Uma campanha pela volta do silêncio no cinema
O planeta é dividido entre as pessoas que falam no cinema – e as que não falam. É uma divisão recente. Por décadas, os falantes foram minoria. E uma minoria reprimida. Quando alguém abria a boca na sala escura, recebia logo um shhhhhhhhhhhhh. E voltava ao estado silencioso de onde nunca deveria ter saído. Todo pai ou mãe que honrava seu lugar de educador ensinava a seus filhos que o cinema era um lugar de reverência. Sentados na poltrona, as luzes se apagavam, uma música solene saía das caixas de som, as cortinas se abriam e um novo mundo começava. Sem sair do lugar, vivíamos outras vidas, viajávamos por lugares desconhecidos, chorávamos, ríamos, nos apaixonávamos. Sentados ao lado de desconhecidos, passávamos por todos os estados de alma de uma vida inteira sem trocar uma palavra. Comungávamos em silêncio do mesmo encantamento. Cada experiência era ao mesmo tempo individual e coletiva. E, quando tudo acabava, éramos distantes, mas próximos.
Sigo guardando dentro de mim essa reverência. Assisto aos filmes com o mesmo respeito com que acompanho a apresentação da orquestra no Municipal ou um show na Broadway. Seja um filme japonês ou um blockbuster de Hollywood. Há algo para além do filme, algo que é o cinema. Uma mágica capaz de nos levar à transcendência. Mesmo quando o filme é ruim, não consigo sair na metade. Me soa como desrespeito. Fico. Pelo cinema.
Percebi na sexta-feira que não ia ao cinema havia três meses. Não por falta de tempo, porque trabalhar muito não é uma novidade para mim. Mas porque fui expulsa do cinema. Devagar, aos poucos, mas expulsa. Pertenço, desde sempre, às fileiras dos silenciosos. Anos atrás, nem imaginava que pudesse haver outro comportamento além do silêncio absoluto no cinema. Assim como não imagino alguém cochichando em qualquer lugar onde entramos com o compromisso de escutar.
Não é uma questão de estilo, de gosto. Pertence ao campo do respeito, da ética. Cinema é a experiência da escuta de uma vida outra, que fala à nossa, mas nós não falamos uns com os outros. No cinema, só quem fala são os atores do filme. Nós calamos para que eles possam falar. Nossa vida cala para que outra fale.
Isso era cinema. Agora mudou. É estarrecedor, mas os blablablás venceram. Tomaram conta das salas de cinema. E, sem nenhuma repressão, vão expulsando a todos que entram no cinema para assistir ao filme sem importunar ninguém.
Comecei a escrever essa coluna na sexta-feira e decidi tentar mais uma vez. Vi três filmes entre a sexta e o sábado, em cinemas diferentes. No primeiro, à noite, teve um bate-boca entre um casal e duas adolescentes por causa da conversinha das teen. No segundo, no início da tarde de sábado, um casal de avós com seu neto sentou-se ao meu lado. Achei bonitinho os três, mas temi pelo neto. Nada. O neto comportou-se muito bem, o avô é que manuseava o saco da pipoca como se quisesse torturar o pedaço de papel.
No último, no meio da tarde, aconteceu. Os blábláblás do cinema estão inovando. Estava acomodada, bem feliz, com poltronas vagas entre mim e os próximos cinéfilos, quando entraram duas mulheres pouco antes de iniciar o filme. Não pediram licença, claro. Para que ter boa educação com desconhecidos? Depois de atropelar meus pés, sentaram-se e na mesma hora começaram a conversar. Em inglês. Pronto. Agora os blábláblás são poliglotas. Pensei em berrar um “Shut up!”. Mas optei por um “shhhhhhhhhhhhh” em esperanto.
Confesso, desisti. Cansei de me incomodar. Me parece uma Missão Impossível. Quando os primeiros espécimes de blábláblás surgiram na escalada da involução, eu mudava de lugar. Abandonei os lugares do meio, que até então haviam sido meus preferidos, e passei a ocupar a periferia do cinema, me esgueirando pelos cantos como Nosferatu. Era chato, mas tirando a movimentação inicial, depois que me acomodava longe dos faladores compulsivos, assistia ao filme sossegada. Com o tempo, não adiantava mais trocar de lugar. Para onde você ia, havia um blabláblá. Estavam em toda a parte. E não apenas nos cinemas de rede, mas também nos cinemas mais cabeções da cidade.
