Premiado autor de histórias em quadrinhos só transa com prostitutas há mais de uma década. Em um livro inteligente e engraçado, ele critica o amor romântico e defende a normalidade da prostituição
Em junho de 1996, o canadense Chester Brown desenhava histórias em quadrinhos no apartamento que dividia com a namorada, em Toronto, quando ela anunciou: “Te amo como sempre amei e sei que sempre vou te amar, mas…. acho que me apaixonei por outra pessoa”. Chester percebeu que não estava abalado – nem se abalou quando o novo namorado passou a dormir com a recentíssima ex no quarto ao lado. Uma passagem tão tranquila que os dois decidiram continuar dividindo o mesmo apartamento, o que fizeram por muito tempo. Um ano depois, aos 37 anos, Chester chegou a uma conclusão que mudaria a sua vida: “Tenho dois desejos contraditórios: o de transar e o de não ter namorada”.
Chester acabou descobrindo que, pelo menos para ele, não havia contradição alguma. Depois de uma fase de celibato, ele deu início a uma vida sexual com prostitutas que, em geral, era bastante prazerosa. Quando as descrições dos anúncios não correspondiam aos fatos, ele podia inventar uma desculpa e cair fora – ou acabar constatando que, apesar de a mulher não ser tão gostosa quanto dizia que era, tinha outros talentos ou simplesmente era divertida.
Descobriu que, para ele, o “amor romântico” não fazia sentido algum. “Nossa cultura impõe a ideia de que o amor romântico é mais importante que as outras formas de amor”, diz ele um dia à ex-namorada. “Já não acredito nisso. O amor dos amigos e o da família podem ser tão satisfatórios quanto o amor romântico. A longo prazo, provavelmente são mais satisfatórios.”
Mais tarde, explica sua tese a uma prostituta, durante uma conversa na cama. “O amor é doação, partilha e carinho. O amor romântico é possessividade, mesquinhez e ciúme”, diz à moça. “A mãe que tem vários filhos ama todos eles. Quem tem vários amigos pode amar todos eles. Mas não se acha correto que se sinta amor romântico por mais de uma pessoa por vez. Acho que é a natureza excludente do amor romântico que o torna diferente de outros tipos de amor.”
As aventuras de Chester Brown e sua escolha pelo sexo pago são contadas por ele em uma deliciosa graphic novel (novela em quadrinhos), que acabou de chegar às livrarias do Brasil. Pagando por sexo (WMF Martins Fontes) é o relato confessional do quadrinista, escrito com rigor jornalístico. Inclusive trocando o nome das prostitutas, para não identificá-las, assim como jamais desenhando seu rosto ou suas marcas pessoais, para que não sejam reconhecidas – mas buscando ser fiel à forma de seus corpos.
Ao longo das 284 páginas, Chester vai narrando seus dilemas, seus encontros com prostitutas e suas discussões com amigos. Especialmente com os quadrinistas Joe Matt e Seth, com quem formava “os três mosqueteiros” no mundo das HQs. Estas conversas, geralmente em um bar ou café, são as partes mais interessantes do livro, já que os amigos têm dificuldade de aceitar a escolha de Chester – tanto pelo enorme preconceito existente ainda hoje com relação à prostituição, quanto pelo que essa alternativa pouco convencional produz de incômodo com relação à vida amorosa-sexual de cada um deles.
Ao final do livro, temos vontade (eu, pelo menos) de ser amiga do Chester que vai se mostrando com abissal honestidade a cada página. Sem esquecer, é claro, que, como qualquer relato autobiográfico, as verdades sobre quem escreve sobre si mesmo são filtradas por um olhar amoroso e, às vezes, complacente. Mas Chester consegue rir de si mesmo – e duvidar de si mesmo – vezes o suficiente para a história nos envolver e convencer. A certa altura, por exemplo, uma das prostitutas explica a ele por que prefere trabalhar à tarde em vez de à noite. Ela diz: “Quando a gente trabalha à noite, muitos caras chegam bêbados. Os piores clientes são os bêbados e os que têm pênis grande”. E acrescenta: “Quem dera todos os meus clientes fossem como você”.
As aventuras de Chester, porém, não são apenas deliciosas. Seu maior mérito é nos confrontar com uma visão sobre o amor, o sexo e a prostituição que contraria o senso comum. Mesmo para pessoas consideradas de “mente aberta”, a prostituição ainda é um tabu. Ainda hoje, as prostitutas são reduzidas ou a “vagabundas” ou a “vítimas da sociedade, do machismo e do patriarcado” – visões pobres e autoritárias sobre uma identidade complexa. De certa forma, sobre a prostituição há quase uma unanimidade negativa unindo setores da sociedade que discordam em quase todo o resto.
Chester incomoda também por não caber no estereótipo do que se imagina como um cliente do sexo pago. Ele não é o sinhozinho do passado, que mantinha em casa a mulher “honesta” e “mãe dos filhos”, mas divertia-se mesmo era no puteiro da cidade. Tampouco é o explorador de mulheres violento, tarado e com “vícios” inconfessáveis das histórias que viram notícia. Muito menos é o loser infeliz, desajustado e solitário que busca o prazer nos becos escuros, esgueirando-se pelo submundo.
