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Delícias e tormentos de uma tradutora do Brasil

Alison Entrekin é uma mulher singular de várias maneiras. Por exemplo. Um dia ela acionou a secretária eletrônica do seu telefone e ouviu a voz que todas as mulheres do Brasil sonham ouvir no seu aparelho. Sim. Ele. Chico Buarque de Holanda. Ligou para dar seu telefone a Alison. E pediu que ela ligasse de volta. Tinha assuntos urgentes a discutir com ela. Alison pensou no que eu e você e até mesmo um leitor seguro de sua masculinidade pensaria? Não. Alison vislumbrou aqueles olhos de ardósia? Não. Cantarolou “O meu amor tem um jeito manso que é só seu/E que me deixa louca quando me beija a boca/A minha pele toda fica arrepiada/E me beija com calma e fundo/Até minh’alma se sentir beijada…”? Também não. Alison quase morreu? Sim. Mas não como eu e você e mesmo o leitor seguro de sua masculinidade. Alison quase morreu de medo. Alison é uma mulher que quando ouve a voz de Chico Buarque na secretária eletrônica só pensa em vírgulas. E ponto final.

A australiana Alison Entrekin era dançarina profissional. Machucou a coluna quando dançava nos Estados Unidos e foi obrigada a encerrar a carreira. Pensou então no que mais gostava depois de dançar. E lembrou os cem anos de solidão do colombiano Gabriel García Márquez. Voltou para a Austrália para fazer curso universitário de criação literária e depois virou professora. Queria ser escritora quando atravessou o mundo e encontrou o Brasil no seu caminho 14 anos atrás. Sentiu-se dentro de um romance de realismo fantástico nos primeiros anos em que viveu no país. Casou-se com um brasileiro e mora em Santos. Tornou-se uma tradutora obstinada pela busca da palavra exata ao verter a literatura brasileira para o inglês. Budapeste. Cidade de Deus. O Filho Eterno. Eles eram muitos cavalos. Alison traduziu algumas das obras de sintaxe mais complexa da literatura contemporânea brasileira.

Vista de perto ela é uma mistura de Nicole Kidman com Olivia Newton-John. Do tamanho da última. Mas depois de conhecê-la a gente tem vontade de se referir a ela sempre com aumentativos. Trabalha de segunda a segunda em uma quitinete defronte à sua casa. É lá que moram seus 45 dicionários e um cachorro chamado Patão. Uma mistura de pincher e fox paulistinha que resultou proporcionalmente quase tão mignon quanto ela. E também com uma personalidade superlativa.

Na mesa de trabalho de Alison há uma estátua do deus indiano Ganesha. Ela passa a mão em sua cabeça de elefante quando está com algum problema intrincado como um recado de Chico Buarque. Perto dela há um antúrio que chegou ali com três folhas e agora está com oito. É com ele que Alison treina seus discursos antes de discutir pontuação com os escritores que traduz. Na estante é possível encontrar tudo sobre palavras em português. Até mesmo um dicionário de candomblé e um de portoalegrês. Mas o que Alison queria mesmo era um dicionário de maconha. Logo mais ficará claro o porquê.

Conheci Alison em um encontro literário na Casa de Cultura de Paraty promovido pelo Itaú Cultural neste início do mês. Ela desvelou a língua portuguesa de uma forma que mudou o meu jeito de olhar para sempre. Eu jamais havia imaginado que traduzir pudesse ser algo ao mesmo tempo tão fascinante e tão enlouquecedor. Alison percebeu detalhes em livros que li que a mim tinham passado despercebidos. Pelos olhos dela adivinhei belezas que haviam me escapado. Percebi que ao despir a língua os tradutores descobrem uma nudez do país invisível para nós que aqui nascemos. Ampliam nosso olhar sobre nós mesmos. E nos provocam.

De imediato quis compartilhar esta experiência com vocês aqui nesta coluna. E pedi uma entrevista. Conversamos mais de uma hora na mesa do café da manhã. E quando eu tinha capturado todas as palavras meu gravador digital (ah que saudades das fitas!) saltou da minha mão e eu perdi Alison inteira na queda. Gentilmente ela aceitou ressuscitar todas as suas frases e ainda aumentá-las em uma hora a mais de conversa. Só fomos interrompidas pelos latidos de ciúme do Patão. E por uma tentativa dele de suicidar-se comendo uma abelha.

Esta é uma entrevista para ser lida sem pressa. Foi feita como um presente para quem ama as palavras e a língua portuguesa. Em homenagem a Alison Entrekin fiz este texto de apresentação sem usar uma única vez a diminuta figura que lhe provoca pesadelos com suas enormidades.

