Uma mãe leva ao Congresso sua luta pela proteção dos filhos dos outros
Sempre que viajo, seja em um ônibus ou avião, olho ao meu redor e penso no que leva cada uma daquelas pessoas desconhecidas para o mesmo destino que o meu. Sei que o destino apenas parece o mesmo no mostrador da sala de embarque, mas que é sempre diferente para cada um de nós. Assim como sei que cada pessoa de fato não carrega uma mala, mas sua história. E que algumas delas suportam um excesso de peso que não pode ser mensurado na balança do check-in. Na véspera de 9 de agosto, talvez alguém possa ter olhado para aquela mulher de olhos verdes, cabelos ondulados, calças pretas, bata estampada e salto alto, e pensado que ela era uma executiva ou mesmo uma assessora parlamentar no voo SP-Brasília das 15h51. Ela recusa a bebida e o lanche que a aeromoça oferece. Aceita uma bala. Gestos casuais, escolhas que nada dizem. Talvez a passageira da janela esteja fazendo dieta. Ou tensa demais para comer ou beber. Ou apenas enfastiada ou enjoada. Nem mesmo alguém com muita imaginação poderia supor que uma parte essencial daquela mulher não está ali, mas presa no fundo de uma piscina há 13 anos.
Odele Souza, este é o seu nome, embarcou naquele avião porque sua filha teve os cabelos, tão parecidos com os dela, sugados pelo ralo da piscina do condomínio em que a família vivia, em São Paulo. A sucção era tão forte que o irmão mais velho puxou a menina de 10 anos com toda a sua força e só conseguiu arrancar um punhado de cabelos. Desde então, Odele vive uma dor que ninguém pode medir: a de testemunhar sua filha crescer e se tornar mulher deitada em uma cama, sem consciência de si mesma. Flavia tem hoje 23 anos.
Em Brasília Odele se encontrou com um homem que também carregava um peso invisível à balança eletrônica. Ele vinha do Rio de Janeiro para encontrá-la. Com a mesma tragédia, ele difere de Odele porque sua dor ainda é carne viva. Este homem é pai. E perdeu sua filha mais velha, também com 10 anos, quando ela brincava numa piscina de fibra de vidro na casa de amigos numa festa de aniversário. Em certo momento, os amigos resolveram sair da piscina em busca de outra brincadeira. Ela ficou. Plantava bananeira quando teve os cabelos sugados pelo ralo. Só conseguiram tirá-la de lá depois de desligar a bomba da piscina. Muito tarde para a menina. Como Flavia, ela era excelente nadadora. Diferentemente de Flavia, ela morreu ali.
Era 12 de fevereiro deste ano. E esse pai não consegue falar de sua perda imensurável sem chorar. Ele é professor de educação física e começou a ensinar sua filha a nadar quando ela tinha três meses de idade. Odele sabe que o choro vai secar um dia. Para ela, foram dois longos anos em que as lágrimas se tornaram parte de seu olhar. Depois, elas foram estancando e agora aparecem em geral à noite, quando se sente muito só entre as paredes do seu quarto. Odele sabe que as lágrimas até podem secar, mas a dor não acaba nunca.
E é por saber disso que ela e esse pai estão ali. Junto com eles há um perito americano, Lawrence Doherty, que foi consultor das leis de segurança nas piscinas aprovadas nos Estados Unidos e na Colômbia, e o brasileiro Augusto Cesar Araújo, representante da Associação Nacional dos Fabricantes e Construtores de Piscinas e Produtos Afins. À noite, no hotel, eles alugam um projetor de slides e acertam os últimos preparativos para a exposição em PowerPoint que farão no dia seguinte para o deputado federal Darcísio Perondi (PMDB-RS), relator da lei federal de segurança nas piscinas que tramita no Congresso.
Foi Odele quem reuniu aquele grupo na capital federal para propor uma emenda ao projeto de lei que possa garantir que nenhuma criança ou adulto morra porque seus cabelos ou membros foram sugados pelo ralo de uma piscina. Às vezes a pressão é tão forte que chega a sugar parte dos intestinos, como aconteceu com Abigail Taylor, uma menina americana de 7 anos. Uma ameaça real, que mata pelo menos uma pessoa por ano no Brasil, isso se forem considerados apenas os casos divulgados pela imprensa – uma minoria. O Brasil é um dos países com maior índice de mortes por afogamento no mundo – mas não há estatísticas oficiais de quantos deles são causados pela sucção dos ralos das piscinas.
Do interior do seu apartamento em São Paulo, de onde pouco pode sair porque Flavia está presa a uma cama e ela é refém dessa tragédia, Odele se conecta à internet e usa a tecnologia para mover uma campanha incansável para que os brasileiros saibam que, mesmo no fundo das piscinas mais rasas, pode haver perigo de morte. Um risco que poderia ser evitado com o uso de equipamentos simples de proteção, como tampas antiaprisionamento e dispositivos que desligam automaticamente a bomba em caso de obstrução ou bloqueio do ralo. Como, por ignorância ou descaso, não existe a atenção devida à segurança, Odele briga para salvar a vida dos filhos dos outros de ter o destino da sua.
