O falso debate do aborto só favorece a política suja
Parecia que tudo ia bem. Na nossa jovem democracia, de apenas 25 anos, tínhamos no primeiro turno três candidatos a presidente com votação significativa por quem podíamos sentir respeito. Lamentávamos os debates de mentirinha, as imagens esculpidas com botox e cirurgias plásticas (para quê?), as promessas de ocasião. Tínhamos preferência por um, divergências com outro, natural e desejável numa sociedade plural. Mas não tínhamos vergonha. Não havia, nesta disputa presidencial, nenhum Fernando Collor de Mello ou Paulo Maluf, cujas biografias dispensam comentários. O segundo turno veio e pensamos: quem sabe agora haverá um debate de verdade e poderemos comparar propostas e idéias? E então começamos a sentir vergonha. Profunda vergonha.
É difícil acreditar que depois de tudo o que vivemos para resgatar democracia e respeito próprio, venham com esta baixaria. A de um falso debate sobre o aborto. Porque uma discussão de verdade sabemos que nenhum dos dois candidatos quer fazer. No finalzinho do primeiro turno, uma campanha anônima na internet transformou Dilma Rousseff em “abortista” e “assassina de fetos”. Como parece que a estratégia das catacumbas colou, com a candidata do PT perdendo votos entre evangélicos e um e outro bispo católico exortando seus fiéis aqui e ali, a inquisição continua e com fogueiras cada vez maiores. De repente, querem nos fazer acreditar que a grande questão nacional é saber se Dilma Rousseff é a favor ou contra o aborto. Que questão é esta?
Existe, sim, uma questão de saúde pública que não deveria ser ignorada por nenhum candidato sério. Segundo reportagem do jornal O Globo deste domingo, o aborto ilegal mata uma brasileira a cada dois dias. Segundo a Pesquisa Nacional do Aborto, realizada pela UnB e Anis, aos 40 anos uma em cada cinco mulheres já fez aborto, o que equivale a mais de 5 milhões de brasileiras. Segundo a mesma pesquisa, 15% das mulheres que abortam são católicas, 13% protestantes ou evangélicas, 16% de outras religiões e 18% não responderam ou não têm religião. Segundo o Ministério da Saúde, o aborto é a quarta causa de mortalidade materna no país. Em algumas regiões do Nordeste, segundo a Rede Feminista de Saúde, chega a ser a principal causa de morte.
Você pode e tem o direito assegurado pela Constituição de acreditar no que quiser, professar a fé que bem entender ou não ter fé nenhuma. O que ninguém deveria poder – seja candidato a presidente ou cidadão – é ignorar a morte de seres humanos. Todos nós, que não somos hipócritas, sabemos que as mulheres mais ricas procuram boas clínicas e abortam em segurança. E todos nós, que não somos hipócritas, sabemos que são as mulheres mais pobres que morrem em procedimentos clandestinos, porque não têm dinheiro para pagar as boas clínicas. Quando estas jovens mulheres morrem, deixam filhos que não podem cuidar e famílias que se desfazem pela sua ausência, provocando problemas sociais em cadeia. Esta é uma tragédia que começa com a morte de uma pessoa e vai causando muita dor pelo caminho dos que ficam. Transformar a vida destas mulheres em moeda de barganha política, como temos assistido no início deste segundo turno, é uma indignidade.
Acho curioso que algumas pessoas que se dizem religiosas acreditam ter o monopólio do discurso da vida. E que estes que acreditam terem privatizado a verdade, ao falar em nome da vida não se preocupem com a morte destas mulheres. Não se coloquem por um minuto sequer no lugar destas mulheres para tentar alcançar seu desespero e sua dor. E então, por empatia e humanidade, perceberem que ninguém deveria morrer por falta de assistência. Assusta-me a rapidez com que estes supostos religiosos julgam e condenam outros seres humanos. Acho a compaixão um sentimento profundo, redentor. E não consigo compreender a compaixão seletiva que move estes dedos em riste.
