A saga de um brasileiro que luta pela vida
Ao se deitar na noite de 28 de junho, Hustene Alves Pereira, mais conhecido pela família e amigos como Pankinha, chorou baixinho. Estava a dois dias de completar 51 anos e se sentia humilhado.
Para compreender o sentimento de Hustene, é preciso saber que espécie de homem ele é. Eu o encontrei pela primeira vez numa reportagem no início de 2002. O país era castigado pelo desemprego, e eu buscava um brasileiro que contasse este momento histórico pela vida, não pelas estatísticas. Um que estivesse no parapeito do abismo. Não quando acabamos de perder o emprego e a possibilidade de conseguir outro logo é uma promessa que quase tocamos com a mão. Nem aquele outro período, anos depois, em que a esperança já se foi e manter a cabeça erguida em cima do pescoço é um esforço grande demais. Eu buscava o momento que me parece o mais trágico, quando percebemos que o abismo se descortina como vertigem e nos agarramos aos capins da borda conscientes de que não impedirão nossa queda. O instante em que os filhos começam a sustentar a casa sacrificando o próprio futuro, os produtos anunciados na televisão são para outros e nos escondemos durante o dia para ocultar dos vizinhos que não temos para onde ir. Quando descobrimos que não há lugar para nós no projeto do presente, que nossa vida é para a geração seguinte, reduzidos a gráficos que os especialistas explicam sem precisar manchar as mãos com nosso sangue.
Hustene vivia este exato instante. Continha nele todas as estatísticas, mas nele elas eram carne. Morava, como ainda mora, na periferia de Osasco, na Grande São Paulo, quatro filhos e uma mulher que ama. Numa casa de sala, cozinha e quarto, além do terraço e do banheiro, num terreno que divide com parentes. Quando o conheci, era um homem com brilho nos olhos, discurso articulado, esperneando contra todo um país que falhava com ele. Tentava compensar os estudos que não pôde terminar lendo tudo o que lhe caía nas mãos e buscando na TV programas que pudessem lhe ensinar alguma coisa. Com um senso tão grande e tão particular de honestidade que preferia andar a pé dezenas de quilômetros por dia em busca de emprego a aceitar passagens de ônibus da prefeitura. Hustene achava que tudo que não ganhava com trabalho era esmola.
Acompanhei-o por um tempo em sua peregrinação, dividi com sua família o feijão que sua mulher, Estela, tornava saboroso com pouco além de um tempero que só podia ser amor. E depois que a reportagem foi publicada continuamos nos acompanhando mutuamente, às vezes perto, às vezes mais longe. Nos últimos oito anos testemunhei Hustene lutar pela sua vida de todos os modos, com uma força que quem o visse pela primeira vez não adivinharia naquele homem tão franzino. Lutando pela literalidade de sua vida que a precariedade do sistema público de saúde solapava, pela dignidade de sua vida sem a qual ele não admitia seguir existindo.
Se me perguntassem um dia o que para mim é mais triste testemunhar como repórter, como gente, eu diria que é o desperdício da vida humana. Não apenas pela morte em si, mas pela vida que não pôde se tornar tudo o que poderia ter sido. O desperdício do potencial de homens e mulheres. As tantas pessoas com uma capacidade extraordinária, mas que não tiveram as condições mínimas para desenvolvê-las. E, o pior, com a consciência do que poderiam ser se tivessem nascido em um país com uma desigualdade menos abissal que o Brasil. Vidas roubadas porque o Brasil está aquém de seus sonhos.
Hustene é um destes homens que sonhou mais com o país que o país com ele. E o Brasil foi triturando-o como o moinho da música famosa de Cartola. Nos mais de três anos em que ficou desempregado, apalpou o desespero sem cair no comportamento clássico de tantos. Não se embebedou em bares que não podia pagar, nem levantou a voz para a mulher ou bateu num filho. Em vez disso, desenhava e escrevia furiosamente em folhas de papel. Fazia bicos pagos aos trocados, carregando caixas enquanto uma bursite lhe arrancava lágrimas. Mas seguia acreditando na trindade em que havia assentado suas melhores esperanças: Che Guevara, Corinthians e Nossa Senhora de Fátima. E agarrado à sua carteira de trabalho. Ensinado que fora pelo pai, retirante nordestino, metalúrgico, que este é o documento mais importante na vida de um homem.
