O rei, os sapatos de salto e as meninas de Velázquez
Na Roma antiga, quando um comandante ganhava uma batalha importante, percorria a cidade num ritual que historiadores chamam de “triunfo romano”. Era um momento de glória suprema, talvez próximo à reconstituição dos filmes feitos por Hollywood. Atrás dele, para que não esquecesse que toda ascensão contém uma queda, um escravo sussurrava no ouvido do vitorioso: “Memento mori”. Em tradução do latim: “Lembra-te de que és mortal”.
O memento mori é citado por alguns historiadores, mas sempre com a ressalva de que não há comprovação documental de que isso realmente tenha ocorrido e que esta tenha sido a frase exata. De qualquer modo, me parece brilhante. E deveria ser reeditado com os poderosos de todas as épocas, seja da política ou do show business. Não mais por um escravo, claro, mas alguém bem pago para trazê-los à terra quando a tentação humana da divindade comichasse a ponto de se tornar irresistível.
Se na Roma clássica o fato realmente ocorria da maneira sugerida, penso que o comandante ficava com muita vontade de dar um peteleco no escravo que o lembrava de sua morte no ápice de sua vida. Ou quem sabe enfiar sua honrada espada bem no coração do sujeito, para que ele não ousasse mais lembrar a morte alheia. Sendo ou não factual, o conceito memento mori contém uma verdade profunda. E serve para todos nós.
Enxergar alguém como se o pedestal fizesse parte do corpo é a melhor maneira de não enxergar coisa alguma. Pior ainda quando escorregamos na tentação de enxergar a nós mesmos dessa maneira. Acho que a vida de todos, tenha maior ou menor quantidade de glória, se beneficia muito quando mantemos o memento mori vivo dentro de nós.
Pensei muito nisso nos últimos dias. Fui a Madri receber um prêmio de jornalismo chamado “Rey de España”. O prêmio é entregue pelo próprio rei Juan Carlos, durante uma cerimônia em que comparece gente de todas as áreas da sociedade madrileña, da política às artes. Toda viagem, seja curta ou longa, para perto ou para longe, é sempre para dentro da gente. Abre uma possibilidade única de nos enxergarmos – e aos outros – com olhos novos. Esta viagem, tão singular, me deu a chance de viver muitos memento mori. A maioria deles bem prosaicos.
Eu nunca tinha conhecido um rei. E estava muito excitada com a possibilidade. A ideia de um rei é um tanto estranha para a maioria de nós, brasileiros. Eu conhecia a história do rei Juan Carlos, que desempenhou um papel decisivo na democratização da Espanha, depois da sangrenta ditadura de Franco. Conhecia também aquela parte da vida contada pela “prensa del corazón” (como os espanhóis chamam o jornalismo de celebridades). Mas eu queria saber como é ser rei mesmo – ter nascido com um destino mais traçado que o da maioria de nós.
Quando participo desse tipo de cerimônia, que envolve uma programação de vários dias, em que você e outros estão no centro das atenções, fico exausta. Acho muito difícil representar a mim mesma. No final do dia, estou uma uva passa. Fico então bem quieta por algumas horas, sem falar nada, para me rearranjar. Era o que me chamava atenção na história do rei. Como deve ser difícil representar o tempo inteiro. Não só a si mesmo, mas todo o delicado equilíbrio de um país como a Espanha.
Se já é difícil representar a nós mesmos, em nossos diferentes papeis – e quantas vezes ficamos sem dormir porque achamos que na hora mais importante vamos falhar –, dá para imaginar o que é representar um rei. Sim, porque Juan Carlos, como todos nós, ao mesmo tempo é e representa ser.
Na véspera de receber o prêmio das mãos desse rei que me deixava tão curiosa, tive pesadelos a noite inteira. Acho que minha expectativa era tão grande que tinha medo que não acontecesse. Meus pesadelos têm mania de grandeza. Nunca é algo simples, do tipo estava andando na Calle Mayor e torci o pé. Nada. Minha noite foi uma série de catástrofes que envolviam a humanidade inteira.
