O debate que a Mídia Ninja tornou visível é maior do que Pablo Capilé e o Fora do Eixo
As ruas, as de paralelepípedos e as de bytes, foram tomadas nas últimas semanas por um debate que opôs o que se tem chamado de “mídia tradicional” ou “grande mídia” a esta que se apresenta como “Mídia Ninja (Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação). Em especial a partir do momento em que ficou clara a ligação entre o coletivo Fora do Eixo e a Mídia Ninja, no programa Roda Viva, da TV Cultura, que colocou Pablo Capilé e Bruno Torturra no centro da roda. Pessoas que conheciam o Fora do Eixo por dentro deram depoimentos arrasadores nas redes sociais. Artigos sobre o funcionamento do grupo, que a maioria dos brasileiros desconhecia, ganharam destaque na imprensa. É importante conhecer o Fora do Eixo e pensar a Mídia Ninja em toda sua complexidade e com todas suas contradições. Mas também é igualmente importante escapar de uma luta colocada em termos do bem contra o mal, que parece ter se imposto de parte a parte em alguns espaços, porque é nesse maniqueísmo que a complexidade se esvai. O maniqueísmo funciona como silenciador de sentidos, ao virar uma armadilha que nos desvia de um caminho mais penoso e menos imediato, povoado por dúvidas, em que cada um precisa confrontar seus próprios dogmas e assumir a tarefa, sempre trabalhosa e cheia de percalços, de construir conhecimento. Em momentos tão ricos como o que vivemos hoje, ganhamos possibilidades se formos capazes de ampliar e complicar as perguntas, em vez de encontrar respostas rápidas e fechadas que as matem antes de nascer.
A Mídia Ninja colocou no centro um debate sobre jornalismo que até então fluía nas bordas. Esse debate é anterior a ela. É travado por vários protagonistas, individuais e coletivos, inclusive dentro das redações da imprensa tradicional. Ao tornar-se visível nas manifestações de junho, destaque na imprensa brasileira e internacional, a Mídia Ninja o tornou visível. Esse talvez seja o seu maior mérito.
Será uma pena se o debate sobre jornalismo for calado, como tem acontecido, em nome de saber se Pablo Capilé é herói ou vilão, visão que tem variado conforme o narrador. Nesse debate, não há respostas únicas nem fechadas, muito menos detentores da verdade absoluta, a mais inverossímil das invenções humanas. Se é importante conhecer em profundidade o Fora do Eixo e sua figura central – e acho que é –, também é importante não reduzir um debate que é maior. Tratando aquele que é apenas um dos protagonistas como se fosse o único, ao desqualificá-lo, desqualifica-se toda a discussão. Isso é uma modalidade de silenciamento. Sem esquecer que o jornalismo se engrandece na medida em que se afasta dos heróis e dos vilões, sempre pobres de humanid ade. É ao debate sobre jornalismo – e especialmente sobre reportagem – q ue me parece importante voltar.
Ao longo do século 20, a imprensa consolidou uma hegemonia na tarefa de documentar sua época. Tornou-se a principal, às vezes a única, versão sobre os acontecimentos. Definiu o que era um acontecimento que merecia ser contado e o que não era e poderia ser apagado, na medida em que não virava narrativa. É importante sublinhar que, para a maioria dos homens e das mulheres que constroem o país, o mundo ou a aldeia em sua existência cotidiana, não ser reconhecido na narrativa da História tinha – e tem – um efeito brutal. A invisibilidade é, talvez, a violência que inaugura todas as outras.
A imprensa cumpriu bem o papel de documentar sua época sempre que ampliou as vozes e alcançou uma narrativa múltipla, complexa e contraditória do seu tempo. Cumpriu mal seu papel quando reduziu as versões e deixou de contar capítulos inteiros. Falhou miseravelmente todas as vezes em que tentou se colocar como totalmente isenta, imparcial e objetiva – ou como detentora de uma verdade única.
Essa relação entre quem conta e quem é contado – ou não é contado – nunca foi tranquila nem pacífica, já que é feita por homens e mulheres, não por uma entidade acima e ao largo de tudo. As batalhas foram e são travadas dentro e fora das redações, num embate necessário entre visões de mundo. Dentro das redações sempre existiram focos de discordância da posição editorial do veículo – e eram melhores os veículos em que essa disputa se dava como parte do cotidiano. Outros espaços foram criados para transformar em acontecimentos as pessoas, os fatos e as denúncias ignorados pela imprensa tradicional, como ocorreu na época da ditadura militar com a “imprensa al ternativa”. Soa um tanto estúpido acreditar que a imprensa pudesse não ser afetada pela vida e pelas vidas. E a vida e as vidas sempre vazaram dentro e fora das redações. A documentação da história em movimento – a matéria do jornalismo – é um embate no campo da política. E também é disso que se trata agora.