Quando você ouviu a língua portuguesa pela primeira vez?
Alison Entrekin – Havia uma festa da comunidade brasileira na minha cidade (Perth, Austrália). Uma amiga tinha vindo ao Brasil e aprendido a dançar lambada. Na festa não teve lambada, mas teve muita música. Achava que o português era algo mais próximo ao espanhol e descobri que não era nada disso. Me lembrava o francês, pelo som. Quando você escuta uma língua e não tem ligação com o sentido, só escuta a musicalidade. Achei uma língua lindíssima, com uma sonoridade diferente. As mulheres falavam num tom mais alto. E depois de muitos anos notei que falo inglês num tom mais baixo e português num tom mais alto. As palavras parecem não terminar, na sonoridade do português. Quando você escuta línguas asiáticas, elas parecem sílabas picadas. Quando você escuta o português parece uma palavra interminável, porque as ligações entre palavras são suaves. Isso me encantou.

ÉPOCA – Se a língua fosse um personagem, como você o descreveria?
Alison – Vejo o Brasil e a língua portuguesa como uma coisa tão múltipla que não consigo enxergar como uma coisa só. Eu traduzo gente do país inteiro e parece que toda vez estou aprendendo uma nova língua. Um novo dialeto, novas gírias, um novo jeito de falar a língua. Estou sempre lidando com estas pluralidades, não consigo dar uma identidade só. São vários personagens ao mesmo tempo, mulheres e homens.

Você diz que o inglês é mais homogêneo, pelo menos na Austrália. É um inglês só. E no Brasil são vários brasis e várias línguas. O que isso revela do Brasil?
Alison – A Austrália particularmente é um lugar que não se nota tanta diferença de sotaque. E é um país quase tão grande quanto o Brasil. De um lado a outro, quase 5 mil quilômetros, não dá para saber se a pessoa é de Sidney ou de Perth. Você pode perceber que é do interior, mas é uma diferença muito ligeira. E a condição social é mais ou menos igual, então a língua não precisa se desdobrar para representar estas realidades todas. O Brasil é geograficamente vasto, teve muitas colonizações, em ondas de imigrantes, e tem muita diferença social. A palavra otário, por exemplo, que aparece em Cidade de Deus, livro do Paulo Lins. Era a gíria que usavam para os caras com emprego fixo, que tinham de bater cartão todo dia e cumprir horários. Acho fantástica, porque sublinha a rebeldia e o ponto de vista dos malandros, que achavam um absurdo serem subordinados a alguém, trabalhar duro para não sair do lugar, para continuar na miséria. Então, para eles, os otários eram os trabalhadores, aqueles que não viviam do crime. Mas não era uma gíria usada pela classe média, que encara o trabalho de forma diferente, por causa de todo um contexto de vida diferente.

Você diz que o tradutor tem de desconfiar do sentido das palavras o tempo todo. Como é isso? Me conta a história de uma palavra intrigante.
Alison – O tradutor trabalha com o desconfiômetro ligado o tempo todo. É necessário fazer as perguntas mais bestas, mas é necessário. Se faço dez perguntas bestas e, se uma delas evita um erro de tradução, valeu a pena. A palavra trampar, por exemplo. Apareceu em Cidade de Deus. Eu conhecia trampar como gíria para trabalhar. Neste contexto me parecia que não cabia. O livro falava de um malandro que mora no morro, se sustenta roubando, e o irmão travesti aparece por lá. E ele não gosta que apareça, tem vergonha porque o irmão é travesti e quer que ele vá embora. Pega então coisas que ele roubou e dá para o irmão. Dá o relógio. E fala: “É pra tu ir trampar lá no Estácio”. Pensei: “Mas o que o travesti vai fazer trabalhando no Estácio?”. Comecei a perguntar para algumas pessoas ao meu redor se trampar podia ter outro significado. E todo mundo falava: “Não, é trabalhar”. E aquilo estava me incomodando. Finalmente fui perguntar para o autor, o Paulo Lins. Ele explicou que não, naquele contexto, naquele momento histórico, significava vender. Faz todo sentido. Dá um relógio pro irmão travesti vender e ganhar uma grana. Mas este tipo de coisa leva horas, dias, às vezes semanas e até meses.

Como fica este incômodo na tua vida cotidiana? A palavra fica ali, te incomodando o tempo todo?
Alison – Geralmente aparece quando estou lavando louça ou lavando o cabelo. Sempre estou com as mãos ocupadas e envolvida com algum tipo de produto de limpeza. São as horas em que estou mais relaxada. Só com meus pensamentos e fazendo alguma coisa realmente banal. É aí que me vêm as melhores respostas, as melhores soluções.