Lembro de duas. Uma avalanche de neve parava a cidade de Madri em plena primavera. A outra era ainda mais acachapante. Uma hecatombe nuclear acabava com o mundo inteiro. Em vez de receber o prêmio no Palácio de Linares, lá estava eu, me decompondo numa versão chinfrim dos filmes-catástrofes de Hollywood.
Acho que meus sapatos tinham a ver com isso. Eu estava ali, prestes a receber um prêmio importante, mas só pensava nos meus sapatos. Cometi uma extravagância e comprei o sapato mais bonito da minha vida para a cerimônia. Só que eles tinham 15 centímetros de salto. E eu nunca fui capaz de andar de salto alto sem parecer uma garça. Com este, era pior. Ele era tão alto que eu só conseguia andar aos pulinhos. Não caminhava, saltitava. Por mais que me esforçasse, eu estava a anos-luz do andar estiloso da Gisele Bündchen.
E se eu caísse na frente do rei? E se eu, já mais pesada por causa dos tantos jamóns e Riojas, desabasse em cima de sua majestade e a matasse? Pensariam que sou do ETA e me colocariam numa prisão espanhola para sempre. Meu sapato lindo de morrer poderia transformar um minuto de glória numa desgraça que duraria a vida inteira. Foi, na minha opinião, um memento mori. Quando despertei da hecatombe nuclear que havia reduzido a humanidade a pó, eu sabia o que tinha de fazer: aceitar o meu real tamanho e enfiar minhas velhas sapatilhas.
Foi o que fiz. Quando o rei chegou, levei um susto. Ao vivo, ele era a cara do meu tio Tarquínio, já falecido. A semelhança me deixou mais sossegada, já que este tio era o mais querido dos irmãos do meu avô. Juan Carlos, agora quase da família, estava também com a barba por fazer, possivelmente deixando crescer como vi em algumas fotos. Portanto, era um rei quase demasiado humano.
Interrompi esse curso de pensamentos tranquilizadores ao lembrar que eu apertaria a mão do rei e da rainha. Isso poderia resultar em uma pequena catástrofe. Como gaúcha eu aprendi que o aperto de mão revela o caráter da pessoa. Se alguém oferece uma mão mole, não confie nele. Se der uma mão suada, é possivelmente egoísta, porque não pensou em você. Enfim, fui educada para dar um aperto de mão bem forte, seco e agradável.
Quando me mudei para São Paulo, percebi que a cultura dos paulistanos era um pouco diferente. Mais de uma vez captei, com o canto do olho, a pobre pessoa que havia acabado de apertar a minha mão massageando-a com uma expressão que misturava dor e revolta contida. Compreendi que, para os padrões paulistanos, eu esmagava os ossos do interlocutor. Comecei a mentalizar um aperto de mão nem mole nem triturador nos soberanos dedos. Mas tinha certeza de que na hora esqueceria por causa do nervosismo.
Estava nesse ponto quando outro pensamento terrorífico cruzou meu cérebro. Minhas mãos estavam geladas. Não por causa do frio, mas do nervoso. Eu não queria oferecer uma mão em temperatura de freezer às figuras mais próximas de um conto de fadas que eu tive a chance de conhecer. Mesmo no verão, minhas mãos podem ser usadas para gelar cerveja. Se mais gente tivesse mãos na temperatura das minhas, o aquecimento global poderia ser revertido.
Comecei a esfregar furiosamente as mãos na pashmina que eu tinha achado no fundo do armário lá de casa e só trazido para uma emergência, no caso de ter de tirar meu estupendo casaco. Era preta. E, descobri naquele momento, de qualidade duvidosa. As palmas das minhas mãos estavam agora mornas. Porém negras como as asas da graúna.
Então anunciaram meu nome. E lá fui eu, toda feliz. Esquecida dos mais recentes tormentos. É possível que, de volta ao palácio real, suas majestades tenham se perguntado sobre aquela mancha preta nas mãos. Posso até imaginar doña Sofia comentando com o marido: “Juanito, cariño, siento un dolor extraño en los dedos de la mano derecha…”. E Juan Carlos: “Curioso, guapa, siento lo mismo en estos dedos… Y mira esta mancha: que raro, verdad?”