Mudei de estratégia. Em vez de chegar cedo, para escollher um bom lugar e ficar alguns minutos só antecipando o prazer que estava por vir, passei a violar meus melhores princípios de pontualidade e a chegar tarde. Quando eu chegava cedo, no último minuto era encurralada por uma gangue de blablablás. E minha sessão estava arruinada. Em vez de assistir ao filme, era obrigada a saber o que eles achavam do filme. Ou do namorado que não apareceu, da pipoca que tinha pouca manteiga, do fulano da firma que disse não sei o que para o chefe. Sempre temas fascinantes para o meu crescimento pessoal.
Comecei a chegar quando os trailers já iam pela metade. Assim, poderia escolher o lugar mais isolado. Aprendi a avaliar um caráter em segundos – e no escuro!!!. Tentava adivinhar quem iria assistir ao filme e quem ficaria falando. Deu certo por uns tempos. Mas logo os blablablás se multiplicaram. Descobri que tinham a mesma capacidade reprodutiva dos roedores. Eles estavam por todos os lados. Falando, falando, falando. Pagavam para falar no escuro. Oquei, poderia ser uma nova modalidade de fetiche: gente que gosta de pagar ingresso para impedir os outros de ver um filme. Não era. Falar no escuro é uma característica dessa nova espécie. Se fosse um fetiche, ainda haveria a esperança de convencê-los a mudar para fetiches mais civilizados. Eu poderia chicoteá-los ou pisar de salto agulha na sua cabeça sem cobrar nada, por exemplo.
Mas não, não seria tão fácil.
Pareço uma pessoa calma. Uma parte de mim não é. Quando me sinto desrespeitada, posso virar um Alien. Sinto mesmo que o meu rosto se deforma, os olhos se esbugalham, um calor toma conta de mim. Sou possuída por um instinto assassino. Quero sangue. Comecei a ter esse tipo de sentimento perturbador. Como sou muito controlada, só eu sabia. O blablablá atrás de mim – ou na frente, ou ao lado – começava a conversar com a colega como se estivesse na manicure. Eu esperava dez minutos regulamentares. Se o bate-papo continuava, tocava o ombro, com toda a delicadeza para não assustar ninguém: “Por favor, seria possível ficar quieta (o)?” Era possível. Eu agradecia, sorridente. Na verdade, era meu maxilar que tinha travado, mas ninguém precisava saber disso.
Por uns tempos bastou mandar um e outro calar a boca com a maior finura. Durou pouco. Para meu desespero, descobri que os blablablás sofrem mutações. São parecidos com o vírus da gripe suína. No período de uma estação, eles tornam-se mais nocivos. Não adiantava mais pedir silêncio. Os blábláblás ignoravam. No início, pensava que formavam um sub-gênero da grande família dos sem-noção. Descobri que não. Como alguns espécimes do Senado, eles têm noção da diferença entre o público e o privado. (Justamente por ter noção é que preferem empregar namorados de netas no público, não no privado.) Apenas não se importam. Os blábláblás sabem que perturbam, mas não estão nem aí. Acham que, sim, pagaram o ingresso, podem falar à vontade. Afinal, só uma trouxa como eu vai ao cinema para assistir ao filme.
A situação se agravou. Os blablablás começaram a querer briga. Eu também queria briga, mas preferia assistir ao filme. Um dia, um amigo pediu silêncio a um homem que sentava atrás de nós, com seu filho de uns 10 anos. Adivinha qual foi o exemplo de educação que o pai deu ao seu pimpolho? “Ficar quieto o cacete!”. Meu amigo invocou. O pai continuou educando a criança: “Vem calar a minha boca, então”. Aconteceu. Os dois saíram do cinema e se encontraram na esquina do shopping. Era uma comédia romântica, virou um filme de terror.
