A perfeita família Jones

Temos escolha ou apenas ilusões?

Steve e Kate são bonitos, ricos e charmosos. Tem um casal de filhos adolescentes bonitos, ricos e charmosos. Acabaram de se mudar para um daqueles opulentos subúrbios americanos, com ruas arborizadas e casas enormes, onde temos a impressão que nunca faz mau tempo. Desembarcam em sua nova vizinhança a bordo de um carro bonito, caro e recém-saído da concessionária. Quando os vizinhos tocam a campainha para dar-lhes as boas vindas, a imagem atrás da porta que se abre é o clichê da família perfeita.

Só que essa família não existe. Os quatro são funcionários de uma poderosa empresa de marketing que cria famílias perfeitas em diferentes partes do mundo para vender os mais variados produtos, de carros a lingerie. A missão da equipe é tornar-se um modelo a ser admirado, em seguida invejado, finalmente seguido. De tempos em tempos, eles recebem os informes de quanto as vendas de produtos aumentaram com a sua atuação – e são avaliados pelos resultados. Uma sacada genial de marketing – digamos que um passo além dos comerciais e merchandisings a que já nos acostumamos.

Este é o enredo de The Joneses, filme de Derrick Borte, que deverá estrear no Brasil em breve. Demi Moore é Kate, mãe de família e chefe da equipe. David Duchovny, que se tornou conhecido pelo seriado Arquivo-X, é Steve. Jones é um sobrenome quase tão comum quanto Silva ou Souza nos Estados Unidos. Mas “The Joneses” foi escolhido a partir de uma expressão da língua inglesa: “Keeping up with the Joneses”. Significa algo como comprar aquilo que the Joneses compram, fazer aquilo que fazem — manter o mesmo padrão. O filme, claro, é uma sátira à sociedade de consumo. Em pouco tempo, os Jones-pais são um sucesso na vizinhança e os Jones-filhos arrasam na escola. As vendas de tudo o que usam disparam. O capitalismo triunfa.

Depois desse ótimo início, o filme desanda. Poderia ter trilhado muitos caminhos, escolheu o mais pueril deles. Mas a premissa de partida é instigante. The Joneses realiza a teoria da conspiração que nos transforma em marionetes sem almas do mercado. Tudo que desejamos pode ser comprado. Nos escravizamos para ter dinheiro para consumir os objetos de nosso suposto desejo. E, claro, nosso desejo jamais será satisfeito plenamente.

Por que somos seres existencialmente incompletos, a quem sempre faltará algo? Não! Porque não somos capazes de obter o sucesso necessário para comprar TUDO. E, ainda que conseguíssemos comprar tudo, haveria sempre mais para desejar e para consumir. Na lógica capitalista, o que nos falta não é um sentido para a vida, mas um sapato de sola vermelha ou uma TV de última geração para assistir à copa do mundo. Nunca seremos como os Jones, mas eles nos mostram quem deveríamos ser. E teremos alguns momentos de euforia se pudermos pelo menos usar o mesmo jeans ou o mesmo relógio que eles.

Esta é a questão óbvia trazida pelo filme. E que vem sendo dita de várias maneiras – e com muito mais propriedade – pelo menos desde Karl Marx. A denúncia do que nos escraviza tornou-se, há muito, ela mesma um objeto a ser consumido, como esse filme de Hollywood. A própria denúncia é mercadoria do sistema que denuncia. A ponto de se tornar um clichê, que nada mais é do que a mercadoria que se banalizou e vai perdendo valor de mercado.

Clichês podem se tornar armadilhas. Quando ouvimos tanto alguma coisa, deixamos de ouvir. Ela se esvazia de conteúdo e a verdade que dizia não é mais escutada. Porque este também um mundo que consome idéias. Exige novidades o tempo todo, ainda que novidades velhas em roupas novas. E a verdade é que as questões essenciais sobre as quais nos debruçamos na curta história de nossa espécie são poucas – e sempre as mesmas. Quem somos, de onde viemos, para onde vamos, qual é o sentido de nossa vida. E o sentido de nossa vida tem sido consumir – mercadorias cada vez mais voláteis.

Como diz a big boss da corporação a Steve Jones: “Você não vende produtos, mas atitude. Um estilo de vida”. Para cada tribo há uma família perfeita em quem podemos nos espelhar. Ainda que, em determinada comunidade, a família perfeita possa ser um casal gay com um bebê adotado no Sudão, que veste a moda das roupas recicladas, usa bicicletas como meio de transporte e se alimenta de produtos orgânicos.

Se os Jones do filme influenciassem seus vizinhos para consumir valores/produtos “do bem”, ecológica e socialmente sustentáveis, o marketing invisível estaria justificado? The Joneses seriam eticamente defensáveis se falseassem em nome de valores ligados à sustentabilidade ambiental e aos direitos humanos? É o que sempre me pergunto quando vejo o marketing do bem ampliar sua ação simulando uma oposição a um sistema do qual é também produto.

Desde o final dos anos 90, Hollywood tem lançado no mercado alguns filmes inquietantes sobre o sistema do qual é um dos braços mais poderosos e bem-sucedidos. O Show de Truman (Peter Weir, 1998) e Beleza Americana (Sam Mendes, 1999) são dois imperdíveis exemplos. Filmes como Matrix (Andy e Larry Wachowski, 1999) nos confrontam com a questão crucial de um mundo com fronteiras cada vez mais tênues entre o real e a ilusão.

