Está na hora de enfrentar a violência também no ensino privado
Eu a conheci anos atrás. Conquistou-me de imediato. É cada vez mais raro encontrar uma criança bem educada, que diz por favor, obrigada e com licença. Que pede desculpas se esbarra em você sem querer. Que dá oi e dá tchau. Que pergunta se você está bem. Ela é assim. É agora, aos 11, quase 12 anos. Era aos 5, quando nos encontramos. Gostava de barbie e de desenhos animados, mas vez ou outra assistia a algum filme do expressionismo alemão com interesse. Ouvia Palavra Cantada e Chico Buarque com igual deleite. Éramos ambas – e somos até hoje – fãs quase fanáticas dos livros do Harry Potter. Filha de mãe escritora, pai economista, ela tinha, ao mesmo tempo, estímulo para voos intelectuais mais largos e respeito por seus gostos infantis, o que sempre me pareceu um jeito sábio de educar. Para mim, ela sempre foi impossível de não se gostar.
É triste não poder aqui colocar o nome desta menina tão especial. Mas seu nome não será revelado para protegê-la de seus colegas, precaução por si só chocante. Na semana passada eu soube por sua mãe que ela deixaria a escola que cursa há anos. Foi sendo expulsa pelos colegas, sem que os professores nada fizessem. Estuda numa das escolas de elite de São Paulo. Bom projeto pedagógico, turmas pequenas, inclusão de crianças com necessidades especiais. Tudo de bom e de moderno, aparentemente. O que, então, aconteceu, para que uma boa aluna, uma garota afetuosa e bem educada, tenha de partir porque a escola se tornou um filme de horror?
Muito se escreve e se fala sobre a violência nas escolas públicas. E o tema é sério e relevante. Mas está na hora de prestarmos mais atenção no que ocorre na outra ponta da desigualdade social refletida no sistema de ensino brasileiro: as escolas privadas de elite. Diante da piora progressiva da qualidade da escola pública, a classe média vem esfolando o orçamento para matricular seus filhos em escolas privadas, com a convicção de que assim têm mais chance em um mundo competitivo.
Por que a classe média não brigou – e não briga – pela qualidade do ensino público em vez de se bandear para a educação privada? Eu mesma cursei o ensino médio em escola pública (uma péssima escola pública, diga-se), mas tomei o mesmo caminho de boa parte dos pais de classe média ao matricular minha filha: esfalfei-me durante 11 anos para pagar um dos colégios privados mais caros de Porto Alegre. Por que não fui brigar por qualidade de ensino dentro da escola pública? Por amor pela minha filha, sem dúvida, mas também por empatia de menos pelo destino dos filhos dos mais pobres, provavelmente. Na hora de escolher, optei por resolver o problema “dos meus”.
Muitas vezes, eu deixava de pagar todas as contas para pagar a escola. Nunca atrasei o colégio para que ela não sofresse constrangimento, nem a luz para não ficarmos no escuro. O restante das despesas atrasei todas durante boa parte desse período, o que me rendia noites recorrentes de insônia e humilhações sem fim diante de gerentes de banco. Mesmo assim, nunca me passou pela cabeça matriculá-la numa escola pública, tão certa eu estava de que fazia o melhor – para a minha filha.
O péssimo desempenho do Estado na educação e a falta de cidadania de gente como eu permitiu que essa situação se perpetuasse até níveis inacreditáveis. O resultado estamos amargando faz tempo, mas não tenho dúvida de que será muito pior em sentidos que ainda não alcançamos por inteiro. As escolas talvez sejam as maiores reprodutoras de desigualdade. Não apenas na questão da qualidade, que determina destinos. Mas no convívio cotidiano, no (não) exercício da solidariedade e do respeito às diferenças. Seja nas públicas ou nas privadas, o que encontramos é uma convivência entre iguais. Nossos filhos não conhecem a diferença, não são beneficiados pela riqueza da diversidade. Não conjugam a tolerância. Quando confrontados com a diferença – e não apenas a socioeconômica –, expulsam-na.
