A vida dos mortos

O que os mortos podem nos contar sobre a vida: quem prefere esquecer a morte, corre o risco de não lembrar que está vivo

Sempre que posso, faço uma visita aos meus mortos no dia de finados. (Acho finados, aliás, uma daquelas palavras perfeitas, que dispensariam verbos e objetos, ela mesma uma sentença inteira.) Sei que possivelmente os mortos não estão em lugar algum além da nossa memória, mas talvez por eu ter nascido bem antes da internet e da existência virtual, preciso apalpar os túmulos com as mãos para senti-los mais de perto. A maioria dos meus mortos mora no cemitério rural de um povoado cada vez mais despovoado no interior do município gaúcho de Ijuí, chamado Barreiro, onde há mais gente estendida debaixo da terra do que saracoteando sobre ela. É uma paisagem com as cores da Toscana que nessa época está coberta pelo dourado dos trigais sob um céu azul e um vento de primavera que bota as folhas secas a dançar como na cena clássica do “Era uma vez no Oeste”, de Sergio Leone. (Quando eu tenho a sorte de visitar a Toscana, digo por lá que a paisagem tem as cores do Barreiro, e os brasileiros ficam me olhando com ironia e os italianos com descrença, mas assim é que é.) Gosto do silêncio dos cemitérios e, em todas as minhas viagens pelo mundo, visito os mortos para compreender como vivem os vivos naquela geografia virgem para os meus sentidos. Mas, para mim, não há nenhum como o do Barreiro, porque ele é habitado por algumas das histórias que fazem de mim o que sou.

Talvez a explicação para minha alegre visita aos mortos esteja na minha tia Nair. Finados, para ela e para todas as donas de casa da zona rural, era um dia de muito trabalho e de muita festa. Mal chegávamos e ela se punha a correr porta afora esfregando as mãos no avental e uma na outra, com um sorriso de orelha a orelha. Era na sua casa que os parentes vinham de toda a região para honrar os falecidos lembrando suas histórias ao redor da galinha com polenta da tia Nair, antecipada por voltas e mais voltas de chimarrão. Para mim era ainda melhor, porque ela me chamava de canto e me carregava para o bolicho na parte da frente da casa, onde penetrávamos na escuridão ainda desabitada dos bêbados que chegariam mais tarde, porque também eles tinham mortos para chorar ou amaldiçoar. Naquela caverna de Ali Babá, onde o silêncio cheirava a couro, salame e fumo, tia Nair enfiava suas duas mãos bordadas pelos calos de uma vida de roça e colhia do baleiro doces de mil e uma noites. Era um momento de suprema felicidade, como os do filme do Jabor.

Quando agora vou chegando pela estradinha poeirenta do Barreiro, avisto tia Nair correndo para nos dar as boas vindas, com seu sorriso pendurado pelas orelhas, e sei que nunca mais serei tão bem recebida por ninguém. Tia Nair já não está mais lá, é apenas na minha memória que ela vive, mas mesmo assim a criança que mora em mim também como memória enche as mãos de balas que só existiam lá. Depois sigo meu caminho para deixar uma palma na porta de sua casa no cemitério.

E de lá começa nossa visita, eu, meu pai e minha mãe, minha mãe sempre apressada, meu pai querendo se deixar ficar para fazer suas homenagens. E eu tentando ajeitar as flores nos vasos com meu desajeito, porque sempre fui uma destra com duas mãos esquerdas e nenhuma delas se entende com a outra. Está lá Pietro Brum, o meu trisavô italiano (meu pai me disse que o pai do meu bisavô não é tataravô ou tetravô, mas trisavô, que todo mundo erra e seria bom que eu acertasse), que veio da Itália fugindo com o filho Antônio, que aponta sua cara do além-túmulo com o mesmo ar topetudo que devia ter quando embarcou clandestino no navio para o Brasil, fugindo de mais uma guerra. Mas basta um olhar para minha bisavó Carlota, com sua mirada de faca, para eu ter certeza de que ela o fazia andar no miúdo. Mas essa história já contei aqui há algumas semanas, em A perna fantasma, e sigo adiante.

Estacionamos nossos pés diante do túmulo de meus avós paternos, José e Victoria, minha avó que nunca deixou ninguém sair do seu portão sem uma cuca, um pão, um queijo, um salame ou um presunto, e por isso recebia mais visitas do que sua azáfama diária permitiria. E que nas noites de tempestade carregava todos para o porão, por causa da tia Maria Henriqueta que morreu de raio quando, ao dormir entre duas de suas irmãs, era a única encostada na cama de ferro. Ao lado dela, no túmulo vizinho, brinca tia Lídia, que mudou de mundo ainda na infância depois que uma vizinha deu a ela uma dose de querosene para curar uma dor de barriga.