Chester usa seu nome verdadeiro, não esconde de ninguém que transa com prostitutas e trata sua escolha com tanta naturalidade como se estivesse falando de um casamento convencional. Ao colocar um tema historicamente relegado à sombra – e ao assombro – debaixo do sol, ele torna-se algo novo. Especialmente porque tem a inteligência de não escorregar para o lado oposto – o do glamour –, o que seria desastroso.
Para Chester, transar com prostitutas é tão comezinho quanto namorar, morar junto ou casar. Como um homem da era digital, ele escolhe as mulheres pelos anúncios e avalia as “resenhas” deixadas por outros clientes em sites na internet. Paga o preço combinado e respeita os limites estipulados, porque é uma pessoa decente, e dá gorjetas até quando não gosta muito, porque talvez seja bom moço demais.
Por conta da reação persistente e quase ofendida que sua escolha causou, Chester acabou por tornar-se um defensor público da legalidade da prostituição – ainda proibida em vários países, mesmo ocidentais. Embora defenda a legalização da prostituição, porém, é contra a regulamentação da profissão, por considerar que o Estado deve ficar fora da cama dos cidadãos – qualquer que seja a relação estabelecida entre as partes. É contra também porque acredita que a partir dela se criaria uma nova distinção entre as prostitutas, que deixaria as não regulamentadas desprotegidas.
Mas Chester é, principalmente, um defensor da “normalidade” do sexo pago. Em nome dessa militância, ele faz um longo apêndice ao final do livro, dividido em 23 itens – o mesmo número de prostitutas com quem teve relações sexuais – para rebater os argumentos contrários à prostituição, que chama de “namoro pago”. Em geral, rebate os argumentos usados por uma parcela do movimento feminista, que coloca a prostituição como uma exploração da mulher – e a prostituta como uma vítima.
A seguir, alguns dos itens elencados por Chester Brown:
1) Você é dono do seu corpo. Dizer “Quero transar com você porque você vai me dar dinheiro” é tão moral quanto dizer “Quero transar com você porque eu o amo”. E isso tanto para homens quanto para mulheres.
2) Os clientes não compram as prostitutas. Quando alguém compra um livro, leva-o para casa e faz o que quiser com ele, por quanto tempo quiser. Com uma prostituta, você paga para transar durante um tempo determinado, limitado por aquilo que é combinado, e depois se separa dela. Nenhum cliente faz o que quiser com uma prostituta – nem é dono dela.
3) A violência, minoritária, é tão presente no sexo pago como no sexo não pago. Existem clientes cretinos na mesma proporção que existem maridos e namorados cretinos, que ignoram os pedidos e os limites estabelecidos pelas mulheres. Assim como há aqueles que extrapolam e as espancam. Para reprimir esse comportamento, há leis. Mas, se concluirmos que devemos criminalizar ou condenar o sexo pago porque alguns homens são cretinos e outros são violentos, então é preciso criminalizar ou condenar também o casamento e o sexo não pago. Da mesma forma, com relação ao tipo de trabalho, qualquer um acharia descabido terminar com a profissão de taxista porque alguns são assaltados, feridos e até mortos por assaltantes travestidos de clientes.
4) Não são apenas as prostitutas que muitas vezes transam sem desejo. Muitas pessoas, em relacionamentos amorosos, também transam sem vontade. A frase “Não quero transar com esse cara, mas vou transar porque preciso de dinheiro” é tão moral quanto “Não quero transar agora, mas vou transar porque ele é meu namorado e eu o amo” ou “Não sinto mais desejo pelo meu marido, mas vou transar pelo bem do nosso casamento”.
5) A prostituição não destrói a dignidade das prostitutas. A vergonha que algumas prostitutas sentem por conta da profissão é provocada pela interiorização do preconceito enfrentado na sociedade – e não pela venda do sexo em si. Assim como no passado (e ainda hoje, em alguns casos) os homossexuais sentiam vergonha, depressão, culpa e repulsa por sua orientação sexual. Isso não significava que ser gay era errado – e sim que muitos homossexuais interiorizavam os valores da cultura em que viviam, assumindo o preconceito da sociedade como vergonha e como culpa.
6) A diferença com que a sociedade trata a prostituição masculina mostra que o preconceito, como sempre, é com relação à autonomia das mulheres. Em geral, os adversários da prostituição feminina ignoram a masculina. A razão é que os argumentos usados para condenar a prostituição feminina soariam ridículos se aplicados à masculina. Nossa cultura acredita que os homens controlam a própria sexualidade. E, se um homem se coloca em uma situação potencialmente arriscada, a sociedade compreende como um comportamento inerente à natureza masculina. Já, com relação às mulheres, não. Elas são sempre vítimas, e há sempre alguém – mesmo que outras mulheres – apto a determinar o que é melhor para elas.