Me conte alguma resposta que surgiu assim.
Alison – Em geral é quando o autor fez uma brincadeira linguística e eu estou atrás de algo para fazer o encaixe. Tem uma no Leite Derramado, do Chico (Buarque). É bonitinha esta palavra. Bulício. Ele usa uma palavra no começo e depois volta a ela muitos capítulos depois. Cria um eco. E conforme o livro vai indo há cada vez mais ecos, as repetições vão ficando maiores. Todas as vezes em que os personagens vão se amar, ele usa a palavra bulício. A empregada sabia que era hora de sair para o armazém ao pressentir nosso bulício. Ou em outro momento, leva a criança para a praia porque também pressentiu o bulício deles. Não é uma palavra ordinária, é uma palavra especial, colorida, que dá uma ideia muito legal. Aí fiquei pensando que palavra vou usar em inglês. Usei bedlam. É caos, comoção, e o legal é que embutido nesta palavra tem bed, que é cama. Encontrei esta palavra tomando banho.

Quando você olha para a palavra, já sabe que ela vai te dar trabalho?
Alison – Às vezes não. Elas me pegam de surpresa. Quando leio o livro em português, sou incapaz de entender o tamanho da encrenca. Sempre leio primeiro como leitora, acho que tenho de entender o que me provocou como leitora e não como tradutora, porque são coisas muito diferentes. Tradutor é chato, tradutor vai pegar em cada vírgula, cada nuance da palavra. Quando li O filho eterno, do Cristovão Tezza, achei um livro lindíssimo e foi uma leitura rápida, uma leitura que flui. Tive uma sensação de vertigem… Aonde ele vai agora, com estas frases imensas? Eu lia e ia seguindo. Quando comecei a fazer a tradução, nem tinha pensado na questão do presente histórico que ele usa o tempo inteiro. Em português funciona, em inglês não. Então metade do livro já foi traduzida para outro tempo verbal, o que já é uma baita de uma diferença. E também todas as outras questões linguísticas muito particulares da sintaxe dele ficaram desencaixadas, por causa desta grande mudança. E eu não tinha nem atinado pra isso lendo o livro.

Foi o seu livro mais difícil?
Alison – Foi. Quando encontrava uma solução para uma coisa, esta solução atrapalhava outra que tinha encontrado antes.

O desafio maior do tradutor é encontrar as palavras que levem à mesma sensação que o autor quis dar em sua própria língua? Como esta vertigem, por exemplo, que você sentiu lendo O filho eterno?
Alison – A questão é a sintaxe, é a pontuação. Acho que as emoções humanas e as sensações são muito iguais de um lugar para o outro. E acho que todas as línguas têm palavras adequadas. A questão é de sintaxe, de estrutura da língua, das orações, das ligações que se faz entre uma oração e outra. E eu vou me deparando com isso em cada autor que traduzo. Os autores contemporâneos brasileiros brincam com a pontuação, não obedecem à norma culta. Nos lugares onde pela norma culta deveria ter um ponto final, eles põem uma vírgula e continuam. Pela minha experiência, 90% dos autores de ficção que traduzo fazem isso, continuar onde deveria ter um ponto final. Acho que o português se presta mais a isso. Se todo mundo brinca de uma forma ou de outra com a pontuação, isso cria uma geração de leitores que relaxam quando encontram esta pontuação. Não se espantam com isso, nem estranham. Mas se eu, na tradução, obedecer a esta pontuação, crio um estranhamento tão maior em inglês do que em português que, nas poucas vezes em que tentei fazer isso, os comentários do editor são de que é muito estranho. Teoricamente, se um autor quebra uma regra numa língua e existe a mesma regra na outra língua, por que eu não posso obedecer isso? Faz sentido. Só que fui descobrindo que quebrando a mesma regra não criava o mesmo efeito. Isso me fez pensar. Meu dever como tradutora é reproduzir a experiência de leitura acima de tudo. E fazendo uma coisa aparentemente igual, na verdade criava-se outra experiência para o leitor. E se cria outra experiência, então não fiz meu trabalho direito.

A língua portuguesa é mais flexível que a inglesa?
Alison – Poder colocar o sujeito antes ou depois do verbo dá uma grande flexibilidade à língua. As palavras podem mudar de lugar de uma forma bem elástica na construção de uma oração. Em inglês o sujeito tem de estar antes do verbo. Eu fiz a tradução de uma oração do português para o inglês em que o sujeito que estava no final da frase vai para o início. Só que este sujeito que estava no final também servia como o sujeito da próxima oração. Em inglês não pode. O natural seria colocar um ponto final ou fazer um desdobramento maluco para que tudo possa caber de outra forma. Aí vai tomando outro formato e nisso podemos perder a fluidez do original.