E mais uma vez xingamos um tio-avô que teve o péssimo gosto de tomar veneno justo no dia do casamento de minha tia Iolanda, sem o menor respeito pela alegria alheia. Espalhamos mais umas flores aqui e ali, como para a minha tia Cristina que me emprestou seu nome para botar no meio do meu. Acabei banindo-o assim que pude porque ela, quando ainda era uma alma encarnada, já era lembrada como uma mulher tão boa que a tudo suportava, coisa que não me caía muito bem. Mas eu adorava a tia Cristina que me esperava com doces de leite e cuidou das duas galinhas que eu criava como filhas e cuja educação repassei a ela depois que não couberam mais na minha casa de cidade. Tia Cristina zelou pelas minhas filhas de penas até a morte de uma e depois de outra, e mesmo quando a branca engoliu a sua corrente de ouro e todo o Barreiro insistiu que aquela franga desaforada estaria melhor na panela. Minha boa tia Cristina jamais magoou ninguém além de si mesma.

Para jamais esquecer que a vida é tecida com sentimentos contraditórios e gentes mais ainda, é diante do túmulo da minha tia Cristina que ofereço um buquê de comigo-ninguém-pode para minha tia A., esta pelos lados da minha mãe. À distância, porque essa tia se encontra em um cemitério da capital, a quase 400 quilômetros dali. Apesar do nome de querubim, que aqui estou proibida de mencionar por decreto familiar, enquanto viveu, tia A. urinou no túmulo do falecido que a havia traído com tanta assiduidade. Por causa desse péssimo hábito, meu bem posto tio-avô deve ter negligenciado a parte da anatomia que tia A. passou a obrigá-lo a enxergar em seu duvidoso descanso eterno.

Minha avó materna não visito em túmulo, porque a sinto tão presente que é quase como se estivesse ainda por aqui. Tenho sua máquina de costura bem ao lado da minha escrivaninha-xerife e, enquanto escrevo, ela alinhava capas de chuva feitas de saquinhos de leite, porque sempre achou as embalagens industrializadas uma maravilha. Muito antes de qualquer conversa ecológica, vó Teresinha afirmava que algo tão bonito não podia ser descartado como lixo e tratava de transformar logo em alguma utilidade. Sempre proseamos enquanto escrevo e, quando estou triste além da conta, ela me bota a cabeça em seu colo com cheiro de bolacha Maria e me conta uma história de Pedro Malasartes. Vó Teresinha, que viveu como uma santa, tinha outra por dentro. E ainda hoje, nas manhãs desmaiadas dos domingos, nós duas lamentamos que esta outra não tenha saído para botar ordem no seu mundo enquanto o tempo ainda era vivo.

Enquanto passeamos pelo cemitério, pausando para visitas aqui e ali, meu pai, minha mãe e eu sabemos o que nos espera logo adiante. Meu primo Gilberto, o Beto, e a Mana, sua mulher, nos aguardam logo na descida da lomba com o melhor churrasco da região e cucas recheadas que desmancham na boca. Beto é filho da minha tia Nair e, na companhia querida da Mana, mantém a tradição de acolher os parentes que vêm de longe e de perto para honrar os mortos. Na ocasião, meu primo também recolhe as ofertas para a festa da padroeira, quando eu divido com meu pai e meu irmão mais velho a doação de uma vaca. Com uma pontada de culpa porque sei que a malhada vai virar churrasco, mas não com culpa suficiente para me converter em vegetariana.

Mas o percurso dos finados ainda não acabou. E, para mim, a visita mais importante é a última, ao alcançar uma mulher que não conheci, mas que permitiu que eu tudo conhecesse. Ela se chama Luzia de Figueiredo Neves e nasceu no ventre de um romance. Seu pai, Sabino Andrade Neves, era sobrinho-neto do General Andrade Neves, cujos feitos à frente da cavalaria na sangrenta Guerra do Paraguai o alçou à posição de Barão do Triunfo. Enquanto do pai de Luzia se conhece o nome e todos os sobrenomes, da mãe não restou nenhuma letra. Era uma escrava da estância do pai de Sabino, e Luzia nasceu deste amor. Que era amor mesmo e não a violência tão comum naquela época, praticada contra as negras por filhos de estancieiros – e pelos próprios. Para dar nome e criar a filha, Sabino abriu mão da herança e do conforto de sua bem-nascença. Tornou-se professor pelas lonjuras do Rio Grande e fez da filha mestiça também professora. Da mãe, só se sabe que partiu jovem.

Quando estou diante do túmulo de Luzia, me certifico mais uma vez que a vida é desatino. Porque não fosse essa trágica história de amor e de preconceito, que obrigou um Sabino formado para ser general, ou pelo menos advogado na capital, a ser tornar professor e a criar uma filha, e talvez tudo tivesse se desacomodado de outro jeito na minha pequena história. Por isso, quando a vida se desentende com o destino e descarrila em desgoverno no rumo do imprevisto, eu penso: talvez seja uma boa coisa… e eu acabe em lugares mais interessantes.