Como Flavia teve a fala roubada, sua mãe criou uma voz para ela. No blog Flavia vivendo em coma, Odele narra sua luta cotidiana por um mundo onde crianças não percam o futuro apenas porque estavam brincando em uma piscina num dia quente de verão. E, para ela, é como se Flavia pudesse falar, e estivessem juntas nessa batalha por dignidade. Contei a história dessas duas mulheres em uma reportagem chamada Saudades de sua voz. E também em um texto nesta coluna, com o título de Deus e a Eutanásia. Desde 2009 tenho testemunhado a força de Odele Souza. E mais uma vez pergunto a ela: “Por que você briga tanto para que os filhos dos outros não morram?”. E ela me responde, com a inteireza de sempre e um olhar que queima, mesmo quando suas pupilas bóiam em água salgada:
– A luta por uma Lei Federal para Segurança em Piscinas, com ênfase na sucção dos ralos, significa muito para mim. Além da indiscutível importância pública, essa luta me ajuda a conviver com o fato de ter visto Flavia crescer numa cama sem possibilidade de se tornar uma jovem como qualquer outra de sua idade. Sem a chance de estudar, se divertir, namorar, enfim, viver a sua juventude de forma saudável. Essa luta me ajuda a conviver com o fato de ver Flavia crescer nessa “cama-casulo”, se tornando uma borboleta. Que essa minha luta possibilite à Flavia, mesmo presa e imobilizada em seu estado de coma, voar o mais alto que ela possa. Que Flavia voe alto e longe e que leve às outras vítimas desse tipo de acidente – e são muitas – uma mensagem de amor, de resistência e de cidadania por alertar para o perigo existente nos ralos de piscinas. Antes da tragédia ocorrida com Flavia, poucos sabiam que ralos de piscinas – se vendidos, instalados e mantidos fora dos padrões de segurança – podem prender embaixo d’água uma pessoa pelos cabelos, ou por qualquer outra parte do corpo. Antes do mergulho sem volta de Flavia, poucos sabiam que ralos de piscinas podem matar ou deixar uma pessoa em coma. Com minha luta tento compensar, se é que isso é possível, a dolorosa convivência com o silêncio ao qual Flavia foi condenada a viver. Diante da cruel imobilidade imposta à minha filha, eu não me permito ficar imóvel. Diante da imobilidade e do silêncio impostos à Flavia, eu preciso estar em constante movimento. E preciso gritar. Gritar por mim, por Flavia e por todas as vítimas que morreram afogadas enquanto nadavam em uma piscina sem segurança.
Odele é assim. Intensa e inteira, mesmo sabendo que para sempre lhe faltará um pedaço essencial de si. Quando penso nela, a enxergo ao lado de Flavia, que se tornou uma moça de beleza suave sobre a cama. Em seu coma vígil, ela abre os olhos durante o dia e os fecha à noite, e se sobressalta com qualquer ruído. Vejo Odele com seu inseparável lap top, sentada perto de sua filha, gritando por justiça enquanto em sua casa o silêncio a perfura. Pelas internet ela descobriu peritos em diferentes países do mundo, arregimentou aliados e fez amigos. E no dia 9 alcançou Brasília. Depois de duas horas de exposição e da entrega de um texto cuidadosamente elaborado ao longo de meses com a sugestão de emenda ao projeto de lei, Odele deixou a Câmara dos Deputados com a promessa de que sua proposta será incluída e que o projeto será votado o mais rápido possível – talvez até o final desse ano. Se alguém fez a Odele uma promessa que não pretende cumprir, mal sabe a encrenca que se meteu. Conheço poucos brasileiros tão obstinados quanto ela. Dia após dia, Odele acorda para gritar.
No voo de volta Odele estava ansiosa. Afastar-se de Flavia exige uma operação complexa. Ela não conta com nenhum familiar para ajudá-la. Na ansiedade, pergunta ao passageiro ao lado se ele tem filhos. Ele responde que tem. Odele tenta contar sobre a sua luta. O passageiro ouve, mas parece não escutar e nada diz. Quando chega em casa, é para Flavia que Odele narra mais um capítulo da história que constrói para ambas. Como ela diz: “Em minha eterna conversa com minha filha, onde só se ouve a minha voz”. É chorando que Odele diz à Flavia:
– Princesa, mesmo sem sair da cama e do seu quarto, você viajou comigo para Brasília. Você estava presente na reunião. Você voou, Flavia.
(Publicado na Revista Época em 15/08/2011)