A melhor pior praia do mundo

Uma reflexão sobre os pés, a família e o tempo

A cada ano meu pai vai silenciando. E minha mãe se tornando mais falante, como se as palavras tivessem o poder de pregá-la à vida. Ele vai se tornando mais lento, um passo estudado de cada vez. E ela desafia as leis da medicina com seus joelhos gastos e seus pés de dedos tortos que saltitam pela casa e, sempre que possível, escapam para a rua. Cada dedo do pé da minha mãe parece querer avançar mais rápido que o outro, então se amontoam, como numa cena dos Três Patetas.

Sempre achei que os pés das pessoas contam tanto delas quanto o rosto. Os pés do meu pai se esparramam sólidos e largos, querendo estar sempre certos de onde pisam. E os da minha mãe se adiantam, curiosando, querem andar não importa para onde. E não raro se enfiam em buracos de onde ela os arranca recitando palavrões de lavra própria.

Passei a última semana com meus pais naquela que para mim será sempre a melhor pior praia do mundo. De repente, meu olhar foi capturado pelo andar de cada um. É perto de um milagre que eles andem juntos há quase 60 anos com esses pés descombinados. Percebi o quanto nós todos, seus filhos e netos, precisamos que eles reeditem esse desconcerto dos pés.

O que viemos averiguar, nós que moramos longe, é se continuam andando no seu modo improvável. Meu pai cada vez mais lento, minha mãe cada vez mais rápida, encontrando-se em algum lugar dessa distância entre dois pontos. Acabo divagando se meu irmão do meio não se tornou físico para compreender a trajetória destituída de lógica que é o caminhar desordenadamente sincronizado de nossos pais.

Visitá-los nesta praia que eles amam, onde para nossa decepção o mar não sofreu nenhuma influência do aquecimento global e mantém a temperatura constante de iceberg, onde os ventos varrem largas porções de areia e às vezes até os bichos mais frágeis e todas as suas sarnas, tornou-se um destino sólido de nossos verões. A cada início de ano nós sabemos que o vizinho se tornará um flagelo com seu cortador de grama às 7 horas da manhã de cada dia. E quando não for o cortador de grama será alguma outra máquina infernal que ele prefere pilotar sempre de manhã bem cedo ou logo depois do almoço. Também temos certeza de que as dúzias de cachorros não nos darão trégua latindo ao mesmo tempo e o tempo todo.

Que ninguém vai dormir nas noites de sábado para domingo porque uma romaria de adolescentes celerados vai passar diante da nossa casa estourando as caixas de som como um triste rito de passagem num mundo em que todos os rituais soam como um reality show de má qualidade. Que algum problema sempre vai acontecer com a água, que desta vez faltou por três dias. Que o único mercado cobrará preços tão abusivos que cogitaremos deixar uma fatia do rim na hora de acertar a caderneta. E a marca de cerveja será sempre a pior possível. Mas resistimos porque a melhor pior praia do mundo tem suas garras de areia cravadas no nosso coração.

Todo ano, mal boto meus pés descalços no chão e já vou jurando que é a última vez que piso naquela praia insana. E no dia seguinte a compreensão me atinge. Sei por que vim. E sei que continuarei vindo. Volto ano após ano para ter certeza que tudo continua exatamente igual. Ainda que às vezes insuportavelmente igual.

Neste verão, duas cenas cavoucaram minha alma com uma daquelas pazinhas de criança esquecidas na areia e se instalaram para ficar. Lá está meu pai. Depois de um acurado estudo sobre o rumo dos ventos, em que ele anda para lá e para cá, apalpa as nuvens com os olhos e aspira a maresia, meu pai posiciona uma cadeira e uma dessas mesas ordinárias de plástico exatamente onde a brisa circula sem obstáculos. Lá ele se senta com alguma de suas preciosidades. Neste ano o primeiro livro sobre a história do Brasil escrito por um brasileiro, Frei Vicente do Salvador, datado do início do século XVII. Só interrompe essa leitura para esmiuçar o jornal, de onde recorta as melhores partes. Não há tecnologia que o convença que recortar o jornal com tesoura não siga sendo a melhor maneira de organizar um arquivo. Eu o espio da minha rede e, a certo momento, não consigo evitar. Grito: “Pai, a vida é boa, né?”. E ele responde de volta, meio sobressaltado com a interrupção: “É muito boa, sim!”. E desandamos a rir. E eu choro.

A outra é de minha mãe. Desde que ela ganhou um laptop dos filhos desdenha todos os outros tipos de comunicação. Lá vem ela caminhando pelas bordas dos pés, meio de lado, como é o seu estilo, meio sabendo que interrompe a minha leitura, mas sem conseguir resistir a compartilhar a brincadeira que acaba de lhe chegar por email. Tu conheces a mágica do 111? Não, eu não conhecia. Então pega os últimos dois algarismos do teu ano de nascimento – 66 – e soma com a idade que vais fazer neste ano – 45. Eu não sou muito boa em matemática, mas consigo. E ela quase dá pulinhos de alegria. Testamos juntas vários nascimentos e aniversários e, incrível, sempre dá 111. Ela passa então o resto do dia em um animado balé com seus pés problemáticos, satisfeitíssima com a mágica do 111. Feliz como no tempo em que trepava nos pés de laranja da chácara do pai para roubar fruta verde. Eu a observo, com respeito máximo pela conquista do povo egípcio e por tudo o que significa para o mundo inteiro. E ao mesmo tempo meio envergonhada porque naquele meu canto acanhado de planeta, na melhor pior praia do mundo, o acontecimento mais importante daquele dia foi testemunhar minha mãe saltitando de ladinho por causa do 111.

Aperto a minha filha com força antes que ela parta rumo ao Rio de Janeiro e, como sempre, me surpreendo de como é possível amar tanto assim um outro ser humano. Afofo seus pequenos pés que ela afirma serem em forma de raquete. E aceito que pela lógica é natural que seja ela a primeira a partir para longe. Nós que ficamos não compreendemos bem como ela pode preferir Ipanema e Leblon à melhor pior praia do mundo. Mas, por amor, fingimos entender.

Deste lugar geográfico-sentimental fazemos de conta que o tempo não avança, enquanto com o canto dos olhos cada um de nós anota mentalmente as marcas que assinalam nosso corpo e também os daqueles que amamos. Registramos, mas não contamos para ninguém. Para o ano que vem esperamos um novo par de pezinhos gorduchos e ainda sem nome, um bebê novo que acolheremos. Ele mal saberá onde está enquanto engatinha sua vida nova pelo assoalho, sem adivinhar que a melhor pior praia do mundo já crava nele suas unhas de areia.

A vida é mais intensamente isso do que todo o resto. Essa nossa capacidade de fingir desconhecer que um dia essa casa será alugada para outros porque nossos pés já não andarão por esse mundo. Mas enquanto isso, resistimos. Cheia de medo, tento algemar com palavras o que já não alcanço prender de outro jeito.

Se me perguntarem agora o que eu desejo para o próximo verão, com toda a fome do meu querer, é isso: perseguir com os olhos os cada vez mais lentos passos do meu pai por esse mundo. E observar os dedos dos pés de minha mãe se atropelarem na pressa de chegar a algum lugar que ela nunca soube bem onde fica.

(Publicado na Revista Época em 14/02/2011)