Ou como fazer um jornal literário com um barril
Inventamos uma vida para preencher um buraco. E seguimos vivendo porque nunca conseguimos cobri-lo por completo. Algo sempre nos falta. E esta falta nos move pelo tempo, nos impele a criar um enredo que faça sentido. No caso de Rogério Pereira foi um barril.
Zulma, a mãe de Rogério, não pôde estudar. Como a maioria das crianças pobres da sua infância no interior de Santa Catarina, ela trabalhava na roça. Quando se rebelava, e às vezes acontecia, a avó a enfiava dentro de um barril e sentava-se sobre ele. Zulma ficava lá, confinada até que a vontade de brincar passasse. Por cima dela, o corpo da avó e toda uma tradição de gente parida só para a enxada.
Esta história contada por uma mãe que escreve pouco além do nome e jamais leu um livro talvez seja a mais importante da vida de Rogério. Assombrado pelo barril, ele acreditou que só escaparia desta sina se fosse capaz de preencher o vazio com palavras. Se o barril estivesse repleto de histórias, não haveria espaço para a escuridão – nem para crianças na escuridão. É por isso que, quando lhe perguntam por que criou um jornal literário num país onde ainda tão poucos leem, Rogério responde que é a sua vingança contra o barril. Agora, o barril é fábula. Como fábula é possível conviver com ele.
O Rascunho, jornal literário criado por Rogério Pereira, completou uma década de persistência. Baseado em Curitiba, tornou-se “o” jornal literário do Brasil. Nele há espaço para autores de todos os cantos do país, há espaço mesmo para quem está fora do mercado e longe da consagração. Tem assinantes mesmo em cidades pequenas como Pau dos Ferros, no Rio Grande do Norte, Bom Despacho, em Minas Gerais, ou Parobé, no Rio Grande do Sul. O Rascunho resiste pela colaboração não remunerada de dezenas de pessoas, escritores, tradutores e jornalistas, que também têm lá seus próprios barris, prontos para encaçapá-los numa esquina em caso de distração.
O jornal é moldado, porém, à imagem turrona de Rogério Pereira. E chega aos dez anos porque ele é teimoso. Bem teimoso. Às vezes até difícil. Para alguns, “sincero demais”. Fazendo dívida ano após ano, ele vai terminar este com um rombo de R$ 90 mil. Rogério vai empurrando, pagando velhos empréstimos, fazendo novos. Encantado porque ele, que só entrava em banco como office-boy, hoje tem crédito. E todo mês, quando imprime os 5 mil exemplares do Rascunho, Rogério ganha do barril. Em dezembro ele botará nas ruas a edição de número 128, com 32 páginas e 40 colaboradores.
Conheci Rogério há pouco mais de um ano, em Curitiba. Desde então, espero uma chance para contar sua história aqui. Na semana passada, ele e o escritor Luís Henrique Pellanda lançaram o primeiro volume de As melhores entrevistas do Rascunho (Arquipélago), em São Paulo. O livro reúne boas e longas conversas com 15 escritores brasileiros. Foram escolhidas entre as 171 entrevistas publicadas na primeira década do jornal. Estão ali Luiz Ruffato, José Castello, Bernardo Carvalho, Milton Hatoum, Cristovão Tezza, João Ubaldo Ribeiro, entre outros. Conversas de gente que ama a literatura e é transformada (e perturbada) por ela – para gente que ama a literatura e é transformada (e perturbada) por ela.
Algumas horas antes do lançamento, eu e Rogério terminamos nossa própria boa conversa no café da Livraria Cultura do Conjunto Nacional. Eu queria saber como um garoto que trabalha duro desde os 10 anos, filho de pais sem acesso à palavra escrita, criou um jornal de literatura que já faz parte da história da cultura brasileira. Queria saber como a literatura transformou Rogério Pereira. Ou como ele criou um enredo para sua existência e assim escapou do barril que mastigou sua mãe.
Ela sempre disse a Rogério: “Se eu tivesse estudado, tudo seria diferente”. Enquanto vendia flores, moldava móveis em bambu, entregava medicamentos para dentista, fazia todos os bicos que conseguia, Rogério acreditava nisso. Ele acreditava na mãe. E como todas as vidas, a dele também foi povoada de “e se”. E se a mãe não tivesse trabalhado na casa do diretor da sucursal da Gazeta Mercantil quando ele era adolescente? Se em vez disso tivesse sido empregada doméstica na casa de um dentista, de um médico, de um comerciante, que jeito ele teria encontrado? Seria ele outro?