Quando você começou a traduzir e percebeu o tamanho da encrenca, como você diz, como se virou?
Alison – Lembro que fui atrás das traduções dos livros do (José) Saramago, porque ele tem uma pontuação muito particular, muito dele. Mas ele é tão consistentemente assim em tudo que o tradutor não teve escolha, teve de obedecer. E funciona porque depois de uma página o leitor já está acostumado, ele passa a sentir assim. Meu problema é que eu trabalho com autores que não são sempre assim, são às vezes ou pela metade do tempo. O exemplo que mais me lembro é o Budapeste, (de Chico Buarque), onde há muitas orações ligadas por vírgulas. Esta foi a primeira vez que eu realmente parei para pensar: “Meu Deus, o que eu vou fazer com esta pontuação?”.

Como foi este primeiro contato com o Chico Buarque?
Alison – Isso foi antes de eu conhecê-lo. Ele deixou um recado curto na secretária eletrônica. Passou o telefone dele. Disse que tinha alguns capítulos traduzidos e queria falar sobre a pontuação: “Você usa ponto final onde eu não usei”. Eu morri de medo: “Meu Deus do céu, ele quer falar de pontuação comigo!”. Agora eu sei que o Chico é uma pessoa muito legal, que dá para conversar. Mas na época eu só pensei: “Jesus, vou morrer agora”. Aí eu expliquei para ele este estranhamento que causava. E ele me disse que não pretendia nenhum estranhamento no original. A solução que eu achei na época foi usar de duas maneiras. Havia momentos no livro em que José Costa (o personagem narrador) ficava obcecado por alguma coisa e os pensamentos vinham se atropelando. Nestes momentos, achei que usar uma vírgula onde no inglês usamos ponto final transmitia esta angústia dele. E não criava estranhamento pelo contexto, porque todo o contexto era uma coisa alucinada, confusa. Nestes trechos eu mantive uma pontuação muito mais fiel ao original. Em outras partes, onde ele estava contando a história com mais calma, às vezes usava ponto e vírgula, às vezes deixei passar algumas vírgulas que estruturalmente não causavam tanto estranhamento, e nos momentos em que faria o leitor parar por um estranhamento vindo da pontuação, aí sim, ponto final. Porque o ponto final, para nós de língua inglesa, é invisível. Quando autores de língua inglesa brincam com a pontuação, brincam mais com o ponto final, com frases curtas. Visualmente, se você tem uma página que é uma única frase cheia de vírgulas numa língua e, na outra, são 20 frases curtas, com um monte de pontos finais, a coisa fica muito diferente. Não é pra tanto. É preciso encontrar uma maneira de andar sobre esta corda bamba.

Você ainda fala de vírgulas com Chico Buarque?
Alison – Depois que tive contato com ele, deixei o medo de lado. É um autor generoso, bem humorado. Acompanha a tradução com olhos de águia, mas não atrapalha em nada. Ele entende as dificuldades de tradução e está sempre disposto a ajudar. E, de vez em quando, ainda pergunta sobre vírgulas. É impossível não perceber o quanto ele se importa com os mínimos detalhes e, como eu também me importo com os mínimos detalhes, acho ótimo. Adoro os livros dele e me divirto com a pessoa também.

A grande questão da tradução é a vírgula, então?
Alison – Eu tenho pesadelos com vírgulas. Fico muito feliz quando consigo dar o tom certo e achar as palavras certas. Porque é possível manter a graça do original na maioria das vezes. Mas nesta coisa da pontuação eu estou há anos batalhando com isso e não acho uma solução. Por isso toda vez que vou traduzir um autor que trabalha com a pontuação desta maneira eu tenho de passar por tudo isso de novo. Uma vez que você sai da norma culta, em qualquer língua, você está num campo subjetivo, que não pertence a ninguém. Que pertence ao mesmo tempo a todos e pertence ao indivíduo. Então não há mais regras para a tradução, é muito da cabeça de cada um. Pego um novo texto que tem isso, vírgulas, e fico analisando o texto. Que efeito estas vírgulas criam, por que o autor fez assim e não do jeito tradicional. Depois de compreender a intenção do autor, preciso encontrar um jeito de manter este efeito para que o leitor de língua inglesa possa ter esta mesma experiência, sem maior ou menor estranhamento que o leitor do original.

Você ama ou odeia as vírgulas?
Alison – Atualmente odeio. (ri muito)

O que esta liberdade dos escritores com a pontuação, com as vírgulas, revela sobre o Brasil?
Alison – O brasileiro tem uma relação mais relaxada com regras e com leis. Ele obedece ao que ele acha bom obedecer e não obedece a aquilo que ele acha que pode não obedecer, que não vai ser pego. Eu vejo isso pela sonegação, pelos motoristas passando pelo semáforo vermelho no meio da noite.

Você acha que este comportamento é similar no uso da língua?
Alison – Acho que é uma hipótese, não tenho certeza.

