me incentivaram, Imaculada Reis e Hilda Curcio).

Neste período, além das minhas atividades políticas, participava de grupos de estudos e de um grupo de poetas que editava um folheto quinzenal, Abre-Alas, com apresentações aos sábados de poesia falada e militante na principal rua de Juiz de Fora, o Calçadão da Halfeld.

E lia, lia muito. Lia livros emprestados de amigos, livros de bibliotecas públicas, livros comprados em sebos, lia tudo que me caía nas mãos, mas principalmente a literatura contemporânea, pois estávamos em pleno boom da literatura brasileira e latino-americana.”

Ler para ser arrancado do lugar

“Eu comecei a me interessar por livros, ou melhor, pela leitura, muito cedo. Lembro-me que meu irmão gostava de ler o Jornal do Brasil aos domingos. Era um calhamaço que eu, de bicicleta, ia comprar numa banca do centro da cidade. Eu separava o caderno de Internacional e, deitado na varanda de casa, no calor sáunico de Cataguases, passava a manhã me informando dos rumos da Humanidade…

Junto com o Jornal do Brasil, eu trazia o jornal O Cataguases, que praticamente não tinha notícias, apenas divulgava os atos do Executivo, do Legislativo e do Judiciário… No entanto, um grupo de escritores da cidade encartava nele um suplemento cultural, o Totem, de literatura… de vanguarda!!! Sim, de vanguarda… Capitaneados por Joaquim Branco e Ronaldo Werneck, difundiam poetas brasileiros e estrangeiros que experimentavam o poema-processo, a arte-postal, o concretismo, o neoconcretismo, o poema-visual… E, mesmo não entendendo absolutamente nada, eu gostava daquilo…

Ou seja: um dos meus primeiros contatos com a literatura foi com a literatura experimental… Acho que isso me causou danos irreversíveis, porque até hoje os meus autores preferidos são os que fazem experiências com as linguagens… Então, desde essa época, venho lendo de maneira quase obsessiva.

Claro, no começo, como disse, de maneira absolutamente caótica – até hoje, às vezes pego um livro e reconheço que já o havia lido um dia, sem saber… Depois, de maneira mais organizada. Mas tento ler todos os dias. Nem sempre só coisas que me agradam, claro, pois, como escritor profissional, muitas vezes sou obrigado a fazer leituras profissionais, mas busco sempre ter algum prazer na leitura – prazer estético, entenda-se, como me extasiar com a forma como um escritor conduziu sua história, ou como um poeta constituiu imagens singulares… Gosto de ler algo que desafie a minha inteligência, que me faça sair do meu lugar de conforto, que me transforme.”

De bar em bar, vendendo palavras

“É estranho, porque a experiência da leitura, no meu caso, se desdobrou quase concomitantemente com a necessidade de me expressar. Logo após o impacto das primeiras coisas lidas, escrevi meu primeiro livro, aos 15 anos, um pequeno romance, Domingo o almoço é lá em casa, que contava a história de uma família que largava a roça pela cidade e as agruras deste deslocamento, batido à máquina numa Hermes Baby. Ou seja, minha primeira experiência foi na prosa, não, como seria natural, na poesia…

Minha mãe guardava a pasta de cartolina que enfeixava as páginas datilografadas como um tesouro – isso, muito antes de eu publicar meu primeiro livro, profissionalmente… Em Juiz de Fora, durante o cursinho, ganhei uma bolsa (que me isentava do pagamento das três últimas mensalidades do ano) ao vencer um concurso de contos (o primeiro e o segundo lugares!). Depois, quando entrei para a universidade, animado com o clima de urgência do grupo do qual fazia parte, publiquei meu primeiro livro…

Incentivado por um amigo, prematuramente falecido, José Henrique da Cruz, lancei O homem que tece, poemas, em formato de bolso, rodado em off-set, edição de mil exemplares, esgotado em menos de seis meses… Vendíamos de mão em mão, nos bares da cidade, e com o dinheiro arrecadado pagamos a gráfica e financiamos outros livros da mesma natureza.

Curioso, porque tanto o meu ‘primeiro romance’ quanto o ‘primeiro livro de poemas’ tratam de temas que seriam retomados, décadas mais tarde, no projeto que estou desenvolvendo agora, o Inferno provisório... Depois disso, ainda publiquei outro livro de poemas, Cotidiano do medo, já quando morava em Alfenas, sul de Minas… Esta seria a minha infância literária.”