Foi o que aconteceu com a menina desta história. Tempos atrás, ela ligou para a mãe no recreio, implorando para que fosse buscá-la. “Eu não suporto mais ficar aqui”, disse. Suava muito, desesperava-se. Sua mãe respondeu que ela precisava permanecer. E ela está resistindo como pode até o final do ano, para então trocar de escola.
Liguei para minha pequena amiga para saber o que estava acontecendo e propus uma entrevista. Em off, para que ela não fosse mais trucidada na escola do que já é. Ela topou. E aqui está a transcrição literal da nossa conversa, para que seu testemunho possa nos ajudar a pensarmos juntos num problema que é de todos.
Eu: O que aconteceu?
Ela: Eu não sou aceita. Meus colegas me acham meio estranha. Acho que me acham idiota.
Eu: Mas por quê?
Ela: Eu não gosto das conversas deles, me sinto mal. Acho que tenho um jeito diferente de pensar que eles acham bobo.
Eu: Mas que jeito é este?
Ela: Eles gostam de ficar ridicularizando os outros. Eu não quero fazer isso.
Eu: Mas quem eles ridicularizam?
Ela: Nossos colegas que têm dificuldade (portadores de necessidades especiais). Eles às vezes precisam fazer provas mais fáceis. Aí chamam eles de burros, de idiotas. Eu acho isso muito injusto. Queria poder fazer alguma coisa, mas eu não sei o que fazer. E os professores não fazem nada.
Eu: Quem mais eles ridicularizam?
Ela: Gente que não usa roupa de marca, que não gosta do que eles gostam.
Eu: E do que eles gostam?
Ela: De funk, por exemplo. Adoram funk. Eu não gosto de funk, daquelas letras. É muito sem conteúdo. Mas gosto da Hannah Montana e da Rihanna. Eles também gostam daqueles programas de TV que ridicularizam as pessoas. Acham que isso é engraçado. E ficam falando das marcas das roupas que usam. Ah, essa calça é da marca tal. Esses dias uma menina disse para a outra: “Ah, o seu pai é milionário”. Aí essa menina respondeu: “Mi não. Bi-lionário”. Pensei: “E você é bi-polar”. Pensei, mas não disse.
Eu: E o que começaram a fazer contigo?
Ela: Eles não falam comigo. Eu pergunto, não respondem. Sabe, teve uma festa, uma balada, mesmo, que convidaram todo mundo. Eu fui uma das poucas que não fui convidada. Aí só ficavam falando nesta festa. E eu não sei por que eu não fui convidada. Eu nunca fiz nada de ruim para nenhum deles. Não entendo por que não gostam de mim. Minha melhor amiga também começou a me ignorar. Eu chego, ela sai de perto. Ela começou a ficar popular na escola.
Eu: E o que é ser popular na escola?
Ela: É usar roupa de marca e sair pisando em todo mundo.
Eu: O que mais te faz sofrer?
Ela: Ficar sozinha no recreio. Eu queria brincar, conversar, mas não tenho com quem. Só eu e o menino com problema mental ficamos sozinhos no recreio. É muito ruim ficar sozinha no recreio. Eu fico muito triste.
Eu: E por que você não fica com o menino com problema mental?
Ela: Porque ele é menino. Eu não tenho muito o que conversar com menino. Mas eu queria poder fazer alguma coisa. Porque ele fica lá sozinho, desenhando. E eu sei como é ruim ficar sozinha no recreio.
Eu: Por que você acha que seus colegas são assim?
Ela: Eles são que nem os pais deles. Nessa coisa das marcas, do dinheiro. Mas quem cria meus colegas, mesmo, não são os pais. Eles nunca ficam com eles. Eles estão trabalhando ou em jantares. Meus colegas são criados pelas babás. Elas são as mães de verdade deles.
Eu: E como eles tratam os professores?
Ela: Essa minha ex-amiga chama a coordenadora de “idiota” e de “imbecil” na frente dela. Não é pelas costas, é na frente. Ela acha que o pai vai pagar para ela passar de ano. Numa excursão, teve um colega que disse para o monitor: “Essa sua profissão é uma m…”. Eles são assim. Acham que vão herdar o dinheiro dos pais. Mas eu tenho impressão que vão gastar todo o dinheiro bem rápido. E aí não sei como vão fazer para trabalhar.