Mas há um lado bom nesta flexibilidade? O que você citou não é muito bom…
Alison – O próprio jeito do brasileiro viver é assim. O brasileiro não entra em pânico. Acho que porque historicamente passou por tudo. Economicamente, com ditaduras, com o (Fernando) Collor. De forma geral, é um povo que vive muito o hoje, é um povo menos tenso, menos preocupado. Eu cheguei aqui no Brasil e logo fui para a praia. Queria conhecer esta praia linda. Aí coloquei um chapéu grande, coloquei um maiô, peça única, coloquei uma saia, porque na Austrália a gente não mostra a bunda, coloquei óculos e coloquei uma sandália. As mulheres estavam só de biquíni e um biquíni bem pequeno. Tanta gente olhou pra mim como uma criatura no zoológico que eu comprei um biquíni no dia seguinte.

Um bem pequeno…
Alison – Fui para a praia e me senti pelada naquele biquíni, mas ninguém me olhava, sinal de que eu estava dentro da norma. Aquela coisa de regra, de se preocupar em fazer tudo certinho, a gente tem muito isso. Se eu desobedecer a uma regra de trânsito, se eu sem querer passar por um sinal vermelho, na Austrália já estaria cortando os pulsos. E brasileiro deixa pra lá.

O que este contato profundo com a nossa língua te mudou?
Alison – A língua é um meio de a cultura chegar à pessoa. Conforme fui vivendo, estou há 14 anos no Brasil, fui relaxando com relação a certas coisas, nesta preocupação com regras. Outro dia tive de ir à Polícia Federal avisar da minha mudança de endereço. Eu não sabia, mas estrangeiro tem 30 dias para avisar que mudou de endereço. Aí fui lá já meio brasileira, quis dar uma de que não entendia esta regra de 30 dias e ver se conseguia não pagar a multa. Passei o comprovante do endereço novo. A funcionária perguntou: “Há quanto tempo você se mudou?”. Eu não aguentei e tive de falar: “Há três anos”. Depois contei para o meu marido e virei a piada do final de semana entre todos os amigos: só gringa para pagar multa.

Como você conta o Brasil para seus amigos?
Alison – No começo foi um momento de deslumbramento com a beleza física do país. Todo gringo fica um pouco louco quando vem pra cá. Essa liberdade das pessoas, esse jeito relaxado de levar a vida, de tomar uma saideira e não se preocupar com o dia seguinte. Isso é encantador porque é uma liberdade que a gente não se dá, pelo menos no meu país e em outros países de língua inglesa. Me encantei muito com a beleza. Santos é uma ilha, fica no meio de uma enseada cercada de ilhotas e é cheia de mato. Eu sou de um país muito seco, um deserto. E lá todas as plantas são mais para o marrom que para o verde. E aqui tem este verde descendo a serra. Quando cheguei esta coisa de emails ainda estava no comecinho. Então comprei um fax para escrever cartas a mão e passar por fax para as pessoas. Em meus primeiros anos vivendo no Brasil tive uma sensação de estar vivendo uma aventura de um livro. E não de uma coisa real.

Que tipo de livro?
Alison – Alguma coisa do Gabriel García Márquez. Na época estava fascinada pelo realismo mágico. Eram tantos absurdos e coisas tão impensáveis para a gente. Acho que esta expressão veio para nós como a descrição de todo um gênero de literatura. Mas, conforme eu fui vivendo aqui no Brasil e vivenciando o país e as suas peculiaridades culturais, passei a perceber que metade das coisas que estes escritores escreviam poderia acontecer aqui. Sabe, o Collor, o que ele fez, é uma coisa tão surreal para a gente, mas podia acontecer aqui, como aconteceu. E outras coisas deste tipo. Passei a perceber que estes escritores estavam descrevendo a sua realidade. Não era mágico. Não que isso diminua a qualidade do que escrevem ou o seu talento. Escrevem livros maravilhosos. Mas passei a perceber que tudo aquilo que eu achava que era imaginado não era. Vinha da realidade deles.

O que é um tradutor, afinal? Ele também é um autor?
Alison – Eu não sou daqueles tradutores mais militantes, que insistem que o tradutor é coautor. Acho que o tradutor merece o reconhecimento pelo que faz, não pelo que não faz. O autor criou um enredo, criou personagens, criou seu jeito de falar, criou várias coisas ali que eu não posso mexer. Eu não posso fazer nada a não ser traduzir estas coisas. A criatividade do tradutor se dá no momento em que cria soluções, procura maneiras de expressar aquelas coisas em outra língua. Mas você está criando a partir de um precedente, criando para refletir algo que já existe. Não é criação no sentido de criar do zero um texto. Eu não curto muito a palavra coautor por causa disso. Não que eu ache que o que eu faço não mereça reconhecimento. O tradutor é o tradutor – e não aquele ser invisível que ninguém se lembra de citar o nome. Acho que podia existir um esforço maior por parte das editoras para lembrar o tradutor, colocar o nome na capa ou pelo menos na primeira página.