Rodoviária do Tietê: a primeira casa em São Paulo

“Eu cheguei em São Paulo e, não querendo amolar algumas (poucas) pessoas que conhecia, e não tendo dinheiro para ir para um hotel ou pensão, dormia nos bancos da Rodoviária do Tietê. Isso durou um mês – dormia lá nas noites de segunda a quinta-feira, já que na sexta-feira eu dormia na poltrona de um ônibus em direção a Minas Gerais, onde passava o fim de semana (para renovar as roupas…), e a noite de domingo eu passava dormindo na poltrona de um ônibus, voltando para São Paulo…

Fiz algumas amizades por lá, inclusive com um policial, que, na primeira noite, não queria me deixar dormir dentro do prédio… Eu então expliquei para ele a minha situação e ele, condoído, tomava conta de mim… Eu chegava na rodoviária depois do trabalho, tomava um banho, comia qualquer coisa, e dormia sentado (os bancos da rodoviária, estranhamente, são feitos para provocar desconforto nos passageiros)…”

Em busca de voz própria

“Me calei, não escrevendo uma linha sequer, durante toda a ‘década perdida’ brasileira – que compreende mais de 10 anos, pois vai dos inícios da década de 1980 até meados da década de 1990. Este período foi um momento de maturação. Eu sabia que iria retomar a escritura, mas não me sentia pronto ainda. E assim, sem angústia ou ansiedade, fui tentando compreender por que deveria escrever, sobre o que, e, principalmente, como…

Até que em 1998 lancei Histórias de remorsos e rancores, seguido dois anos depois de (os sobreviventes), ambos coletâneas de contos, que, já ressoando minha voz literária, ainda não me satisfaziam do ponto de visto formal… Estes livros, embora tenham vendido bem, e o segundo tenha até mesmo recebido uma menção especial no Prêmio Casa de las Américas, não serão mais reeditados. Na verdade, foram incorporados, reescritos, ao projeto Inferno Provisório. A minha estréia, propriamente dita, considero Eles eram muitos cavalos, um exercício literário que me fez compreender sobre o que e principalmente como escrever…

Escrever, como ler, tem que ter, para mim, um componente de prazer estético, tem que ser um desafio intelectual. Porque, antes de tudo, escrevo para mim, escrevo histórias que gostaria de ler. Penso que uma história, para convencer o leitor, tem antes, necessariamente, que convencer o autor. Se me convenço de sua necessidade, se o que tento passar me comove esteticamente, talvez eu possa então comover o leitor, porque pode ser que haja ali uma verdade.”

O mundo da classe média baixa

“Passei um longuíssimo período afastado da escrita literária porque estava mergulhado na comezinha sobrevivência cotidiana, e também porque estava refletindo sobre algumas questões essenciais: para que escrever, sobre o que escrever, como escrever?

Aliás, eu tinha sim uma idéia de sobre o que escrever. Me parecia lógico que minha literatura deveria retratar o mundo que eu conhecia bem, o do trabalhador urbano, os sonhos e pesadelos da classe média baixa, com todos os seus preconceitos e toda a sua tragédia.

No entanto, quanto mais pesquisava, mais me dava conta de que pouquíssimos autores brasileiros haviam se debruçado sobre esse universo, talvez porque o trabalhador urbano não suscite o glamour, por exemplo, que suscita o malandro ou o bandido – personagens sempre presentes na ficção nacional, representados do ponto de vista da classe média como desestabilizadores da ordem social.

Por outro lado, me dei conta de que os indivíduos oriundos da classe média baixa, que conhecem e poderiam escrever sobre esse universo, sempre tiveram que negar suas origens para serem aceitos na nossa sociedade, que é extremamente hierarquizada e preconceituosa. Retrospectivamente, se pensarmos no personagem ‘trabalhador urbano’ (não o militante político, bem entendido) temos poucos representantes na literatura brasileira. Talvez o único autor que tenha feito deste tema o motivo de sua ficção seja Roniwalter Jatobá, ele mesmo ex-operário.”

Qual é a forma que dá conta deste mundo?

“Se eu sabia que queria retratar esse universo em meus livros, faltava responder à questão seguinte: como escrever sobre esse tema?

O romance tradicional nasce no Século XVIII como instrumento de descrição da realidade do ponto de vista da burguesia. Ou seja, o romance ideologicamente serve a uma visão de mundo específica. Então, qual seria a forma adequada de representar o ponto de vista da classe média baixa ou do trabalhador urbano?

Eu tentei então me filiar a uma família literária que surge paralelamente ao aparecimento do romance tradicional, que poderíamos chamar de anti-romance, que espasmodicamente construiu uma tradição: Sterne, Xavier de Maistre, Richardson, Dujardin, Machado de Assis, Joyce, Proust, Breton, Faulkner, Robbe-Grillet, Calvino, Pérec… E poderíamos incluir ainda nessa tradição, que chamaríamos de ‘literatura experimental’, contistas como Tchekov, Pirandello, Katherine Mansfield, e poetas como Mallarmé e os vanguardistas do começo do século XX.