Neo, o personagem principal, vivido por Keanu Reeves, é um dos poucos que tem escolha: ele pode escolher entre tomar a pílula vermelha ou a azul. Se eleger a vermelha, ele verá o mundo como de fato é. Se escolher a azul, seguirá na mesma, vivendo com a ilusão de ver o mundo como ele é. Mas, ainda que escolha a pílula vermelha, como de fato escolheu, como saber que aquele mundo é o real ou apenas mais uma simulação do real? O que é real, afinal?

The Joneses traz essa questão de uma forma mais tosca, mas ainda assim suscita perguntas interessantes. Se a família falsamente perfeita não tivesse aparecido na vizinhança para ditar um estilo a ser consumido, seus vizinhos seriam mais livres? Suas escolhas eram mais amplas antes de serem influenciados por esse poderoso marketing invisível? Ou apenas trocaram de marcas?

Ou ainda: se os Jones se apresentam e são decodificados como uma família perfeita, onde está a verdade e a mentira? Se a família perfeita só pode existir como ilusão, ao apresentarem-se como uma eles estão mentindo? Ou só podem ser verdadeiros mentindo? O quanto eles iludem e o quanto a vizinhança quer ser iludida?

Há muitos Jones na nossa vida, o tempo todo, travestidos das formas mais diversas – travestidos até como anticonsumo ou como reação ao consumo. Se pensarmos em cada objeto que compramos – e este é um exercício sempre interessante –, sabemos dizer de onde veio a vontade, o gosto, a preferência, a necessidade? Tente. Sua última compra. Como chegou a essa escolha? É possível saber o quanto lhe pertence esse ato? Existe, afinal, o desejo de cada um? Ou essa é a grande quimera contemporânea?

O produto mais cobiçado do mercado é justamente aquele que o mercado não tem para oferecer: escolha. E o melhor marqueteiro, publicitário ou vendedor é aquele que nos faz acreditar que temos opção diante de prateleiras e mais prateleiras de ilusões. A garantia de escolha é a grande farsa.

Em Guerra ao terror (Kathryn Bigelow, 2009), Oscar de melhor filme na última premiação, é forte a cena em que o soldado volta do Iraque e tudo o que tem diante de si é uma longa prateleira de supermercado. Em casa, no mundo livre, suas escolhas limitam-se à opção entre dezenas de marcas de cereais. Ele, que na radicalidade da guerra estava encarnado, se desencarna diante da volatilidade desse mundo de mercadorias que defende com o risco de perder a própria vida – e assassinando outras tantas.

Acho que viver nesse mundo de consumo é o tempo todo pensar sobre o auto-engano. Viajei pela Europa por três semanas. Como sigo trabalhando enquanto viajo, fiz meu escritório em uma rede internacional de cafés. É a forma mais prática para quem não tem dinheiro para pagar bons hotéis e precisa estar conectado em algum lugar onde não chove nem faz frio. Sempre que eu precisava, havia um por perto. Eu entrava, procurava uma mesinha com tomada para não precisar gastar a bateria do netbook que andava o tempo todo comigo, na mochila. Me conectava e, pronto, estava trabalhando. E, claro, consumindo café.

Quando entrava num dos cafés da rede, eu ficava contente. Era como chegar em casa. Os atendentes eram jovens, sorridentes, sempre dispostos a ajudar. Estrangeiros, a maioria. No segundo dia já conheciam meu gosto, sabiam se meu café era com ou sem leite sem que eu precisasse dizer. Ao meu redor havia pessoas como eu, mergulhadas no universo privado de seus laptops. Quando chegava a hora de fechar, meus sorridentes novos amigos me pediam gentilmente para cair fora, mesmo que lá fora desandasse uma tempestade. Só então eu lembrava que, afinal, não era minha casinha, mas business.

Logo percebi que eu não estava apenas trabalhando num café wi-fi. Eu “estava entre os meus”. Fazia parte de uma rede, compartilhava e reproduzia “um estilo de vida, uma atitude”. Era, de certo modo, a minha família Jones. Enquanto isso, eu, que nunca gostei muito de café, estava consumindo litros. E bem feliz.

Nessa viagem, não adquiri nada novo. Comprei confecções de uma marca que recicla tecidos e roupas usadas, doadas para este fim. Desse modo, o que eu visto não custa quase nada para o meio ambiente. E o preço que pago, bem menor do que o custo de qualquer confecção nova, é investido em programas de educação e direitos humanos em países pobres. Pode ter algo mais politicamente correto, mais ambientalmente sustentável?

Achei que não. E sigo acreditando que é uma boa opção. Mas não deixei de me sentir parte de uma família Jones, ainda que mais descolada e com valores mais “adequados” às necessidades do planeta. Ainda na ratoeira. Com a velha sensação de claustrofobia. O tempo todo entre as pílulas azuis e vermelhas, com a diferença de que não tenho a ilusão de que a pílula vermelha me ofereça algo que também não desmanche no ar.

Há como viver sem fazer a roda do consumo girar? Há como consumir sem ser consumido?

Acho que, neste mundo, a única pergunta que pode nos devolver a nós mesmos é aquela que nos lança no vazio: Qual é o meu desejo?

Não acho que vá encontrar a resposta. Mas não tenho escolha melhor do que a de seguir buscando.

(Publicado na Revista Época em 03/05/2010)