Governo brasileiro atrasa a entrega de medicamentos para Doença de Chagas e coloca em risco a vida de milhares de pessoas nos países mais pobres do continente
Tente imaginar como se fosse você, por mais distante que essa realidade possa estar da sua vida. É noite e você está deitado na cama com a sua família. Sua casa tem telhado de palha e paredes de pau a pique. Sua casa nem é uma casa, mas um casebre. E tem buracos em vez de janelas porque você não tem dinheiro para comprar os vidros. Você tem fome, mas já está acostumado com essa sensação de falta no estômago e de fraqueza no corpo todo. Você nunca teve essa experiência, então não sabe como é comer até se fartar e dormir saciado. Isso já seria dor suficiente para uma vida, mas de fato é só um coadjuvante na sua história. O vilão entra agora. Cai do teto e das paredes sobre você. Dezenas, às vezes centenas, de insetos com cerca de três centímetros de comprimento. Caem como pernilongos numa casa infestada deles. Cobrem seu corpo, entram pela sua boca, chupam seu sangue e defecam sobre sua pele. Você coça, porque é desesperador. E, ao coçar, um organismo invisível entra no seu corpo e começa a matá-lo. Ao coçar, você começa a morrer.
Tente imaginar como se fosse você, por mais distante que essa realidade possa estar da sua vida, porque esta foi a noite de milhares de pessoas nas regiões mais pobres de países vizinhos como a Bolívia e o Paraguai. Gente como você, apenas com o azar de ter nascido em nações que ainda não conseguiram se recuperar da destruição histórica a que foram submetidas, primeiro pelos colonizadores espanhóis, depois pelas elites predatórias e por governos incompetentes e/ou corruptos.
Estes homens, mulheres e crianças que acordaram hoje como acordam todos os dias, picados pelo inseto conhecido aqui como “barbeiro”, têm apenas uma chance: o tratamento com um medicamento chamado Benzonidazol. O remédio para Doença de Chagas é produzido por um único país no mundo: o Brasil. A responsabilidade foi assumida pelo governo brasileiro com a população mundial, em uma das ações estratégicas para reforçar a liderança do país no continente e sua vocação de potência emergente. Na semana passada, a organização internacional humanitária Médicos Sem Fronteiras (MSF) denunciou que, por negligência, o Ministério da Saúde do Brasil atrasou a remessa de remédios, colocando em risco a vida de milhares de pacientes e paralisando os projetos de combate à doença.
A denúncia passou quase despercebida. Ganhou muito menos destaque na imprensa do que sua relevância exigiria, numa semana em que o grande tema midiático da saúde foi a proibição dos inibidores de apetite pela Anvisa. Levanto a questão porque a invisibilidade é, de fato, o que tem matado milhões de pessoas no mundo inteiro, vítimas das chamadas “doenças negligenciadas”, como Chagas. E o que são doenças negligenciadas? São aquelas que a indústria farmacêutica não tem interesse em pesquisar a cura porque atingem a parcela mais pobre dos países mais miseráveis do mundo. Ou seja: seu tratamento não dá dinheiro. E são aquelas que parte da imprensa opta por deixar para o canto da página ou para página nenhuma porque não atingem as pessoas que compram jornais. E é assim que parte da população mundial – sempre a mesma parte – morre: porque a vida de uns vale menos que a de outros. E nós todos somos cúmplices dessa lógica quando viramos a página porque a notícia não diz respeito ao nosso umbigo. Notícia, como sabemos, não tem natureza. “O quê” e “quem é notícia” são escolhas políticas e socioeconômicas com consequências na vida de todos, mas principalmente na vida dos mesmos de sempre.
Acredito que é responsabilidade da imprensa aproximar mundos. O leitor pode não saber o que é ter Mal de Chagas. Nós, jornalistas, temos a obrigação de investigar e de contar a ele. Por isso comecei esta coluna narrando como são as noites de uma parcela de nossos vizinhos. No primeiro semestre deste ano fiz um trabalho voluntário como jornalista para a organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) na Bolívia, o país mais atingido por Chagas no planeta. E conheci em profundidade o que é ter a patologia que leva o nome de um dos brasileiros mais geniais da História, o sanitarista Carlos Chagas: na primeira década do século XX, ele identificou o vetor e o protozoário transmissor e descreveu a epidemiologia da doença.