Mas, para você, a competência do seu trabalho como tradutora parece estar ligada a um respeito radical à voz do autor e não a uma recriação pela sua própria voz. É isso?
Alison – Por isso eu gosto de citar pequenos trechos. Acontece muito com o Chico (Buarque), porque ele é um autor que além de contar a história, ele ama a língua, é evidente no que ele faz. Ele brinca com as palavras. E eu tenho muita preocupação em reproduzir as brincadeiras linguísticas que ele faz. Se eu apenas traduzir as palavras, perde a graça. Por exemplo. O José Costa (personagem narrador de Budapeste) diz a mesma coisa em três frases diferentes no seguinte trecho: “A lourinha era abusada, me apontava às gargalhadas e gritava para o fotógrafo: é bom saber que eu vou para a cama com esse cara, ou: comigo na cama esse cara vai saber o que é bom, ou: saiba que eu vou é com esse cara bom de cama, ou coisa que o valha; eu já me considerava prestes a dominar a língua húngara, quando falada em alto e bom som.” A graça está nestas três frases que dizem a mesma coisa, com as mesmas palavras, mas mudando a sua posição em cada frase. Se fosse apenas traduzir, faria três frases completamente diferentes, com nenhuma semelhança entre si. Tive de pensar o que era mais importante ali: traduzir apenas o sentido ou traduzir toda esta brincadeira linguística que faz a gente dar risada quando lê. Para mim não havia possibilidade de apenas traduzir estas três frases. Aí é preciso vestir a camisa do poeta e recriar outra frase que contenha esta possibilidade de se desdobrar de três maneiras diferentes, mas obedecendo todas às mesmas regras. Ficou assim: “The blonde was insolent and pointed at me in fits of laughter, shouting at the photographer: I’ll get this good-time guy in bed with me, or: with me this guy’ll get it good at bedtime, or: it’s time I got this guy’s goods into bed, or something of the sort.”

Há outro exemplo em Budapeste que consumiu dias até você encontrar uma solução?
Alison – Sim. O personagem é um ghostwriter (escritor fantasma, que escreve livros e textos que serão assinados por outros). Ele escreveu um livro chamado “O ginógrafo”, publicado em nome de um alemão. Aí ele vai embora do Brasil, mora uma década ou mais fora e, quando volta, vê um livro na vitrine da livraria e acha que é o dele. Ao chegar mais perto descobre que o livro se chama “O naufrágio”. A beleza disso em português é que as duas palavras possuem quase as mesmas letras, mas organizadas de forma diferente. Embaralharam a vista dele. Em inglês, ginógrafo virou “gynographer“, mas naufrágio seria, numa tradução literal, “shipwreck“. Nada a ver entre si. Tive de vasculhar o Oxford English Dictionary página por página, palavra por palavra, até achar uma que tivesse os mesmo atributos: “hypnologist“. Ela não tem tantas letras em comum, mas as mais marcantes estão todas ali. É nestas horas que sinto que estou brincando de palavras cruzadas.

Traduzir, para você, é similar a fazer palavras cruzadas?
Alison – Acho que é a coisa de achar o encaixe perfeito. Principalmente nos autores que têm uma preocupação lírica com a linguagem, que criam um eco repetindo a mesma frase. Tem de funcionar num contexto e em outro. Não é qualquer palavra que se presta a esta duplicidade. Quando faz palavras cruzadas, você tem aquela palavra, o significado e sempre há vários sinônimos. Mas só uma vai se encaixar ali cortando todas as outras. O tradutor tem de ter sensibilidade para todas estas coisas e tentar trazer todas elas para a sua língua. E esta é a criatividade do tradutor. Eu queria que as pessoas reconhecessem isso, meus fracassos e meus sucessos. E não me chamassem de coautora. São duas artes diferentes.

Qual é a sua palavra favorita na língua portuguesa?
Alison – Orelhudinho.

Sério? Por quê?
Alison – É como o meu Patãozinho (nome do seu cachorro) aqui. É muita informação embutida numa palavra só. Acho isso maravilhoso. Esta elasticidade da língua portuguesa. Dos diminutivos e dos aumentativos.

Quando você ouviu “orelhudinho” pela primeira vez?
Alison – Eu estava dando aula de inglês e uma professora falava de um aluno que tínhamos em comum, mas eu não lembrava o nome. Aí ela disse: “Sabe aquele orelhudinho…” Eu morri de rir e identifiquei na hora. É incrível que uma pessoa possa ser grande e pequena ao mesmo tempo. Esta contradição embutida na palavra é maravilhosa.