Eu: Você chora muito?
Ela: Antes eu chorava. Teve um dia que pedi para minha mãe me tirar de lá. Liguei para minha mãe no recreio. Não sei por que eu fiquei assim tão mal. Eu suava. Sabe, fiquei desesperada. Mas agora aprendi a lidar com isso. Estou administrando melhor a situação. Levo um livro para o recreio. Agora estou lendo “Coraline e o mundo secreto”. Você viu o filme? Foi baseado no livro.
Eu: E quando você decidiu mudar de escola?
Ela: Quando fui sentar ao lado de um menino e ele disse: “Desinfeta daí”. Eu fiquei sentada onde eu estava. Mas sei que ele não diria isso para outra menina. Acho que falou para mim porque eu não fui convidada para aquela festa. Eu estava aguentando, mas aí foi a gota d’água.
Eu: Você acha que no novo colégio vai ser diferente?
Ela: É uma escola maior. Tem mais gente. Então, deve ter alguém mais parecido comigo, né?
Espero que sim. Desliguei o telefone com medo dos pequenos monstros que conseguem expulsar de seu mundinho alguém tão doce quanto a minha amiga. O que eles vão fazer com o mundo maior quando crescerem? Que tipo de elite nossas escolas estão formando, para além de se dar bem no vestibular e no mercado de trabalho? O cotidiano nas escolas privadas do país pode ajudar a explicar o que acontece hoje nas esferas de poder da vida brasileira.
A crueldade infantil não é novidade. O massacre daqueles que usam óculos, são gordos ou diferentes de alguma maneira é um clássico. Bullying é a palavra inglesa para o abuso físico e psicológico cometido contra indivíduos e grupos mais fracos. Nos últimos anos, tem crescido o número de reportagens na imprensa sobre o bullying na escola. Parece-me que há algo novo neste cenário. E bem mais perverso do que as formas habituais de maldade infantil.
Minha amiga foi sendo expulsa porque está sozinha. Sua esperança na nova escola é conseguir formar um grupo com valores mais semelhantes aos dela para resistir. Para, de alguma maneira, sentir-se parte, para então ter alguma possibilidade de interlocução com outros modos de existir. O modelo brasileiro de ensino – resultado de uma das maiores desigualdades do planeta e do declínio da escola pública – caracteriza-se por um mundo escolar cada vez mais igual dentro dos muros. Nos respectivos guetos, o espaço para toda a diferença parece ter sido suprimido.
Estou generalizando? Pode ser. Mas apenas converse com um professor de escola privada de elite para que ele conte suas peripécias cotidianas com estes mais iguais que os outros. Já tenho sido vítima destas crianças sem limites, sem cultura e sem educação que me atropelam nos corredores dos shoppings e restaurantes, que gritam suas exigências e fazem cenas públicas, sem que seus pais tomem qualquer atitude além de prometer algo em troca de sua colaboração.
Acho que está passando da hora de entender que há um tipo de violência sendo exercido e perpetuado nas escolas privadas de elite. E que essa violência é refletida também lá, nas escolas de periferia, onde a agressão é armada. As violências destes mundos escolares só aparentemente antagônicos se retroalimentam. Uma existe também por causa da outra. Há uma infância supostamente protegida e com todos os acessos abertos ao conhecimento e ao melhor que o dinheiro pode comprar – e outra desprotegida de tudo, que só recebe o pior. Separadas por grades, muros e cercas eletrificadas, uma desconhece a outra. Muitas vezes vão se cruzar mais tarde, pela violência, em alguma esquina da cidade. E são os pais e as mães destes meninos desprotegidos que alguns dos protegidos desrespeitam nos corredores de suas escolas iluminadas, ao encontrarem-nos limpando o chão ou exercendo serviços que consideram, como disse o menino na excursão, “uma m.”.