7) A prostituição é uma escolha. Setores contrários à prostituição afirmam que não há escolha real se a mulher tem de eleger entre ganhar um salário baixo em um emprego pouco valorizado ou se prostituir, assim como não haveria escolha se a mulher se prostitui supostamente porque foi abusada na infância, caso de parte das prostitutas (como de parte das mulheres). Mas uma escolha é uma escolha, ainda que seja uma escolha difícil. Dizer que adultos não teriam o direito de escolha porque tiveram uma infância difícil é um terreno perigoso. Estas mulheres que não poderiam escolher pelo sexo pago não estariam, então, aptas a fazer qualquer escolha sexual, mesmo amorosa, por causa do seu passado. Da mesma forma que a realidade impõe escolhas difíceis para ganhar a vida o tempo todo, tanto para homens como para mulheres. E do mesmo modo como há quem gosta do que faz e há quem não gosta em qualquer profissão. Todas as pessoas – e não só as prostitutas – são fruto de suas circunstâncias e do sentido que conseguiram dar ao vivido. Alguém tem o direito de determinar quais adultos estão aptos e quais não estão aptos a fazer escolhas sobre a sua própria vida, ainda que sejam escolhas que não agradem aos outros?
Estes são alguns dos argumentos que Chester Brown propõe ao leitor, construídos a partir de pesquisa e leituras, mas principalmente a partir da sua própria experiência no mundo do sexo pago. Na novela da vida real que ele conta em quadrinhos, cada prostituta entende sua escolha de forma diversa. Quando não contam para a família e para os amigos sobre sua profissão, em geral é por temer o preconceito – e não por desprezar o que fazem.
Por características de sua personalidade, um pouco obsessiva, Chester esmiúça o sexo pago e suas implicações com algo próximo do método científico. Meticuloso, ele escuta e duvida tanto dos outros quanto de si mesmo, o que o torna digno de ser escutado naquilo que diz. Ao terminar o livro, Chester parece ter achado o melhor para ele, pelo menos naquele momento: estava há seis anos transando com uma única prostituta, que, por sua vez, só transava com ele, numa curiosa relação monogâmica sem compromisso. Chester acredita que ela não transaria com ele se não pagasse – e acha ótimo que seja assim.
No último apêndice do livro, seu amigo Seth comenta com ironia amorosa: “A verdade é que, se no passado o envolvimento de Chet com prostitutas me incomodava, hoje eu superei isso. A prostituição pode não funcionar para todos, mas funciona para ele. O gozado em Chester é que, de todos os homens que conheço, ele talvez seja o que daria o melhor marido ou namorado para qualquer mulher… e, no entanto, foi ele que escolheu a prostituição. O mundo é muito engraçado”.
Mas Chester escorrega em pelo menos um ponto, o que é uma pena. Ao escolher transar apenas com prostitutas, por achar que o amor romântico não serve para ele, Chester é atacado por muitos – e também pelos amigos mais queridos. Afinal, manter uma relação amorosa romântica com alguém parece ser a busca maior e a redenção de boa parte das pessoas em nossa época. Para Chester, o amor romântico é apenas um mito no qual as insatisfações mútuas são mascaradas para não comprometer a sua idealização, tão cara à nossa cultura.
O problema é que Chester trata o amor romântico – e o casamento – com preconceito semelhante ao reservado à prostituição pelos seus opositores. Quando o melhor, me parece, seria não substituir um dogma pelo outro. Assim como pagar para transar pode ser a melhor solução para Chester e para muitos, o sexo não pago pode ser a melhor solução para outros. Há um zilhão de pactos diferentes que um homem e uma mulher – ou um homem e um homem, uma mulher e uma mulher – podem fazer entre si e que só diz respeito a eles. Seria melhor ter ficado por aí, mas Chester Brown, como muitos que defendem uma bandeira na contramão, acaba tornando-se dogmático pelo avesso.
Esse escorregão, porém, não tira o brilho de sua obra e da sua reflexão. É importante quando alguém nos arranca do senso comum e nos lança diante de novas perguntas – não para concordar com ele, mas para pensar com ele. E mais ainda em uma época na qual o politicamente correto tem reprimido a liberdade das ideias. Chester não provoca polêmica pela polêmica, como muitos em busca de audiência e leitores. Estuda, pesquisa, experimenta e conta. E é sua honestidade moral e intelectual que torna Pagando por sexo tão instigante.
O livro me lembrou de um evento, ocorrido há quatro anos em Porto Alegre, chamado “Um puta sarau”. Na ocasião, um folhetim escrito por um grupo de prostitutas e intitulado “Uma puta história” foi lido para o público. A certa altura, uma feminista não se conteve e disse: “Espero que um dia as mulheres não precisem mais vender o seu corpo para sobreviver”. Janete, a prostituta que estava no palco, retrucou na hora:
– Mas eu não vendo o meu corpo, eu alugo. E só um pedacinho dele. A senhora não aluga o seu cérebro para o seu patrão?
Como se vê, há muito para refletir.
(Publicado na Revista Época em 23/07/2012)