A internet quebrou a hegemonia da imprensa, na medida em que criou novos espaços de documentação, para além dos tradicionais, e permitiu a ampliação dos narradores numa escala antes impossível de ser atingida. E na medida também em que eliminou uma mediação, antes feita principalmente por jornalistas. Aqueles que não eram contados passaram a ter os meios para contar e ser escutados por outros também não contados. Aqueles que eram contados, mas discordavam da versão sobre si mesmos – e não falo apenas de indivíduos, mas também de grupos e de linhas de pensamento – passaram a produzir outras narrativas em resposta, no minuto seguinte. Sobre esse aspecto, talvez o episódio recente em que isso tenha ficado mais claro seja a declaração de morte de um grupo de guaranis caiovás, no ano passado. A carta foi amplamente divulgada nas redes sociais. Brasileiros urbanos passaram a falar, pelo Twitter e pelo Facebook, diretamente com as lideranças indígenas. Essa narrativa, construída à parte dos veículos tradicionais, impôs a questão tanto à pauta do governo quanto à da própria imprensa (escrevi sobre isso aqui e aqui).
A ampliação das narrativas e a democratização do acesso aos meios de narração, pelo surgimento da internet, são compreendidas em alguns espaços como o fim do jornalismo. Discordo totalmente dessa tese. No meu ponto de vista, para que essa tese pudesse ter consistência seria preciso encarar o jornalismo como algo imutável e dado, algo que teria sido sempre como hoje o conhecemos – e já estamos desconhecendo. O processo histórico mostra que o jornalismo é um campo em construção, dissolução e transformação, como tudo. E não poderia ser diferente, na medida em que está em disputa a narrativa do presente — algo que causa enorme impacto tanto sobre o próprio presente como também sobre a forma como ele será interpretado no futuro.
Nem me parece que a crise se restrinja a um modelo de negócios que precisa ser reinventado. Também é isso, mas não só. Estamos diante de uma mudança mais ampla, sobre a qual temos poucas pistas e certezas muito frágeis. Ao mesmo tempo que essa mudança ultrapassa o jornalismo, é também contada por ele. Isso mostra não sua decadência, mas sua força. Parece mais claro é que esta é uma crise de hegemonia. Terá mais chance de se reinventar quem aceitar que as narrativas agora se dão em múltiplos espaços.
Se é fato que hoje todos podem contar e se contar, que a definição do que é acontecimento se tornou território de um conflito com um número maior de participantes, travado para muito além das redações e dos espaços tradicionais de poder, também é fato que se fazer ouvir/ler/assistir tornou-se mais trabalhoso, e sem nenhuma garantia. O leitor – aqui entendido não apenas como leitor de textos escritos, mas como um leitor de realidades múltiplas – é hoje também um escritor de realidades. Não só na medida da sua produção pessoal, mas também porque continua a escrever os textos com sua opinião, discordância, sugestões, teses, ponderações e dúvidas, mesmo nos espaços tradicionais do jornalismo. Com esse aumento de poder de escolha e de intervenção, o lei tor tem se tornado mais seletivo ao escolher com que e com quem gastará seu tempo – e faz essa seleção numa paleta mais ampla. Esse deslocamento do lugar do leitor, antes um receptor até certo ponto passivo, provoca uma desacomodação geral.
Minha hipótese é de que o jornalismo, nos meios tradicionais e também nos novos, terá importância nesse mundo em aberto se for capaz de fortalecer e qualificar aquilo que é sua carne, sua espinha e também sua alma: a reportagem. Se, em vez disso, quiser competir com as narrativas ligeiras e superficiais que abundam na internet, perderá seu ponto de diferença. Pode até conseguir aumentar o número de acessos para suas páginas de imediato, mas, a médio prazo, perderá reputação e, por consequência, espaço e relevância.
Não sei como os espaços de reportagem, tradicionais e novos, serão financiados no futuro próximo. Essa e outras respostas estão em construção no mundo inteiro, não só no Brasil. É preciso fazer parte dessa construção como protagonista. O tempo de esperar que alguém diga como funciona já passou. Para que essa construção e esse debate sejam qualificados, é fundamental escaparmos, mais uma vez, do maniqueísmo, útil apenas para enevoar o olhar. Grandes reportagens, crônicas, artigos e ensaios foram produzidos pela imprensa tradicional, e muito do que hoje se discute se tornou possível a partir dessas reflexões. Transformar a imprens a tradicional em vilã, como alguns têm feito, demonstra apenas igno rância sobre o processo histórico e os embates dentro dele. Assim como reduzir as novas iniciativas a menoridades demonstra o mesmo tipo de ignorância. As oposições são menos óbvias do que parecem. O que soa novo às vezes é bem velho. E o que é velho nem sempre é ruim, pelo contrário. Tanto o novo quanto o velho não são bons ou ruins por definição. Os sentidos são algo em disputa.