Quando já havia consumido todas as unhas para se manter agarrado às paredes do precipício, em 2005 Hustene conseguiu um emprego com carteira assinada e tornou-se o “porteiro Pereira”. Não era um trabalho à altura de sua capacidade, mas nunca, nunca mesmo, vi alguém tão feliz trabalhando por pouco mais que um salário mínimo. Às 4h20 da madrugada ele já estava dentro do primeiro ônibus, com um orgulho que só ele entendia, e cumpria turnos estafantes de 12 horas sem uma queixa. Hustene achava que tinha escalado o despenhadeiro. Mas em outubro do ano seguinte ele sentiu-se mal e Estela o levou ao posto de saúde. O médico garantiu que era “só” uma crise de diabetes e o despachou para casa, onde ao chegar ele teve um AVC (acidente vascular cerebral) que paralisou o lado esquerdo de seu corpo.
Hustene reaprendeu a falar e a andar. Em 14 de abril de 2008 estava tão ou mais feliz que nas vitórias históricas do Timão: tinha arriscado seus primeiros passos sem bengala. Mas em janeiro de 2009 teve o segundo AVC. Agora ele se desequilibra mais, a força lhe escapa, sente náuseas. Esquece dos acontecimentos recentes. Nem sempre se lembra de tomar água. É Estela quem precisa avisá-lo para tomar os 16 comprimidos do dia além das três doses de insulina com que tenta manter o diabetes mais ou menos domado. Com o segundo derrame também se apagou dentro dele o dom do desenho.
Mas Hustene não perdeu sua lucidez. Ele ainda segue escrevendo no computador que ganhou, em diários com papel e caneta, sem perder um documentário na TV. Tão honesto como sempre, em sua casa nunca admitiu nem mesmo os “gatos”, as ligações clandestinas de eletricidade, TV por assinatura, etc. Nem mesmo nos piores momentos, ele fraquejou em fazer a coisa certa. A honestidade, tão fácil para quem pertence às classes mais favorecidas, ainda que não muito praticada, para os da estirpe de Hustene é uma conquista arrancada de cada um dos dias. Com tudo o que é, apesar de tudo que lhe tomaram, Hustene continua acreditando. De sua trindade, mantém a crença em Nossa Senhora de Fátima e no Corinthians, esmoreceu um tanto de Che Guevara. Em nenhum momento perdeu a fé no Brasil.
Há um ano começou a perceber que sua visão piorava. Descobriu-se que ele tinha uma doença grave e degenerativa. Mas os exames demoravam, assim como o tratamento. Uma amiga pagou-lhe um médico particular para obter um diagnóstico preciso. O profissional alertou que era muito sério e não dava para esperar. Se não se tratasse logo, ficaria cego. Mas não havia dinheiro para tratamento privado. Hustene voltou ao sistema público de saúde.
Mais de seis meses se passaram enquanto ele ainda espera por tratamento. Agora testemunha a acelerada ruína de sua visão. Tento imaginar o tamanho da impotência e do pavor que é acompanhar dia após dia a corrosão dos olhos sem conseguir a assistência médica necessária, a mercê de um sistema em que cada exame crucial demora meses para ser feito e, quando a data da consulta médica finalmente chega, já é necessário fazer outro que levará mais alguns meses. Não alcanço.
Mas ainda não foi por isso que na noite de 28 de junho Hustene chorou baixinho ao se deitar, a dois dias de completar 51 anos. Naquela segunda-feira ele levou uma hora e 50 minutos até alcançar o posto do INSS. Era dia do jogo do Brasil X Chile. Trêmulo, instável, com náuseas e enxergando mal, ele apresentava-se na hora marcada desde maio para que um perito comprovasse a necessidade de renovação do seu benefício. Nas mãos, Estela tinha os laudos médicos exigidos. Para cada um deles, uma correria, muitos ônibus e muita fila. Como se dissesse algo como “hoje não temos brioches, volte daqui a dois meses”, uma funcionária informou-lhe que os peritos estavam em greve. E remarcou a perícia para 19 de agosto.