Por que você acha que existem tão poucas traduções da literatura brasileira para o inglês?
Alison – Aqui no Brasil cerca de 50% dos livros publicados são traduzidos de diversas línguas. Em muitos países europeus, como a França, também. Mas, nos países de língua inglesa, a estatística corrente é de apenas 3% de livros traduzidos de todas as línguas para o inglês. Acho que as culturas têm suas próprias estéticas. Isso se aplica a tantas coisas. O que o brasileiro acha bonito em uma mulher é diferente do que é bonito no meu país. Aqui gostam de mulheres com bunda, coxa, carnes, e no meu país gostam de magricelas, mulheres que são feias para os padrões brasileiros. Acho que acontece o mesmo em outros aspectos da vida, inclusive na literatura. Acho que as preocupações literárias são diferentes. Lá as editoras gostam muito de publicar livros que contam uma história, que tenham começo, meio e fim, que não tenham tantas divagações filosóficas. Se você pegar um livro francês, muita coisa da literatura é mais devagar, contempla mais as coisas. E há editores de língua inglesa que não gostam de publicar as coisas da França por causa disso. Acho que o Brasil tem um pouco em comum com a França neste sentido. É uma estética diferente. Esta questão da pontuação, por exemplo, não é sempre aceita de braços abertos pelos editores de língua inglesa porque não é a estética deles.

Você teve uma discussão com o editor de O Filho Eterno, de Cristovão Tezza, sobre isso, não?
Alison – Ele queria reescrever um monte de coisas na edição em inglês. Eu achei que era facilitar um pouco demais, deixar as coisas mais claras quando o autor não quis ser tão claro. O autor quer que você trabalhe um pouco para chegar num sentido, então não dá para deixar tudo tão mastigadinho. É claro que há concessões necessárias numa tradução, porque a pessoa pode não entender o raciocínio de um brasileiro. Há momentos em que é preciso dar condições para que o leitor em inglês possa entender, mas isso não significa simplificar demais. Eu defendo o livro, sempre. Uma vez um editor me pediu para explicar uma metáfora. Não, pelo amor de Deus, a metáfora se explica sozinha. O autor não quis explicar aquilo. Então, de jeito nenhum vou explicar uma metáfora. Mas tenho de ficar brigando. Por outro lado, um autor pode ter um domínio bom da língua, mas às vezes tem uma visão parcial. Afinal, a gente nunca tem uma visão total nem da nossa própria língua. Às vezes o autor pode não perceber a estranheza que ele não sente, mas que um nativo vai sentir. Então às vezes eu também tenho de brigar com o autor. Sempre brigo pelo livro.

Cidade de Deus, de Paulo Lins, consumiu dois anos para ser traduzido. Você poderia contar um pouco de suas dificuldades com esta tradução?
Alison – Eu imaginava que seria difícil, mas não tinha noção de que o buraco estava muito mais embaixo. O livro se passa nos anos 60, 70 e 80, e o Paulo Lins vai refletindo estas mudanças no livro pelo tipo de droga, pelo tipo de arma, pelo tipo de gírias que usavam em cada época. Então eu tinha de encontrar soluções em inglês que não fossem anacronismos. Eu não podia usar o termo de uma droga que apareceu nos anos 90 e que ninguém tinha conhecimento nos anos 70. Muitas destas coisas não estão nos dicionários. Eu não sei se existe um dicionário de maconha. Se existir eu preciso ter na prateleira (risos). Então eu consultava pessoas que fumavam maconha naquela época, sobre como falavam a palavra baseado. E quando vendiam cocaína, qual era a palavra para a unidade vendida. É difícil achar quem compartilhe estas informações. E também é difícil para as pessoas se lembrar de quando começaram a usar a expressão que falam hoje. Então me falavam coisas muito modernas e insistiam que tinham falado isso sempre. E eu sabia que não tinham. Eu tinha também outro problema, que o era o fato de o livro estar sendo traduzido simultaneamente para o inglês britânico e o americano. Quando você fala em registro linguístico, quanto mais acadêmica a linguagem mais parecida fica. Linguagem acadêmica dá para publicar nos dois lados do Atlântico sem grandes problemas. Quanto mais coloquial, porém, mais específica. As gírias pertencem a um pequeno número de pessoas. E como Cidade de Deus é coloquial e tem gírias do começo ao fim, não tinha como fazer uma tradução que satisfizesse os britânicos e os americanos. Se eu fizesse apenas para o inglês britânico e a mesma coisa saísse nos Estados Unidos, os ingleses achariam muito natural e se entregariam à leitura. Mas os americanos não iriam se entregar porque toda hora se deparariam com palavras que soariam britânicas. Isso poderia levar o leitor americano a imaginar uma história se passando na Inglaterra e não no Brasil. Da mesma forma que não posso usar as gírias de um bairro pobre de Nova York para falar da realidade de uma favela no Brasil, porque os leitores vão entender aquela realidade como sendo a de Nova York e não a do Brasil. É bem complexo.