O que importa é que, aos 14 anos, o patrão da mãe, Claudio Lachini, perguntou se ela não tinha um filho que pudesse empregar no jornal como office-boy. E Rogério se tornou o office-boy “diferente” da Gazeta. Diferente porque quando terminava o trabalho de banco, em vez de jogar fliperama como os colegas, ficava estudando na cozinha do jornal. À noite, cursava a escola pública. Os jornalistas o apoiavam, aliviavam o trabalho. Ele começou a ganhar livros, a comprar. Iniciou-se com Rubem Fonseca, Dalton Trevisan e João Antônio. Ficou no jornal por oito anos e até chegou a ser promovido a “renovador de assinaturas por telefone”. Segundo ele, o trabalho mais chato que fez na vida, ainda pior do que vender flores em dia de finados. Mais tarde, Rogério fez faculdade e se tornou jornalista. Fez ainda uma pós-graduação na Universidade Complutense de Madri.
Rogério ainda era office-boy quando o diretor do jornal lançou um livro de poesias chamado O que se viveu. Em casa, a mãe contou que havia “uma montanha de livros na casa do seu Lachini”. Rogério queria muito ler algo escrito por alguém que conhecia, “para quem pagava as contas, comprava pastel e cigarros no meio da tarde”. Rogério implorou que a mãe pegasse um emprestado. Ela, muito católica, resistiu. O amor materno acabou vencendo o medo do inferno e Zulma retirou um livro da pilha. Anos mais tarde, Rogério fez o acerto de contas. Encontrou-se com Lachini para um café num hotel chique de Curitiba. O jornalista queria entregar a ele seu primeiro romance para ser resenhado pelo Rascunho. Rogério levou o livro furtado, confessou o crime e ganhou a obra de presente, agora autografada. Algo ali se fechava.
O Rascunho começou sua história em 8 de abril de 2000, encartado no Jornal do Estado, de Curitiba. Era feito nas madrugadas e finais de semana e muitas vezes era preciso sacar dinheiro do bolso para que pudesse seguir adiante. Nestes primeiros anos, o jornal cavou uma fama de brigão, “iconoclasta e meio irresponsável”. Em suas páginas, Rogério e outros injetaram ironia e algumas vezes também crueldade, como no massacre do poeta pernambucano Sebastião Uchoa Leite. A seu favor é preciso dizer que sempre abriu o mesmo espaço para réplicas e tréplicas. Pergunto a Rogério se hoje se arrepende de episódios como este. Rogério responde: “Não me arrependo da história do Rascunho. Hoje, obviamente, o texto teria outro viés, outra forma. Mas possivelmente a mesma contundência”.
No quarto ano, a parceria com o Jornal do Estado acabou. Rogério tinha de decidir se acabava ali, como em geral acontece com a maioria dos projetos, ou se seguia adiante. Como é teimoso, turrão e às vezes difícil, seguiu. No sexto ano, tomou a decisão de abandonar a estabilidade da vida de emprego com carteira assinada para se dedicar só ao Rascunho e à literatura. Não perdia pouco, já que ganhava um salário bem razoável e tinha um lugar de reconhecimento como chefe de redação da Gazeta do Povo. É hoje um dos poucos brasileiros que vive da – e para a – literatura no Brasil.
Rogério brinca que criou uma holding. Além do Rascunho, existe o Paiol Literário, projeto que já levou 47 dos principais escritores brasileiros a Curitiba para um encontro com o público que depois é editado e publicado no jornal. Há ainda o vidabreve.com, um site com sete cronistas e sete ilustradores, uma dupla a cada dia da semana (eu e Ramon Muniz formamos a dupla da terça-feira); o Quintana Café & Restaurante, espaço dedicado à cultura e à gastronomia; e ele ainda faz curadorias de bienais e outros eventos literários pelo país afora.
O último dia do horário de verão, 20 de fevereiro de 2011, será também o dia em que Rogério vai botar o ponto final no seu primeiro romance – “Na escuridão, amanhã”. Coisas de Rogério, que adora um ritual. Faz questão, por exemplo, de abrir suas contas bancárias nas mesmas agências em que pegava fila como office-boy. Compra flores para a mulher, Cris, e para a filha, Sofia, de quatro anos, no mesmo lugar em que vendia flores na infância. Para ter certeza. “Eu passei por aqui de uma maneira e hoje passo de outra.”
Como não costumo botar fotos nesta coluna, preciso descrever Rogério. Ele está bem longe da imagem do jornalista desmantelado, dentes e dedos manchados de nicotina, uma ou duas doses de cachaça na mão, barriga de cerveja e torresmo de boteco. Pelo que tenho visto por aí, acho mesmo que esta figura clássica já pertence ao passado. Aos 37 anos, Rogério mantém o corpo em forma com três sessões de academia e dois jogos de futebol por semana. Usa uma argola em cada orelha, corte de cabelo milimetricamente despenteado, camisa branca de bom corte ou em cores sóbrias, capazes de manter um daltônico em segurança. Para ele, que alcançou Curitiba aos 6 anos com a família, a cidade será sempre “cinza, borrada pela neblina da infância”, como escreveu em uma de suas crônicas.