Uma outra vez, fui com minha filha assistir a um filme japonês. Não no Cinemark, mas no Unibanco Arteplex. Cinema de gente chique. Estava lotado. Minha filha ficou sentada ao lado de dois adolescentes que falaram o tempo todo. Ela não pôde ver o filme, foi obrigada a assistir a eles. Maíra é um tantinho mais nervosa do que eu. Ela suportou calada toda a sessão para não atrapalhar aqueles que não tiveram a sua infelicidade. Só eu, que a conheço bem, sei o quanto deve ter custado esse auto-controle.
Quando a sessão acabou, ela fez um discurso sobre respeito ao outro para os dois adolescentes. A mãe deles estava sentada na poltrona da frente e não gostou que alguém estivesse chamando seus filhos de mal-educados. O fato de seus meninos terem conversado o filme inteiro e importunado quem estava ao redor, para essa boa educadora não era um problema. O problema era uma estranha dizer a eles o que ela devia ter dito assim que aprenderam a dizer “mamãe”, o que deve ter sido lá pelos oito anos de idade. A mulher quis briga com a minha filha. Nesse momento, eu, que tentava acalmar a Maíra, senti meu instinto materno sair pela boca. Estava calculando a distância do salto que devia dar para alcançar a jugular da mulher com meus dentes, quando o moço que limpava a sala me puxou pelo braço: “Não vale a pena”.
É claro que não valia. Naquele dia percebi que acabaria matando alguém. Olhando fixo para os blablablás, eu rememorava as mais sangrentas cenas cinematográficas de todos os tempos. Reeditei versões muito mais violentas de O Massacre da Serra Elétrica. Fui Chucky, o brinquedo assassino. Encarnei até A noiva do Chucky. Em mim, habitavamFreddy Krueger e Jason Voorhees – ao mesmo tempo. Meus remakes do Tubarão 1, 2 e 3 iniciavam pela mesma cena: com o tubarão mascando a parte mais musculosa dos espécimes falantes, a língua. Às vezes evocava apenas clássicos. Na minha versão de Os Pássaros, eu mesma bicava o cérebro dos falantes até alcançar o umbigo.
Inventei roteiros criativos, que me fariam ganhar milhões em Hollywood, não fosse o final previsível. Os blablablás sempre morriam lentamente, em sofrimento: empalados, queimados ou estripados. Às vezes, tudo isso ao mesmo tempo. Sem olhos, um buraco no lugar da boca. Uma vez estava lendo um livro sobre a África e inclui no enredo um exército das vorazes formigas assassinas. Considero meu melhor trabalho.
O problema é que eu não tinha ido ao cinema para aprimorar meu humor-negro. Eu só queria assistir ao filme. E não podia por causa dos cochichos, das risadas, das luzes dos celulares piscando, às vezes até do som dos celulares e blequibeuris e aifones e não sei mais o que tocando, latindo, buzinando, fazendo ola. Eles estavam roubando o meu cinema com a sua voz.
Quando algumas redes inventaram o lugar marcado, entrei em pânico. Tentei despertar em mim poderes paranormais, na tentativa de adivinhar quais poltronas desenhadas na tela do computador os blábláblás não ocupariam. O sucesso era aleatório. A vida selvagem dos cinemas só piorava.
Ainda tentei uma última tática. Passei a frequentar as sessões matinais. Só assistia a filmes que passavam no cinema antes do meio-dia. Eu havia descoberto que os blablablás não gostam de cinema vazio. Eles querem casa cheia. Incomodar pouca gente não tem graça. Mas, com isso, fui perdendo muitos filmes, que só passavam em salas com sessões a partir do início da tarde, um horário proibitivo para quem gosta de cinema. E, assim, fui me exilando.
Os blablablás venceram. Percebi que o fenômeno era só a parte mais evidente da falta de limites que viceja por todos os espaços públicos. Você está no restaurante e alguém está falando aos berros. Essa pessoa acha que você foi até ali na esperança de encontrá-la e ouvir suas histórias fascinantes. Você está experimentando roupas numa loja e um garotinho muito bem vestido invade o seu provador porque está brincando de esconde-esconde com a irmã. A mãe acha graça, eu devo achar também. Eu rosno como o personagem de Clint Eastwood em Gran Torino, ela acha ruim.