A Doença de Chagas, como aprendemos na escola (pelo menos no meu tempo se aprendia), é transmitida pelo inseto chamado no Brasil de “barbeiro”. O bicho se esconde nos buracos das paredes e dos telhados das casas de pau a pique ou adobe, naquelas onde há buracos para se esconder, e à noite pica suas vítimas como fazem os pernilongos. Ao chupar o sangue, quase imediatamente defeca. A pessoa coça, num gesto automático, e o Trypanosoma cruzi, o protozoário que mora nas fezes do barbeiro, entra no organismo e se instala. Metade dos homens, mulheres e crianças infectadas vão desenvolver a doença que atinge coração, esôfago, intestinos e sistema nervoso central. Sem tratamento, o Mal de Chagas leva à morte. Na América Latina, estima-se que de 10 a 15 milhões sofram de Chagas e 14 mil morrem por ano de uma patologia que poderia ser prevenida e tratada.
A doença, que tem na miséria uma poderosa aliada, atinge a parcela mais invisível de países já invisíveis no mundo – ou vistos apenas como curiosidade folclórica. A realidade do Mal de Chagas na América Latina começou a mudar a partir do final da década de 90. Entre 1999 e 2011, a organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) desenvolveu oito projetos de tratamento em Honduras, Nicarágua, Guatemala, Colômbia, Paraguai e Bolívia. Pela primeira vez a população atingida teve uma chance. Para que vocês alcancem o tamanho da tragédia, basta saber que parte das pessoas contaminadas sequer sabia que o barbeiro era o causador da doença. Achava que as mortes súbitas que acometiam uma geração após a outra eram uma doença de família. Algo que estava no sangue.
Ao iniciar o tratamento, as equipes de MSF descobriram que o Benzonidazol não causava bons resultados apenas nas fases agudas da doença de Chagas, mas também nos casos crônicos. No Brasil, por exemplo, estima-se que existam entre 2 e 3 milhões de doentes crônicos, contaminados no passado. Mas, nos últimos anos, foram descobertas ocorrências agudas em diversos estados e especialmente na Amazônia. A comprovação de que o medicamento trazia bons resultados também para pacientes crônicos aumentou a demanda pelo medicamento e significou a diferença entre viver e morrer para milhões de pessoas. Com a atuação de MSF, os países endêmicos começaram a se organizar para assumir a sua parte na prevenção e tratamento de Chagas. E todos nós sabemos como as estruturas governamentais se movem devagar – e mais ainda em países assolados por conflitos e miséria por todos os flancos.
Com muito esforço e um bocado de percalços, tudo começava a se encaminhar para a construção de políticas permanentes de prevenção e tratamento. Cabe ao governo de cada país assumir a responsabilidade pela eliminação do barbeiro e por programas de melhoria das casas, para que os insetos não possam se instalar. E cabe a MSF implantar projetos de diagnóstico e tratamento, assim como treinar multiplicadores no próprio país, para que depois da saída da organização as ações sejam assumidas pelas instâncias locais como política pública e tenham continuidade.
Começaram então a surgir indícios de que o Brasil, o único produtor mundial do Benzonidazol, não conseguiria entregar os lotes no prazo. O medicamento é, ele mesmo, um exemplo clássico das doenças negligenciadas. Foi sintetizado em 1960 para tratar outra patologia e descobriu-se que produzia bons resultados em Chagas. Apesar de causar efeitos colaterais em parte dos pacientes, ainda é a melhor droga existente porque nunca mais a indústria se interessou em pesquisar outra. A Roche, multinacional farmacêutica que produzia o medicamento, desinteressou-se de continuar fabricando-o por falta de retorno comercial e, em 2003, transferiu a patente para o Brasil.
Como a Roche deixou um bom estoque de medicamentos no mercado e matéria-prima para a produção dos primeiros lotes, até agora o governo brasileiro tinha cumprido seus compromissos. Mas o Ministério da Saúde demorou a organizar-se para dar conta da cadeia completa de produção. Para passar a produzir o Benzonidazol integralmente no país, escolheu tardiamente apenas uma única fonte para sintetizar o princípio ativo: uma empresa privada chamada Nortec Química. Com a matéria-prima, o Laboratório Farmacêutico do Estado de Pernambuco (Lafepe) fabricaria o medicamento. E aí começaram os atrasos e o tradicional jogo de empurra-empurra das responsabilidades.