Junto com outros desesperados, Hustene voltou para casa. Os laudos médicos perdem a validade em 30 dias, só servirão para virar lixo reciclável. Mais ônibus, novas filas, para que outros sejam feitos, dificultando ainda mais uma existência sofrida e sobrecarregando também um sistema já deficiente. Enquanto não passar pela perícia, Hustene nada ganha para sustentar sua família. Meses sem dinheiro para o supermercado e as contas. Era por isso que ele chorava. Pelo pouco caso com a sua vida, uma vida que lhe custa tanto manter dentro dele.
Não me cabe julgar se a greve dos peritos do INSS é justa ou não. O que posso afirmar é que a situação de Hustene e de todos como ele é injusta. O que escrevo não é um relato sobre um acontecimento pontual, mas sobre uma vida roubada aos poucos, de várias maneiras diferentes. Igual a de milhões nos percalços, diversa de todas.
Nos chocamos com a destruição causada pelas guerras declaradas, quando a vida de um povo está seguindo seu curso e de repente tudo acaba, tudo se perde, sonhos destroçados junto com braços, cabeças e pernas. Aqui escrevo sobre as guerras invisíveis, em que tantos ainda morrem sem alarde e bem mais perto, pela omissão do Estado e de todos nós, mesmo quando o país começa a melhorar alguns de seus índices e diminuir sua fome. O massacre silencioso e persistente que se desenrola à margem dos que podem pagar por saúde e educação de qualidade, dos que têm rede de proteção quando ficam desempregados e dos que ao serem desrespeitados em seus direitos sacam o iPhone e acionam seus advogados.
Há um país que morre aos poucos e a cada dia ao nosso redor. Ao contrário de Hustene, que perdeu a saúde e agora perde também a visão por descaso, que é condenado a meses sem dinheiro para sustentar a família pela força de uma única frase pronunciada por uma funcionária pública, nós enxergamos bem, mas escolhemos ser cegos. Para ele, porém, não existe esta opção. É sua a vida que escapa como água entre seus dedos. São seus os sonhos triturados. É sua tragédia tudo o que poderia ser – e não será apenas porque nasceu no lado errado do mundo.
Acho curioso quando especialistas de todo tipo transformam a miséria do outro em parâmetros lógicos. Nos gráficos e análises destes técnicos e acadêmicos tudo faz sentido e nada purga. Eu gostaria de saber como eles encarariam se fossem eles a não ter a chance de ser – e seus os filhos sem chances. Histórias como a de Hustene são tão corriqueiras que nem sequer viram notícia. Agonias como a dele acontecem sempre, é por isso mesmo que deveríamos nos indignar. Em vez disso, nos anestesiamos. Temos voz, mas preferimos calar.
Tenho 44 anos, muito e pouco, dependendo do ângulo de quem olha. O suficiente para testemunhar a perda de indignação que vem nos corrompendo. A impossibilidade cada vez maior de vestir a pele do outro. Tão confinados e com tanto medo dentro de nossa própria pele que a dor do outro é encarada como uma ameaça ao frágil equilíbrio de nosso mundo cada vez menor. Então nos escondemos no cinismo, que é a pele sintética dos covardes.
Se um dia Hustene ficar cego, sei que seus olhos ainda vão brilhar com a mesma febre. Eu não sei como ele faz, porque há nele uma sabedoria que não existe em mim. Mas ele resiste. Ainda que claudicante, sem forças, espoliado o tempo todo, ele me assegura que é feliz. Pergunto a ele como, por que, de que matéria é feita essa força que o faz levantar a cada rasteira, ainda que restando no chão em alguns pedaços. “Eu vejo meus filhos em casa nos fins de semana, o riso da minha neta, ao meu lado a mulher que amo e que escolheria em quantas vidas tivesse. E há ainda uma viralatinha linda que eu cuido chamada Pantera. Nunca precisei visitar um filho na prisão porque eles são honestos como eu. Sei que para eles sou espelho. Vou seguir lutando. Acredito no meu país, ele já foi pior para os pobres, está melhorando.”
Naquela noite, quando chorou baixinho, Hustene se sentia humilhado. Mas não só. Tinha dentro dele também revolta. Me escreveu para que sua voz me alcançasse e, através de mim, ele pudesse dizer que essa indiferença com a sua vida dói. Que essa indiferença pode matá-lo. E a morte para brasileiros como Hustene nunca vem como metáfora.
Depois, escreveu para dizer que segue acreditando. E lutando. E esperneando. Escreveu para dizer que não vai desistir de brigar pela vida.
(Publicado na Revista Época em 05/07/2010)