Mal posso esperar para essa geração crescer, filhos desses pais incapazes de botar limites porque também não têm limite algum. Ao ser obrigada a estudar os hábitos dessa nova espécie de vírus cinematográfico, percebi que eles pensam que fazer o que querem é um direito seu. Respeitar o direito do outro é algo para losers. Gente que se dá bem só faz o que quer. Não liga para os outros. É esse o arcabouço ético que transmitem aos seus filhos, formados à sua imagem e semelhança, enquanto devoram um saco gigante de pipoca de boca aberta. Para fazer mais barulho, claro.
Eu não sou da tribo que acredita que até a pipoca deve ser banida do cinema. No meu ponto de vista, a pipoca tem sua hora e seu lugar. Mas como de boca fechada, pegando com a ponta dos dedos para não incomodar ninguém. E não amasso o saquinho no final para, claro, fazer um pouco mais de barulho. Nem tomo o suco ou o refrigerante arranhando o canudo para, claro, fazer ainda mais barulho.
A blablablalogia – ciência que estuda o fenômeno dos blábláblás – aventa a hipótese de que eles são o resultado da cultura dos videocassetes e dos dvds. Acostumaram-se a assistir a filmes em casa, fazendo o que querem e falando alto. Levaram o (mau) comportamento para o cinema. Pode ser. Mas acho que é um pouco mais complexo do que isso. É uma crise de valores, mesmo. De cegueira para a existência do outro, de indiferença para o destino do outro. Quando falam no meu ouvido, batem o pé na minha cadeira ou são malcriados quando eu reclamo, o que estão dizendo é que o outro não importa. Só o eu importa. Não se trata mais do eu e suas circunstâncias, mas do eu e suas vontades. Sempre absolutas.
A trajetória se inverteu. Eu, que adoro o cinema e o ritual do cinema, fui apartada dele. Encurralada até me refugiar em minha própria casa, no meu próprio dvd, que assisto com as cortinas fechadas e no mais absoluto silêncio. Mas não é a mesma coisa. Ao me tirarem o cinema, roubaram muito de mim. Roubaram toda uma possibilidade de encantamento. E de me sentir comungando com gente com quem nunca troquei uma palavra, mas troquei muito, ali, na sala escura, chorando, rindo e sonhando com os olhos imersos na tela.
Não sei se ainda tem jeito. Essa coluna é uma tentativa. Talvez você tenha perdido o cinema como eu, talvez você tenha uma ideia do que fazer. Parece brincadeira, mas é sério. Já pensei em distribuir panfletos na porta dos cinemas, com algum apelo comovente. Pensei em escrever para todos os colunistas do país e fazer uma campanha nacional pela volta do silêncio na sala escura. Cogitei falar com os donos dos cinemas para exigir que os blablablás fossem retirados das salas, se não atendessem à primeira advertência. Como o seriam se estivessem em qualquer outra sala de espetáculos. Estudei a volta dos lanterninhas, mas cheguei a conclusão que esse tipo de gente provavelmente lincharia os pobres homens. “Imagina! Pedir para o meu bebê calar a sua boquinha linda!”.
Não sei. Estou beirando o desespero. Se você tiver uma ideia ou uma história para contar, conte. Quem sabe a gente não consegue fazer algo com isso. Acho que nós, que queremos apenas assistir a um filme sem ouvir conversas paralelas, precisamos nos unir.
Eu não gosto de desistir. O cinema é parte do que sou. Muitos foram os filmes que moldaram meu caráter. Muitas foram as vidas da tela que ajudaram a dar sentido à minha. Devo muito ao cinema para desistir dele. Talvez ainda seja possível lembrar que a experiência do cinema é individual, mas não é do indivíduo. Ser cinema é ser parte. Da mesma mágica, para além de todas as diferenças. Encantado pela vida na tela, com respeito pela vida ao seu lado.
(Publicado na Revista Época em 10/08/2009)