Então, em 2001, lancei Eles eram muitos cavalos, nascido da necessidade de tentar entender o que estava acontecendo à minha volta – e para isso tomei a cidade de São Paulo como síntese da sociedade brasileira. Publicado, me encontrei num impasse: havia proposto uma reflexão sobre o ‘agora’, mas talvez necessitasse compreender antes ‘como chegamos onde estamos’.

Comecei a elaborar o Inferno Provisório, uma ‘saga’ projetada para cinco volumes, dos quais quatro já publicados, que tenta subsidiar essa inquietação, discutindo a formação e evolução da sociedade brasileira a partir da década de 1950, quando tem início a profunda mudança do nosso perfil socioeconômico, de um modelo agrário, conservador e semifeudal para uma urbanização desenfreada, desarticuladora e pós-industrial, e suas consequências na desagregação do indivíduo. Ou seja, pulamos da roça para a periferia decadente urbana sem escalas…

Evidentemente, essa descrição abarca apenas a superfície da narrativa. É o entrecruzamento das experiências ‘de fora’ e ‘de dentro’ dos personagens o que me interessa. Importa-me estudar o impacto das mudanças objetivas (a troca do espaço amplo pela exiguidade, a economia de subsistência pelo salário, etc) na subjetividade dos personagens. Enfim, refletir sobre a interpenetração da Historia com as histórias.

Só que não compreendo uma discussão sobre essa cisão sem que sejam colocados em xeque os próprios fundamentos do gênero romance. Do meu ponto de vista, para levar à frente um projeto de aproximação da realidade do Brasil de hoje, torna-se necessária a invenção de novas formas, em que a literatura dialoga com as outras artes (música, artes plásticas, teatro, cinema, etc) e tecnologias (internet, por exemplo), problematizando o espaço da construção do romance, que absorve onivoramente a estrutura do conto, da poesia, do ensaio, da crônica, da oralidade…

Cada volume do Inferno Provisório é composto de várias unidades compreensíveis se lidas separadamente, mas funcionalmente interligadas, já que se desdobram e se explicam e se espraiam umas nas outras, numa ainda precária transposição da hipertextualidade. Então, pode-se ler de trás para frente, pedaços autônomos ou na ordem que se quiser estabelecer, assumindo um sentido de circularidade, onde as histórias se contaminam umas às outras.”

Por que escrevo?

“Definido o tema, definida a forma, restava-me ainda uma questão: para que escrever?

Para mim, escrever é compromisso. Compromisso com minha época, com minha língua, com meu país. Não tenho como renunciar à fatalidade de viver nos começos do século XXI, de escrever em português e de viver num país chamado Brasil. Estes fatores, junto com a minha origem social, conformam toda uma visão de mundo à qual, mesmo que quisesse, não poderia renunciar.

Fala-se em globalização, mas as fronteiras entre os países caíram para as mercadorias, não para o trânsito das pessoas. Proclamar nossa singularidade é uma forma de resistir à mediocrização, à tentativa de aplainar autoritariamente as diferenças culturais. A realidade se impõe a mim e o que move o meu olhar é a indignação.

Não quero ser cúmplice da miséria nem da violência, produto da absurda concentração de renda do país. Por isso, proponho, no Inferno provisório, uma reflexão sobre os últimos 50 anos do Brasil, quando acompanhamos a instalação de um projeto de perpetuação no poder da elite econômica brasileira, iniciado logo após a segunda Guerra Mundial com o processo de industrialização brutal do país, com o deslocamento impositivo de milhões de pessoas para os bairros periféricos e favelas de São Paulo e Rio de Janeiro.

O imigrante, a qualquer tempo, carrega consigo a sensação de não pertencimento, fazendo com que a sua história pessoal tenha de ser continuamente refundada. Partir não é só desprender-se de uma paisagem, de uma cultura. Partir é principalmente abandonar os ossos dos antepassados, imersos na solidão silenciosa dos cemitérios. E os ossos são aquilo que nos enraízam numa história comum, feita de dor e luta, de alegrias e memórias.

Rompido esse lastro, perambulamos sem saber quem somos. E se não temos autoconsciência, se permanecemos imersos na inautenticidade, não reconhecemos o estatuto do outro, do diferente de nós. E perdido esse reconhecimento, instaura-se a barbárie.