Era uma missão impossível, então?
Alison – Impossível. Sem saída. Fiz para o inglês britânico, mas pedi que houvesse uma revisão para o inglês americano, feita por um editor americano, para ajustar estas gírias, para fossem naturais para este leitor, já que uma única versão não satisfaz todo mundo.

Mas como foi a sua pesquisa para o Cidade de Deus?
Alison – Há, por exemplo, todo um trecho que se passa na prisão. Um dos personagens da favela vai preso e tem toda uma questão de mulher de prisão. Na verdade, a “mulher do xerife”, sendo que o xerife é o presidiário que manda lá dentro. E havia outros presidiários que eram as mulheres dos amigos do xerife. Estes presidiários que eram as mulheres tinham de usar calcinha, fazer sexo, lavar as cuecas. Era isso ou a morte. A crueldade humana é ubíqua, está em todo lugar, e eu achei que tinha de ter uma realidade correspondente. Aí fui atrás para tentar achar as expressões e gírias. Para encontrar, entrei num site de apoio a ex-presidiários na Inglaterra. Comecei a trocar emails com um deles. Senti que era extremamente humilhante para ele falar disso, mas ele me deu as palavras. Só que depois desta pesquisa toda, acabei traduzindo mais ao pé da letra. Embora na Inglaterra possam não chamar de xerife, achei que refletia algo daqui, pelo fato de terem escolhido chamar de xerife. Às vezes a gente faz toda esta pesquisa para jogar fora depois. Toda a pesquisa para Cidade de Deus levou muito tempo. Drogas, prostituição, armas. Nunca segurei uma arma na minha vida nem quero segurar, mas aprendi o que era cada parte da arma, tive de saber as mínimas coisas.

O alemão Berthold Zilly, tradutor de Euclides da Cunha e Machado de Assis, diz que há diferença entre o número de opções, de sinônimos, para algumas palavras entre uma língua e outra. Por exemplo, há muitos sinônimos em português para “carícia” e poucos em alemão. E isso diz da cultura de cada país. Você deparou com algo assim?
Alison – Em Leite Derramado (de Chico Buarque) há um trecho de mais ou menos uma página em que o Chico usa muitos verbos diferentes para “chicotear” e muitos sinônimos para a palavra “chicote”. Ele fez questão de não repetir a mesma palavra. Descobri então que português tinha uma ligeira vantagem sobre o inglês na questão do chicote. Acabo de verificar a palavra “chicote” em dois dicionários analógicos em português. Um traz 44 sinônimos e o outro, 30. No entanto, meu dicionário de sinônimos em inglês só tem 12 sinônimos para “chicote” e 17 jeitos de “chicotear”. Não sei de onde vem essa riqueza em matéria de flagelação em português. Só sei que a língua e as palavras nascem de realidades. Mas pode ser que estejam na língua há muito tempo, antes de o Brasil ser o Brasil, talvez tenham vindo de outras línguas. Não sei te dizer os porquês, infelizmente. Mas adoraria saber.

Quais são as impossibilidades de tradução? Você sofre muito com o que chama de seus “fracassos”?
Alison – O sotaque é uma destas impossibilidades. Jamais vou conseguir manter um sotaque mineiro, de Cataguases, por exemplo, como o dos livros de Luiz Ruffato. Assim como não dá para recriar na língua inglesa a diferença entre um sotaque carioca e o do sul. Dói, mas sei que tradução é uma coisa incompleta. Eu sei que é impossível, então tenho de aceitar. É possível explicar em nota de rodapé, mas aí esbarra na fluidez, em não querer quebrar a suspensão da descrença do leitor. Há autores em que sinto que a perda é maior. Luiz Ruffato é um deles. Ele trabalha com toda uma classe social e representa as pessoas de uma forma que, lendo, você acha que conheceu um cara exatamente assim. Mas ele fala de coisas tão brasileiras, de uma condição social. Isso está ali na tradução, como no original, mas, sem conhecimento do Brasil o leitor não vai enxergar. Vou dar um exemplo concreto, de um trecho: “Às onze, encostou junto ao meio-fio do bar do Auzílio, a charanga surdo-repinique-tamborim-zabumba-pandeiro-apito choramingando por favor, vai embora,/minha alma que chora,/está vendo meu fim./ Fez do meu coração a sua moradia,/ já é demais o meu penar…” A gente já escuta o barulho só lendo a frase. Mas a sonoridade vai embora na tradução porque os instrumentos não têm tradução, e mesmo que tivessem, a maioria das pessoas de língua inglesa não faz idéia do som que cada um faz. Sem falar na letra dessa música tão conhecida, que todo mundo que lê já põe para tocar na cabeça. Até tentei recriar a corrente de palavras com sons, em vez de instrumentos, mas achei que perdeu a graça totalmente, e acabei tendo de aceitar a perda. Foi uma derrota. E fiquei triste.

(Publicado na Revista Época em 16/08/2010)