A morte de mulheres em abortos clandestinos é, sim, uma questão de saúde pública. Que deveria ser discutida seriamente, com informação e profundidade. Mas não é esta a questão que foi lançada na lama desta campanha eleitoral. Aqui, trata-se apenas de demonizar uma candidata em busca dos votos de um certo tipo de devoto. Enquanto alguns grupos de fiéis se lançam cheios de sanha, deitando saliva pelo chão, algumas cúpulas religiosas aproveitam para ganhar alguns pontos de vantagem no embate em torno da questão do aborto, cuja descriminalização vem avançando na América Latina. Por acreditar que os fins justificam os meios, iludem-se que suas mãos seguem limpas.
Eu esperava mais de José Serra. Não há provas de que a lama tenha vindo dos setores mais abjetos da sua campanha. Mas é visível que ele tem empenhado corpo e alma para arrancar toda a vantagem possível da baixaria. Preocupante para alguém que quer ser presidente do país. Eu esperava mais de Dilma Rousseff. Que se comportasse como uma candidata a presidente e colocasse a questão com serenidade, como teve a integridade de fazer no passado recente. Em vez de tergiversar e se encolher diante da baixaria. A nós, eleitores, cabe a pergunta: quem ganha com isso? Me parece que até quem pensa que ganha, perde.
Tenho assistido perplexa ao show de fervor religioso de ambos os candidatos. E eu que não sabia que Serra e Dilma eram devotos dedicados? Não sei em que país eu andava até agora que nunca tinha notado este ardor místico. Na minha ingenuidade, eu esperava ter a chance de assistir a um programa eleitoral que não fosse apenas espetáculo. E lá está Dilma “agradecendo a Deus pela dupla graça” e fazendo “uma campanha, antes de tudo, em defesa da vida”. Alguém está fazendo uma campanha em defesa da morte? Descobrimos então que Serra fará um governo com “Deus no peito”. Mulheres grávidas desfilam pela tela porque o candidato promete cuidar dos bebês mesmo antes de nascerem (!). Se há algo que os crentes de verdade – e não os que usam a religião para fazer comércio eleitoral – deveriam se preocupar é com gente capaz de reduzir Deus a cabo eleitoral.
Admiro Marina Silva, pela sua trajetória de vida e pela sua integridade em momentos cruciais. Assim como compartilho da sua visão sobre o meio ambiente e o desenvolvimento sustentável. O que nunca me impediu de sentir arrepios ao ouvi-la colocar a teoria científica da evolução, de Charles Darwin, no mesmo patamar da mitologia do criacionismo. Ou quando sugere transformar o aborto em plebiscito. Ou ao declarar-se contra o casamento gay.
Embora suas posições divirjam das minhas nestas áreas, isto nunca me impediu de ter respeito por tudo o que ela é – e o que representa. Pelo menos até agora. É natural e desejável numa sociedade plural ter convergências e divergências. O que é inaceitável é o desrespeito. O que é intolerável é a demonização de pessoas. O que é inadmissível é transformar um problema de saúde pública, que causa morte de gente, em moeda de barganha eleitoral.
Não me interessa saber se Dilma Rousseff e José Serra são contra ou a favor da descriminalização do aborto. O que me interessa é saber o que vão fazer para impedir que estas mulheres continuem morrendo, independentemente de suas crenças. E, neste momento, talvez me interesse ainda mais como vão se comportar daqui para frente diante da baixaria que se transformou este segundo turno eleitoral. Se vão rolar na lama com o que tem de pior neste país. Ou em algum momento vão levantar a cabeça e se lembrar de quem são – e do que querem ser.
A nós, que temos de escolher entre um dos dois para ser presidente do país, cabe renegar a hipocrisia. Mostrar que não caímos neste velho jogo sujo. Deixar claro que esperamos mais, que desejamos mais, que exigimos mais de quem vai nos governar. É duro sentir vergonha do nível da campanha eleitoral ao cargo mais importante do país, mas pior é ter vergonha do nosso voto. Quando candidatos perdem a compostura, cabe a nós, eleitores, manter a nossa. E mostrar a eles que o Brasil mudou.
Ou não mudou?
(Publicado na Revista Época em 11/10/2010)