Rogério já foi descrito como um Dom Quixote, mas, pelo menos na aparência, se usasse uma echarpe poderia ser confundido com um dos italianos despojados das ruas de Milão. Não fuma há 15 anos, não bebe há 10. Casado, dois filhos pequenos em boas escolas, bom apartamento, boa qualidade de vida. É importante para ele que seja assim. Para tocar sua holding literária, usa o aprendizado forçado da infância e adolescência, onde desenvolveu a vocação empreendedora negociando redações e trabalhos escolares em troca de lanches e vale-transporte.
Pergunto a ele por que escreve. Ele diz, alertando que para esta resposta não há como evitar os clichês: “Escrevo porque preciso, porque guiei a minha vida para a escrita, a literatura. Fiz da leitura um projeto para a vida toda. Não estou aqui à toa. Estou aqui porque construí o que sou – com toda a sorte pelo meio do caminho. Escrevo também por vingança àquele barril, escrevo para enchê-lo. Escrevo para me humanizar. Escrevo por vaidade, escrevo por vingança – sentimentos nada nobres, sei bem. Escrevo também porque talvez seja uma boa maneira de esperar a morte”. E mais adiante: “Os livros me salvaram. Eu sou o que li. O que busquei. Cada livro que li, cada livro que pensei em ler, cada livro que li pela metade, é o que sou”.
O primeiro livro seu foi comprado numa feira da infância. Avisaram na escola, e ele pediu dinheiro à mãe. Ela deu a ele o que hoje equivaleria a dois reais. Rogério só conseguiu comprar um de balaio. Era um livro sobre um homem em uma ilha. À espera. E não era a história de Robinson Crusoé. Rogério acredita que está lendo este livro até hoje. Quando era bem pequeno, sua mãe não viu que havia um “ninho de formiga” no lugar onde o deixou. E passou horas trabalhando sem poder voltar. Rogério foi flagelado pelas formigas. Hoje não consegue evitar. Ao deixar seu filho Lorenzo no berço sempre confere alarmado se não há formigas prontas a devorá-lo. Como disse o escritor catalão Enrique Vila-Matas, “a infância é uma batalha perdida”.
Rogério sabe que a vingança completa é impossível. O barril continua lá. Lembrando nos espaços vazios que a vida é frágil. E em geral dói. Zulma, a mãe de Rogério, é quem hoje envelopa os exemplares do Rascunho para assinantes, mas nunca leu o jornal nem qualquer dos escritos de Rogério. Continua trabalhando como diarista e é na casa de um dos patrões que passará este Natal servindo. José, o pai, é motorista de jornal. O irmão é funileiro. A irmã morreu de repente aos 27 anos. Alguns amigos perguntam a Rogério por que não ajudou os pais a melhorar seu nível de escolaridade. Ele responde: “É simples: a vida nos engoliu, nos mastigou feito bala de goma”. E, em outro momento: “Somos uma família distante e silenciosa. Como passamos boa parte da vida tentando sobreviver, cada um se virava da maneira que era possível. Não somos amorosos um com o outro. Nunca nos reunimos no Natal, no Ano-Novo ou nos aniversários. Mas isso não tem nada a ver com amor. Somos poucos que nos amamos em silêncio”.
O pai fez um quadro da primeira matéria de Rogério publicada em um jornal. Deu a ele de presente. O tema era uma cadeira que não provocava dor nas costas em quem passava o dia sentado diante de um computador. Mais tarde o pai pediu um livro emprestado. Rogério lhe deu uma obra de Autran Dourado, não lembra o título nem sabe o porquê da escolha. Tempos depois o pai devolveu o livro em silêncio. “Eu não lhe perguntei nada. Acho que tentou ler e não conseguiu. Envergonhado, devolveu o livro. Eu respeitei o seu silêncio. Ele respeitou o meu.” Quando o filho mais novo nasceu, Rogério reservou um caderno para que as visitas deixassem uma mensagem. Descobriu ali, na letra sofrida do pai, que ele escrevia seu nome – Rogério – com “j”.
Quando propus a Rogério Pereira contar sua história nesta coluna, ele teve receio. Que alguns pudessem achar que usava sua vida como autopromoção. “O Rascunho não tem reconhecimento porque foi fundado pelo filho da empregada doméstica, mas porque tem qualidade”, disse. Rogério só aceitou porque sua história prova algo que tanto eu quanto ele acreditamos profundamente: que a literatura é capaz de transformar a vida. Se há uma história que vale a pena ser contada é esta – a de como cada um dá sentido à sua existência, pega à unha o pouco que tem e se lança de cabeça no território das possibilidades.
Todos nós temos o nosso barril, com mais ou menos dor, mais ou menos peso, com outro nome. O que nos difere é o que fazemos com ele. A literatura, seja como leitor ou como escritor, nos permite transformar nosso barril em metáfora.
(Publicado na Revista Época em 29/11/2010)