Espero que não relacionem os sintomas à única brasileira entre os premiados. Agradeci em espanhol, e Juan Carlos me deu os parabéns em português. A vida seguiu. E com ela a cerimônia. Quando vi, já estávamos tirando fotos com o rei. Duas colegas argentinas imediatamente se postaram, uma de cada lado do corpo real. Por supuesto, minha porção zagueira de futebol de várzea achou difícil resistir em dar uma cotovelada nas chicas. Mas eu estava no meu dia de princesa.
De repente, o rei começou a hablar comigo. Não me ocorreu nada inteligente para dizer. Eu queria muito perguntar como era ser rei, como era ter vontade de fazer xixi e não poder sair correndo para o banheiro mais próximo, se ele tinha algum complexo por ter falhas na barba. Juro, só me ocorriam coisas assim. E se ele dissesse: “Por qué no te callas?”. O rei já estava hablando em outro lugar antes que eu conseguisse fazer uma pergunta que coubesse no protocolo.
Pronto. Tudo terminado. À noite, eu já estava num boteco espanhol, diante de um chorizo e uma taça de vinho, dizendo com os olhos marejados: “Este é o meu Prado!” . Comer, para mim – seja um prato de feijão com arroz, um chorizo ou um dos banquetes da programação – é sempre uma experiência artística. Como ao fruir uma grande pintura, depois de um chorizo perfeito sempre me torno uma pessoa melhor.
No dia seguinte, no próprio Museu do Prado, eu tive meu memento mori máximo. E foi uma experiência que me marcará para sempre. Me postei diante de “As meninas”, a obra-prima de Diego Velázquez (1599-1660). As meninas estão para o Prado como a Mona Lisa para o Louvre. Quando estive diante da Mona Lisa, me faltou conhecimento – ou coração – para compreender por que aquela era a mais famosa pintura do mundo. Preferi outras, mais obscuras.
Diante das meninas de Velázquez, porém, tive uma epifania. Para quem não conhece a obra, vale a pena buscá-la na internet. A cena mostra a infanta Margarita, da Áustria, com suas damas de companhia, um cachorro, uma criança e uma anã, figura corriqueira na corte da época. Ao lado da menina, o próprio Velázquez aparece pintando uma cena que está fora do quadro. Lá atrás, na parede da sala, há um espelho onde vemos refletido o casal real. Pelo reflexo, portanto, descobrimos que é o casal que está sendo retratado pelo pintor da tela. Atrás da parede do espelho, há um empregado abrindo uma porta. Ou seja: Velázquez conseguiu fazer uma pintura que, por ser aberta, é um mundo fechado. Há alguém, o empregado, que entra no quadro, para onde não mais enxergamos. E há o casal retratado, fora do quadro, que só vemos pelo reflexo no espelho.
Parte da genialidade da obra está no fato de que ela nos inclui. Quando nos postamos diante do quadro para admirá-lo, nos colocamos na exata posição do casal retratado. De dentro do quadro, Velázquez olha para nós. Ele nos pinta. Quando compreendemos nossa posição, o espelho não é mais um espelho, mas um retrato do casal real congelado no passado. Nós, os espectadores, temos nossa posição invertida: é o quadro que nos pinta. E nos observa.
Neste lugar, percebi que o quadro formado por mim e pela pintura nunca mais se repetiria. Aquela cena era efêmera e, de certo modo, já estava morta. Nos tantos séculos que se passaram, milhões de pessoas formaram um novo quadro com a obra pintada por Velázquez. Da forma que só a arte permite, ele criou uma obra que para sempre seguirá pintando.
A cada espectador que se coloca no lugar de retratado, Velázquez inverte sua posição. Naquele instante em que o quadro se completa, é ele que está vivo. Ao pintar-se, Velázquez imortalizou-se. E nós, os vivos pintados por ele, estamos a um minuto de sair do quadro, desse pequeno pedaço de eternidade. E seguir pelo corredor do museu, rumo ao resto de nossas vidas.
Tive de me sentar num banco próximo para chorar pela cena que havia acabado de morrer. Depois, lembrei da minha vida breve e – mais viva do que antes de conhecer Diego Velázquez – fui tomar una copa de vino con jamón.
(Publicado na Revista Época em 19/04/2010)