Máscara sem rosto

O filme estranho e a mulher que xingava. O que desejamos quando nos sentamos na poltrona do cinema?

– O que faz você continuar?
– A beleza do gesto.

Poderia ser “o que faz você continuar a viver?”. E “a beleza do gesto” é uma bela resposta. Mas o diálogo se passa entre criaturas bizarras, em uma situação bizarra. Dentro de uma limusine branca que percorre as ruas de Paris, um homem tem como trabalho encarnar vários personagens – não num palco, mas na vida real. Logo que entra no carro, ele recebe o script de sua próxima performance. Assim que esta termina, enquanto tira a maquiagem, a peruca, falsas cicatrizes e deformações, ele lê a descrição da próxima cena na qual será protagonista. E assim acontece por nove vezes em apenas um dia, no qual ele se torna, por exemplo, uma velha mendiga, um “monstro” dos esgotos, um assassino, um velho que se despede da sobrinha antes de morrer, um pai que busca a filha adolescente numa festa. Situações totalmente factíveis, às vezes, em outras improváveis (mas não impossíveis).

É este o enredo de um filme estranho – Holy Motors, do francês Leos Carax, que acaba de estrear nos cinemas brasileiros. Tão estranho que até Paris, a cidade mais fotogênica do mundo, a mais palatável, charmant, cheia de joie de vivre, é agora também uma estranha. No Festival de Cannes, quando foi exibido, dizem que o filme chegou a ser aplaudido por 10 minutos. Na sessão em que eu o assisti com amigos, foi linchado.

Uma mulher praticamente gritava, amaldiçoando os jornalistas que, com críticas elogiosas, a teriam induzido a entrar na sala de cinema com parte da família e alguns sacos de pipoca. Ela poderia ter comentado o seu desgosto apenas com os seus, num tom de voz mediano, mas ela tinha desgostado tanto que precisava compartilhar – ela queria apoio, adesão à sua revolta. Então xingou alto. Uma das pessoas que tinha ido ao cinema comigo – e achou o filme pretensioso ao extremo –, me disse: “Você não vai escrever sobre este filme, né?”. Eu perguntei: “Por que não?”. E meu amigo respondeu: “Porque alguém pode assistir por causa da tua coluna e depois vai te odiar”.

A questão, com esse filme, ou pelo menos uma delas, é que não sabemos onde colocá-lo. O que ele está tentando fazer? O que ele quer nos dizer? Como classificá-lo? E quando pensamos que conseguimos entender/definir/ encaixotar, ele desconstrói nossas certezas na cena seguinte. Derruba tudo. E de novo estamos perdidos. E, alguns de nós, bastante incomodados com isso.

Poderia ser uma metáfora sobre a existência de cada um, na medida em que a vida é isso, uma invenção de sentido que perdemos logo adiante – e de novo temos de criar sentido, só para perdê-lo na próxima virada de esquina. E de novo e de novo até sermos o velho que se despede da sobrinha para em seguida morrer.

E ainda assim viver vale a pena, mesmo que marcados por cada máscara colada e depois arrancada de um rosto que nem sabemos se é o nosso. Como não sabemos qual é exatamente a face do homem na parte traseira da limusine, o homem exausto que se transforma tão rapidamente em outros, mas deixando para trás um resto do personagem anterior assinalado no corpo, ainda que seja como uma sobra de maquiagem. Este homem que é, afinal, um ator dentro e fora da tela. E, como ele, também nós podemos dizer que vale a pena continuar a viver por causa da “beleza do gesto”.

Quem é este homem que vive em outros?, nos perguntamos. Qual é a vida “real” deste homem que encena a vida real? A sua vida, não a de suas máscaras? Talvez não haja um rosto, só mais uma máscara. E logo outra mais atrás, mais funda, até o infinito. Talvez o sentido de sua vida seja emprestar sentido às existências que encena. Encena ou vive? Existe alguma diferença, afinal?

Quem somos nós que vivemos como outros?, poderíamos facilmente trocar de sujeito. Qual é a nossa vida “real”? A nossa, não a de nossas máscaras? Será que existe em nós um rosto que não seja uma máscara? Encenamos ou vivemos? Há diferença, afinal?

Somos como a filha que mente? “Você mentiria de novo se soubesse que eu não descobriria?”, pergunta o pai, em um dos poucos diálogos do filme. “Sim”, a menina responde. “Por quê?”, insiste o pai. “Porque agora nós estaríamos mais felizes”. Não é assim tantas vezes, com nossas tantas mentiras, menos para os outros, mais para nós mesmos? E qual é o nosso castigo? À filha, o pai diz: “Seu castigo é que você continuará sendo você”.

Talvez sejamos também como a velha mendiga que diz: “Ninguém gosta de mim. Mesmo assim eu sigo existindo”. Nós também seguimos existindo, mesmo que quase ninguém veja a beleza do nosso gesto.