A Arte serve para iluminar caminhos: e se ela modifica o indivíduo, ele é capaz de modificar o mundo. Para isso, portanto, escrevo.”

Sem a literatura, só teria restado o destino

“Em algum momento percebi, sem o saber, que meu destino já estava mais ou menos traçado. Meus pais, muito pobres, migraram para Cataguases em busca de uma vida melhor não para eles, mas para os filhos. Minha mãe é filha de imigrantes italianos que foram parar numa colônia no interior de Minas Gerais, na região de Rodeiro, e meu pai, filho de imigrantes portugueses – órfão de pai e de mãe aos dois anos, foi criado por uma família italiana de uma colônia na região de Dona Eusébia.

Eles chegaram sozinhos a Cataguases, sem nada. Mas a cidade, por ser um polo industrial consolidado desde os começos do Século XX, oferecia oportunidades de trabalho e possuía uma razoável infraestrutura educacional para, principalmente, a formação de mão de obra para o parque têxtil. E foi nisso que meus pais apostaram. Logo, minha mãe sustentava a casa com suas lavagens de roupa, enquanto meu pai, de saúde precária, não conseguindo emprego estável nas fábricas, passou a vendedor de pipocas.

O sonho de meus pais, portanto, era que nos formássemos, nos tornando empregados da indústria, ganhando um salário, constituindo família, comprando casa própria e bons eletrodomésticos. Meu irmão se formou no Senai e aos 26 anos era mestre-geral numa das tecelagens da cidade – mas uma morte estúpida encerrou sua carreira quando ela mal começava… Minha irmã, que foi tecelã durante algum tempo, largou a fábrica para se casar – uma atitude muito comum entre as meninas à época – e mais tarde tornou-se funcionária pública municipal, como merendeira escolar. E eu, embora tenha me formado também no Senai, acabei contrariando todo mundo, saindo de Cataguases e me jogando no mundo…

Provavelmente, ou melhor, certamente meu destino, se tivesse permanecido lá, seria hoje estar aposentado como operário especializado, com família, filhos, casa própria e bons eletrodomésticos…”

Primeira leitora: a mãe analfabeta

“A minha relação com Cataguases é estranha. Lá eu nasci e vivi até meus 16 anos. Depois disso, voltei apenas como visitante esporádico. Quando meus pais eram vivos, gostava de me entocar na casa deles, num bairro operário da periferia da cidade, e passava as horas conversando com minha mãe, uma mulher de uma visão de mundo inacreditavelmente complexa, compreensiva e reflexiva. Infelizmente, ela morreu em 2001, pouco depois do lançamento de Eles eram muitos cavalos, livro que, de certa forma, projetou meu nome.

Não tive, portanto, a felicidade de demonstrar que todo o sacrifício que ela fez pelos filhos, e por mim, especificamente, tinha redundado em alguma coisa… Eu me lembro que quando escrevi aquele que considero meu primeiro livro, Histórias de remorsos e rancores, eu o li inteiro para ela, ainda antes da edição, para ver se ela o aprovava… E sua reação foi fantástica: ela se emocionou com as histórias, reconheceu o que havia ali de fabulação biográfica e me disse: Tenho um grande orgulho de você, meu filho. Aquilo serviu para que eu tomasse pé e acreditasse que estava no bom caminho…

Depois, li também os originais do meu segundo livro, (os sobreviventes), e de novo ela se emocionou profundamente. O Eles eram muitos cavalos, embora tenha sido iniciado (digamos assim, ‘mentalmente construído’) durante as férias de 2000 na casa dos meus pais, eu não o pude ler para ela. No carnaval de 2001 descobrimos que ela estava com um câncer fulminante – daquele mês até novembro, quando ela morreu, eu fui a Cataguases todos os fins de semana que não trabalhava no jornal, viajava 1,2 mil quilômetros, ida e volta. Saía de São Paulo na sexta-feira à noite e chegava de volta na segunda-feira pela manhã. Acompanhei de perto seus últimos meses…

Meu pai morreu pouco depois, em 2003. Restou em Cataguases apenas a família da minha irmã.”

Voltar é possível? A terra depois da partida

“A minha solidão, nesse sentido, existe desde sempre. Em Cataguases éramos estrangeiros – inclusive porque lá nunca houve uma colônia de italianos, como em outros lugares da região. Não pertencíamos à cidade e as minhas férias, por exemplo, as grandes (de dezembro a fevereiro) e as pequenas (de julho), eu passava na roça, na fazendola do meu avô, em Rodeiro, à época já dividida entre vários irmãos. Depois, fui para Juiz de Fora, Alfenas e, finalmente, São Paulo (passando, rapidamente, por Vitória e Rio de Janeiro).