Em minhas andanças pelo Brasil, ouvi de homens e mulheres das mais variadas geografias uma expressão que atesta a finura da linguagem do povo brasileiro: “Sou cego das letras”. Era como expressavam, em voz sentida, sua condição de analfabeto. Pois foi Luzia, com esse nome tão profético, quem arrancou meu pai da cegueira das letras. E, com ele, todas as gerações que vieram depois. Caçula entre os homens de uma família de 12 filhos criados no cultivo da erva-mate, Luzia iluminou primeiro o nome do meu pai. Quando lá chegou na escolinha do Barreiro, com os pés descalços e os largos olhos que desde pequeno carrega como faróis, meu pai não sabia como se chamava, já que em casa e por todos era conhecido pelo apelido. Quando Luzia chamou – “Argemiro” –, meu pai, então um guri de sete anos, não se mexeu. Só na terceira ou quarta chamada, descobriu-se. E com o nome veio um mundo inteiro.

Aos 12 anos meu pai foi assaltado por uma pneumonia dupla e, enquanto lutava pela vida numa época e numa paisagem em que era mais fácil sucumbir do que escapar da doença, meu avô sentiu-se mal depois de uma sequência de noites no soque da erva-mate e logo mandou buscar, a cavalo, o médico e também o padre. Quando meu pai despertou, em território dos vivos, não sabiam como contar a ele que, naquele soluço do tempo, tornara-se órfão. Foi chamado um homem de nome Pacífico para dar a notícia, mas o mais perto que ele chegou de cumprir sua missão, destituído que estava de toda paz, mas não de sutileza, foi avisar ao meu pai de que dali para frente veria os irmãos com um traje de cor diferente. Uma tia então deixou escorregar com dedos tímidos o jornal aberto sobre a mesa na página do obituário.

Meu pai descobriu ali que saber ler podia ser uma maldição. E naquele momento aceitou o custo às vezes por demais elevado de compreender as letras, em algumas ocasiões com revelações brutais, como naquele pedaço de jornal, em outras, como descobriria mais tarde, torcidas pelo cinismo e pela má fé, com o veneno escorrendo das entrelinhas e a mentira encarapitada nas vírgulas. Arrisco-me a dizer que meu pai escolheu ali, quando recuperava a vida para descobrir que o pai havia perdido a sua, que existiria com verdade.

Aprendi com meu pai a honrar o presente de Luzia. E a tirar meu chapéu invisível diante de Sabino, uma raridade de homem que, nos finalmentes do século XIX, deixou posição e riqueza para criar uma filha sozinho e lançou-se nos interiores do Rio Grande para educar os rebentos dos colonos europeus que desembarcavam com quase nada além de esperança e do preconceito com gente de pele mais escura, como a própria Luzia. Era ele e não seu tio-avô que deveria ser nome de rua na capital e por todo canto se o mundo fosse justo.

Desde que me entendo por gente meu pai coloca flores no túmulo de sua primeira professora. Não sei dizer em que altura do caminho eu comecei a segui-lo nesse gesto, a ponto de ter se tornado uma estrelinha no meu calendário pessoal. Não necessariamente no dia de finados, mas em algum dia do ano eu preciso agradecer a Luzia pelas letras. Sento-me à beira do seu túmulo e, depois de dizer obrigada, me enfio dentro de mim e começo a pensar em minha vida de palavras.

É um momento de vestir minha própria pele, eu, que como repórter, estou sempre tentando me emburacar na pele do outro. Penso se estou usando com verdade o que Luzia me deu. Investigo se tenho sido digna e se tenho sido honesta no meu percurso, não só com os outros, mas comigo mesma. Se tenho amado bem não só os de perto, mas também os de longe. Apaziguo-me com as batalhas que talvez não ganhe, mas que nem por isso a luta deixa de valer a pena. Encaro o medo que muitas vezes me perfura e tento usá-lo para me tornar mais atenta às armadilhas. E refaço meus votos de contar histórias usando o melhor que tenho em mim. De alguma forma, acredito que Luzia sempre encontra um jeito de me responder.

Estava nesse ponto de minhas perambulações internas, neste último 2 de novembro, quando ouço a voz da minha mãe discutindo com o responsável do cemitério, que não encontrava meus últimos pagamentos em seu caderno. Minha mãe insistia que as taxas estavam em dia, um despropósito de 15 reais por ano (!!!) para que eu tenha o direito de lá ser enterrada quando o único acontecimento previsível da vida chegar. Eu já tinha dado uma vistoriada na minha futura casa, reservada embaixo de uma árvore, e agora peleava para me manter concentrada em minha conversa com Luzia, mas já começava a achar o debate divertido. De repente, eu escuto: “Mas a Eliane é falecida há muito tempo?”. E minha mãe, rapidíssima: “Está bem viva, sentada ali naquele túmulo”.

Abanei para ele e, toda faceira, lembrei: sim, eu estou beeeeeem viva.

Foi uma lembrança importante.

(Publicado na Revista Época em 07/11/2011)