De que lugar falo? Essa é sempre uma pergunta cuja resposta é preciso ficar tão clara quanto possível. Não sou uma pesquisadora acadêmica sobre o tema nem tenho uma investigação teórica sobre este e outros momentos da imprensa. Para isso, há gente mais habilitada que eu. Meu conhecimento sobre essas questões foi construído pela reflexão cotidiana, ao longo de 25 anos de reportagem – os últimos quatro também como colunista de opinião, algo que não se confunde com a reportagem, embora a use em parte. Quero concluir esta coluna com a reflexão sobre o que é reportagem, como a compreendo, porque esta, talvez, seja minha melhor contribuição para o debate.
Cada repórter, antes de sair de casa, da redação ou do seu umbigo para as ruas do mundo, precisa primeiro atravessar a rua de si mesmo. Este é um movimento profundo e constantemente aprimorado, que cada um encontra seu próprio jeito de fazer. Mas é um movimento obrigatório se quisermos ter a chance de encontrar o outro. Nesse movimento, nos esvaziamos de nossa visão de mundo, de nossos preconceitos, de nossos julgamentos, para irmos o mais vazios possível em direção ao mundo que é o outro, para que possamos ser preenchidos por ele e então empreendermos a viagem de volta, o que está longe de ser fácil. Quando voltamos para casa somos outros, transformados por essa experiência de ser um outro . Nesse movimento de ida e volta, em que aquele que foi já não é o mesmo q ue retorna, nosso desafio é decifrar a narrativa ou as narrativas daquela pessoa, daquele grupo, daquele mundo ou daquele acontecimento.
A reportagem é sempre uma decifração do outro e do mundo do outro. Por mais que pesquisemos antes, e precisamos pesquisar, é fundamental partirmos de um não-saber. É preciso saber muito para ser capaz de se perder – e, diante do outro, nos colocamos sempre perdidos. Quando acreditamos conhecer essa realidade antes de buscá-la, fechamos o espaço da descoberta e voltamos para o lugar de onde nunca saímos, com aquilo que nunca saberemos. Iludidos de que partimos e chegamos, mas de fato cimentados na mesma posição, pela ausência do gesto essencial.
Desvendar as narrativas do outro exige uma postura de humildade. A começar pela consciência de que somos seres falhos. Acreditar que ser repórter nos faz pairar acima da sociedade, encarnando uma isenção e uma imparcialidade que sabemos impossível, é perigoso para si mesmo e principalmente para quem abre a porta da sua vida para nos contar de si. Só o fato de decidir contar uma história já altera aquela história. É preciso ter a humildade de saber que atuamos lambuzados de cultura, com os dois pés enfiados no tempo. Sabendo-nos parte – e falhos –, podemos tomar as precauções possíveis para que tenhamos chance de chegar mais perto das verdades todas.
Depois do movimento interno de esvaziamento, o instrumento do repórter é a escuta. É a qualidade dessa escuta que garante a qualidade da reportagem. Como escutadores da narrativa de um outro, escutamos não só o que é dito como aquilo que não é dito, não só a voz, mas o silêncio, não só as palavras, mas os gestos, os cheiros, as expressões, os móveis e os objetos da casa, assim como suas rachaduras. Essa é uma escuta que se faz não só com os ouvidos, mas com todos os sentidos, em que só conseguimos descobrir a linguagem habitada pelo outro se, por um momento, nos desabitarmos.
Nos episódios em que deixamos esse lugar de escuta, porque às vezes não o sustentamos, é preciso contar ao leitor. É assim que nos precavemos de nossa condição humana e falha, dessa condição de ser na História e para a História. E conseguimos honrar a dignidade desse pacto em que alguém abre a porta da sua casa e dos seus interiores para se deixar decifrar como narrativa. É só por causa desse movimento que nos tornamos capazes de escutar um torturador, um pedófilo, um serial killer, para além do rótulo ocultador de “bandido”. Assim como a “vítima”, para além de uma circunstância que é apenas parte do que ela é.
Se não formos capazes desse movimento, deixamos de fora da história não só grandes porções de uma mesma pessoa, mas uma enorme porção de pessoas. Para o repórter, cada ser humano é uma experiência única e irrepetível, que será escutado em suas singularidades. É nesse movimento de decifração que nos tornamos capazes de compreender que não há vidas comuns, apenas olhos domesticados – e esse olhar domesticado não pode ser o nosso. É no olhar que se lança para além das camadas enganadoras de uma pretensa banalidade e dos muros impostos pelos discursos fechados que se faz a resistência cotidiana do repórter.
Ser repórter não é dado pelo fato de atuar na imprensa tradicional ou nas novas mídias, não é dado por ter diploma ou não, não é dado por títulos e por prêmios. Ser repórter simplesmente não está dado, na medida em que é um modo de estar no mundo. É mais do que um fazer – é um ser. E um ser que só é ao arriscar-se a ser outro.
(Publicado na Revista Época em 19/08/2013)