Eu brinco que sou o exemplo típico daquele ditado: não tem onde cair morto… Porque não pertenço a lugar algum. Não sou de São Paulo (onde sempre serei considerado alguém ‘de fora’), não sou de Alfenas, nem de Juiz de Fora, nem de Cataguases, mas também não sou de Rodeiro nem de Ubá… Quando morrer, não sei onde serei enterrado… Talvez venha daí a temática mais presente em minha literatura: o desenraizamento, o despertencimento, a solidão e a perplexidade de não ter um lugar…

Sem bloqueio artístico

“Eu encaro o fato de ser escritor como uma profissão. Então, todos os dias, acordo às seis da manhã, tomo café, leio o jornal, e mais ou menos às sete, sete e meia, sento-me ao computador e começo a trabalhar. Vou nessa toada até meio-dia, mais ou menos. Quando estou em viagem, geralmente por conta de palestras, participação em feiras e festivais literários, não escrevo. A essa rotina me dedico apenas quando estou em São Paulo. Porque, para mim, são dois momentos diferentes, embora complementares, da minha atividade literária. Essa, a da solidão da escrita; e aquela, da divulgação dos meus livros.

Havia, e ainda há, certa prevenção das pessoas contra o fato de eu assumir que trabalho com rotinas, metas e prazos, porque, afinal, argumentam, não se trata de um trabalho mecânico, e sim artístico… Ora, acredito que essa visão seja equivocada, porque não há contradição entre disciplina e arte. Grandes artistas plásticos (Da Vinci, por exemplo) e compositores eruditos (Bach, por exemplo) trabalhavam sob encomenda, com prazos pré-fixados e salários no fim do mês… E nem por isso podemos acusá-los de serem menos importantes…

Portanto, nunca tive problemas como ‘falta de inspiração’ ou ‘bloqueio artístico’, porque planejo com bastante antecedência o meu trabalho. Quanto a aproveitar ou não tudo que escrevo… Sentar todos os dias, rotineiramente, para escrever não significa chegar ao fim de quatro, cinco horas de trabalho com algo que preste. Significa apenas isso: sentar quatro, cinco horas em frente ao computador e trabalhar, trabalhar e trabalhar… O resultado muitas vezes é nada… Talvez seja apenas isso que diferencie o trabalho intelectual: ele não pode ser mensurado pragmaticamente, tantas horas trabalhadas, tantas páginas produzidas… A aferição de competência se dá em um outro paradigma.”

O bafo constante da morte

“É estranho, porque, embora tenha consciência de que o homem constrói sua vida sabendo que tem um prazo de validade, penso que, ao mesmo tempo, e talvez exatamente por isso, a existência só faz sentido se for uma busca pela felicidade – não hedonista, mas ética. Gosto de pensar que, ao fim e ao cabo, poderei olhar para trás e me orgulhar do que fiz por mim, pela minha família, pelos meus filhos, pelos meus amigos e até mesmo pelas pessoas desconhecidas.

Essa perspectiva talvez relativize um pouco a dor da perda. Mas essa questão para mim surge sempre de uma forma muito dúbia, porque também percebo claramente que existe uma espécie de visão trágica permeando minha formação. Venho de uma comunidade italiana que, embora professasse (professe) um catolicismo militante, quase carola, sempre estranhamente vivenciou a morte não como uma passagem para a vida eterna, mas como um rompimento injusto com a vida…

E não porque percebesse a vida como um reduto de alegrias – porque na verdade a entende mais como um fardo ao qual nos resignamos. Esse paradoxo teológico-filosófico irresolvível está presente na minha vida, nas minhas histórias.”

A Igreja do Livro Transformador

“A literatura me arrancou da alienação, da ignorância, da falta de perspectivas. Me mostrou que somos seres para a morte e que nós temos que buscar, neste curto intervalo que é a vida, a felicidade. E para isso temos que nos projetar no mundo, nos lançar, nos afastarmos da poltrona do comodismo, da conformidade, para nos proporcionar um sentido.

Esta é a proposta da Igreja do Livro Transformador, que tem como mentores eu e o Rogério Pereira, editor do Rascunho, que experimentou mais ou menos a mesma história de salvação pela literatura. Se depender de mim, a Igreja já será uma realidade ainda este ano… (risos)”

P.S. – Se você quiser, conte aqui a sua história de transformação pela literatura, seja ela um tsunami de alma ou uma ferroada de mosquito. Uma pequena descoberta, uma sensação nova ao ler um determinado livro ou mesmo um sonho.

(Publicado na Revista Época em 31/01/2011)