A escola deveria promover a intersecção dos mundos. É nos bancos escolares que as diferentes realidades – não só a socioeconômica, mas também ela – deveriam se cruzar e dialogar. É na desigualdade de ideias, de culturas e de visões de mundo que se aprende e se avança. Esta desigualdade do bem, porém, foi banida do modelo de ensino. Em vez disso, a escola transformou-se em reprodutora da desigualdade perversa: a socioeconômica, com todos os seus (des)valores correlatos. A escola é resultado da desigualdade socioeconômica e de uma sucessão de políticas desastrosas de ensino. Mas, se é criatura deste mundo, é também criadora, ao reproduzi-lo. Ao transformar-se numa linha de produção da desigualdade que beneficia os mais iguais de sempre, deixa de educar. Este, me parece, é o dilema atual. Ou, pelo menos, um dos grandes.
A ilusão dos pais de filhos em escolas privadas é de que, ao colocá-los lá, garantem a sua proteção. Seus filhos não perdem nada. Quem perde são os filhos dos outros, que não conseguem pagar a mensalidade. Engano. Perdemos todos. A eliminação da diversidade trará consequências mais perversas do que me parece que pais e autoridades têm percebido. Sem diferença não há diálogo. É possível educar sem diversidade? Há aprendizado de fato sem dissonância? Duvido.
Nas escolas de elite, os estudantes ameaçam professores e funcionários não com pistolas, mas com outro tipo de arma: “Sou eu que pago seu salário!” ou “Meu pai vai mandar te demitir!”. Quantos professores já não ouviram frases como essa ao tentar impor limites na sala de aula para esses projetos de déspotas? Já testemunhei professores esvaindo-se em lágrimas e jurando mudar de profissão. E não davam aulas em escolas com esgoto a céu aberto.
“Estas crianças são criadas pelas babás”, disse a mãe da minha amiga. “Ou seja: elas já mandam desde pequenas naquelas que deveriam ser uma autoridade. Se elas podem demitir a pessoa que está no lugar de autoridade, o que se pode esperar?” Ela tem razão. E é bom começarmos a refletir com mais seriedade sobre esse fenômeno contemporâneo.
Minha filha sofreu muito na escola privada. Ela não tinha tênis nem roupas de grife, entre outros defeitos inaceitáveis. Eu disse a ela que o mundo era duro e que ela precisava enfrentar esse tipo de gente desde sempre. Ela enfrentou. Na vigésima vez que o filhinho de papai ridicularizou a sua roupa, ela bateu no menino. Foi uma boa saída? Claro que não. Mas foi o que ela conseguiu fazer diante da minha surdez.
O mais curioso, mas nem tanto, é que em vez de minha filha ser punida por ter agredido o colega, foi parabenizada pelos professores. Um a um eles vinham cumprimentá-la e dar parabéns. De algum modo, ela vingava a humilhação cotidiana de todos eles. Mas seria esta uma boa pedagogia? Estaria esta resposta à altura de alguém que estava ali para ensinar? O episódio não teria sido uma boa oportunidade para discutir, refletir e aprender? Parece-me que também os professores, por diversas razões – e também pela humilhação cotidiana –, não conseguiam estar no lugar que deveriam, não era possível ali a dialética entre mestre e discípulo.
“Talvez tudo o que esses garotos sabem dos pais é que são ricos. Criados por babás, tentam manter esse traço, esse significante do rico/pobre para manter em si os pais que de certo modo não existem”, comentou minha filha, hoje adulta, depois de ler este texto. “Não estou justificando”, disse. “Só pensando.” Seu comentário me fez perceber que estas crianças e adolescentes que fazem sofrer também devem sofrer muito. Afinal, eles não são monstrinhos, como tendemos a pensar. Se fossem, seria mais fácil. São gente. E gente sofre.
Desejo sorte à minha pequena amiga na nova escola. A melhor resistência é continuar sendo ela mesma. Mas temo pela sorte de todos nós no futuro próximo se não enfrentarmos a violência não apenas nas escolas da periferia, mas nos prédios imponentes e caros do lado privilegiado do mundo. Uma violência que começa não fora, mas dentro de casa, tendo os pais como cúmplices – quando não como exemplos.
(Publicado na Revista Época em 28/09/2009)