No início deste ano, em reunião da Organização Pan-Americana de Saúde, realizada em Bogotá, na Colômbia, os países endêmicos já tinham manifestado a preocupação de que o Brasil não conseguisse cumprir seus compromissos no fornecimento de Benzonidazol e deveria criar mecanismos para aprimorar a produção dos medicamentos. Os temores tinham fundamento. Em agosto, o Laboratório Farmacêutico do Estado de Pernambuco (Lafepe) informou aos Médicos Sem Fronteiras que não seria capaz de atender ao pedido de 460 mil comprimidos destinados aos projetos da organização na Bolívia e de 360 mil comprimidos aos projetos no Paraguai. Segundo o Lafepe, a Nortec Química não conseguiu cumprir os prazos de entrega da matéria-prima. Sem matéria-prima, o Lafepe não pode produzir. E, sem estoque, o governo brasileiro não é capaz de cumprir seus compromissos. Enquanto um põe a culpa no outro nos gabinetes, todos nós sabemos (ou deveríamos saber) quem é que perde a vida lá na ponta.
Em documento divulgado na semana passada, a organização Médicos Sem Fronteiras afirmou: “Esta crise poderia ter sido evitada, mas o principal ator envolvido, o Ministério da Saúde no Brasil, tem fugido de suas responsabilidades e parece não destinar esforços para superar os diversos desafios. (…) MSF chegou a contatar o Ministério da Saúde do Brasil em várias ocasiões para alertá-lo sobre a escassez iminente e para exigir ações concretas. (…) O Ministério da Saúde do Brasil tomou a responsabilidade de ser o único produtor mundial de Benzonidazol. Ele deve agora mostrar uma liderança forte”.
Na manhã de sexta-feira, 7/10, entrei em contato com a assessoria de imprensa do Ministério da Saúde. Fui informada de que o responsável pela área, Carlos Gadelha, secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do MS, não poderia dar entrevista naquele dia porque estava “resolvendo problemas pessoais”. E não havia nenhuma outra pessoa que pudesse falar sobre o tema. Na nota oficial que me enviaram, o Ministério da Saúde afirma: “Não há atrasos e nem interrupções no cronograma de produção e distribuição do Benzonidazol”. Curiosamente, naquele momento, em Recife, ocorria uma audiência na Secretaria de Saúde de Pernambuco para encontrar saídas para retomar a produção e reduzir os danos causados pelo atraso no cronograma.
Entrevistei então o coordenador de vendas do Lafepe, Djalma Dantas, que admitiu que, sim, há uma “crise”, devido ao atraso no recebimento do princípio ativo para a produção do medicamento. Por isso avisaram a organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) em agosto de que não conseguiriam cumprir o cronograma. Segundo ele, a Nortec deverá entregar o primeiro lote da matéria-prima apenas no final de outubro ou início de novembro. Depois disso, o Lafepe necessita de 20 dias para preparar o medicamento. E então a Anvisa precisa de um prazo para análise e liberação. “Em geral a Anvisa precisaria de pelo menos três a quatro meses para o procedimento de validação, mas deverão colocá-lo na frente de todos os outros pedidos”, disse Dantas. Para tentar reduzir os danos causados pela crise que o Ministério da Saúde afirma não existir há uma audiência nesta segunda-feira (10/10), em Brasília.
No mundo real, onde as pessoas morrem por decisões (não) tomadas em gabinete, o descumprimento dos compromissos assumidos pelo governo brasileiro com a população mundial já causou a suspensão do diagnóstico de novos pacientes no Paraguai e a suspensão de novos projetos de prevenção e tratamento na Bolívia.
Como jornalista, minha função é encurtar a distância entre os gabinetes e as pessoas que dependem de suas decisões para viver, para que o leitor se aproxime de mundos onde eu estive – e ele não. Pensando nisso, termino esta coluna voltando ao seu início. Nos povoados bolivianos em que trabalhei como jornalista, 70% das pessoas têm Chagas: sete em cada dez. Sete em cada dez dependem que o Brasil cumpra o compromisso assumido com a comunidade mundial para terem a chance de continuarem vivas. Tomara que a audiência do Ministério da Saúde sobre a crise que não existe tenha resultados.
(Publicado na Revista Época em 10/10/2011)