Talvez este seja um filme sobre a poesia de T.S. Eliot, uma poesia que fala de nós: “Preparar um rosto para encontrar os rostos que encontramos”.

Quando penso/sinto o que acabei de descrever, me emociono na poltrona do cinema. O encenador de vidas tinha acabado de chegar em mais uma casa que não era a dele, onde o esperava uma família que não era a dele. Mas a casa era dele exatamente porque jamais poderia ser, porque não haveria onde se sentir em casa, não haveria um lugar para habitar que lhe pertencesse. Porque sua condição, como também a nossa, era a de estranho, que estranhava e era estranhado. E ali, naquele momento, nós o estranhávamos e nos estranhávamos, ao mesmo tempo.

E agora tudo se inverte: “Quem seríamos se tivéssemos sido outros? Não há mais tempo para recomeçar”.

Eu me emociono, porque tanto a pergunta quanto a resposta me perseguem há bastante tempo. E então a cena seguinte é tão nonsense que desmancha os sentidos que eu havia construído até ali e, de novo, já não posso ter o conforto de um desamparo que mais ou menos conheço e com o qual me identifico. Sim, porque também o desamparo, quando é íntimo, nos conforta. E mais uma vez estou deslocada – estou perdida.

“Em que espelho eu perdi a minha face?”, me indaga de dentro a poesia de Cecília Meireles.

Alguns minutos depois o filme acaba – com talvez um dos piores finais de todos os tempos – e a mulher começa a gritar. Fora da tela, o que ela diz? Ela responsabiliza os críticos, que, na sua opinião, fizeram propaganda enganosa. Se tivesse um posto do Procon na saída, ela faria uma queixa. Tinham prometido a ela uma mercadoria, uma sensação, duas horas de fruição diante da tela – e tudo o que ela teve foi incômodo. E o pior, um incômodo que ela não conseguia definir, nem nomear.

O diretor não havia entregado. Mas será que ele tinha prometido? Esta pergunta ela jamais faria.

Estamos todos – e não só a consumidora do cinema, que acredita ter sido violada em seus direitos – acostumados a nos relacionarmos com tudo ou quase tudo pela lógica do consumo. A mulher apenas explicita isso ao não suportar o incômodo de ter recebido o que acredita ser mercadoria estragada. Se alguém vai ver um filme como os da saga “Crepúsculo”, sabe que terá o que foi buscar – entretenimento, para as adolescentes também enlevo, sonhos e suspiros, o que pode ser bem importante. Mas se vamos ver um filme de David Cronenberg, por exemplo, não é tão diferente . A relação, não a obra.

Também esperamos que Cronenberg nos entregue algo que fomos buscar, mesmo que não seja, obviamente, entretenimento – mesmo que seja desconforto, estranheza, mal estar. Assim como sabemos o que esperar de um filme de Andrei Tarkovsky ou de Lars Von Trier. Mesmo que vamos assistir a um filme destes criadores para sermos desmontados, porque queremos e precisamos ser desmontados, esperamos receber o que fomos buscar. E, quando não nos entregam aquilo que esperamos, nos sentimos traídos. Apenas que alguns de nós demonstram a decepção de forma mais sofisticada que a mulher do cinema.

Mas um filme não é um sapato nem uma TV de tela plana ou uma geladeira daquelas em que o gelo sai na porta. Quando nos sentamos diante da tela do cinema, num ritual que não combina com celulares ligados nem com conversas com a pessoa ao lado, estamos ali para nos entregarmos a uma experiência. É um momento de confiança, no qual nos ofertamos ao desconhecido. Estamos, literal e simbolicamente, no escuro. Durante mais ou menos duas horas algo vai acontecer, em grande medida inesperado. E então seremos novamente devolvidos à sala escura, mas agora transformados por aquilo que experimentamos. Não como a experiência de um sabor novo de sorvete, mas semelhante à experiência de mergulhar em um lago cuja profundidade desconhecemos.

Talvez Holy Motors seja mesmo, como acredita meu amigo, que entende muito mais de cinema do que eu, um dos 10 filmes mais pretensiosos da história. E apenas isso. Mas muito tempo se passou desde a última vez em que me encontrei diante de um filme que me negou qualquer possibilidade de classificá-lo. E demoliu, uma a uma, todas as minhas conclusões. Ao final, eu fui deixada no escuro, grata por me sentir tão perdida.

Não havia um certo ou errado entre a mulher que buscava meu apoio, gritando no corredor – e eu que não podia nem queria dá-lo, ainda sentada na poltrona. A diferença entre mim e a mulher que xingava os críticos e o diretor era a lógica que mediava o gesto de ir ao cinema. Para ela, haviam prometido e não entregaram. Para mim, não havia nada a entregar porque também não havia nenhuma promessa.

Eu queria dizer a ela: “Arte é aquilo que nos trai”. Em vez disso, continuei sentada com a minha máscara comportada.

(Publicado na Revista Época em 03/12/2012)