O bigode de meio metro

Por que João colocou 100 parafusinhos no rosto sem depilar seu orgulho

“Doutor, precisava que tu me quebrasses um galho.” João Alberto dos Santos Marques, 55 anos, exibia 25 fraturas na face e oito no nariz. Tinha levado um coice quando tentava convencer uma vaca a adotar um terneiro desgarrado na fazenda gaúcha de nome Cinacina. Havia passado uma noite inteira deitando sangue. E dizendo: “É só uma dorzinha qualquer, o tipo de um esfolão”. Desconfiava que a coisa “não era tão boa” porque a prótese dentária lhe escapava da boca, mas esta não era nem de longe sua maior preocupação. João também não gastava um segundo do seu tempo pensando no olho que tinha “saltado para fora” nem nas feições que se deformaram. O que estava em jogo naquele momento em que o mundo parou era muito mais vital que a integridade do seu rosto. A identidade, para João Marques, era dada por algo que continuava bem ali, tremulando sobre a sua boca, portentoso e lindo como sempre. “Doutor, o senhor podia me poupar o bigode?”

Cinco horas de operação depois, o cirurgião tinha instalado 100 microparafusos de titânio no rosto de João Marques sem tocar num fio do seu bigode. “Fiquei muito contente com o doutor!”, me disse ele dias atrás, quando o alcancei por telefone, lá para os lados da fronteira do Brasil com a Argentina, onde vive entre São Borja e Santo Antônio das Missões. Eu escutara a história da boca da sua irmã, que o acompanhou na cirurgia no Hospital de Caridade de Ijuí, minha terra de nascimento, e tinha ficado muito intrigada. O que é o bigode para este homem?

Fui saber. E João me contou em gauchês. Para esclarecer, o gauchês – assim como o gaúcho – não tem nada de homogêneo. Cada canto tem nuances e concepções de mundo medidas em lonjuras. O de João é o do gaúcho fronteiriço que anda mais sobre as quatro patas do cavalo que as suas próprias duas pernas. Que tem sangue mestiço de português com índio guarani. Que só tirou a bombacha e botou calça comprida no dia do casamento e até hoje se arrepende (da calça, não do casório, que fique bem entendido!). Que enrola o lenço vermelho dos maragatos no pescoço por “uma ideologia que é um sistema que vem desde os tempos do avô”. Que não gosta de praia, só de mato. Que diversão de fim de semana é laçar boi com os amigos. E que quando é obrigado a ir pra cidade – “Deus me livre!” –, assim que pode se atocaia com o chimarrão debaixo de um pé de árvore e por lá fica até a hora de ir embora.

Por que eu quis saber do bigode do João? Porque esse tipo de personagem ganha importâncias na literatura – e esquecimentos na vida real. Porque o gauchês do João é dele, mas também é nosso, ainda que eu seja uma gaúcha sem intimidade com o Pampa e você seja um paulistano da Vila Madalena ou um nordestino do Agreste, um ribeirinho amazônico ou um funcionário público de Brasília. Porque faz bem pra vida lembrar que enquanto tocamos a nossa lida urbana, o João está lá, alisando seu bigode com os dedos, o olhar fazendo um cafuné no horizonte. Porque me dá gosto contar o momento único em que um homem com a cara toda partida luta para salvar seu bigode – e o faz por intuir que na integridade dele está contida a inteireza do seu mundo. Porque acredito nas epopeias invisíveis – e a de João, se soubermos prestar atenção nos detalhes de sua fala, é salvar os pequenos saberes que fazem dele o que é.

Foi com muita gentileza que João Marques interrompeu a lida para me atender. Permitiu que eu abrisse uma janela e desse uma espiada em seu universo alicerçado sobre um bigode de meio metro.

Esta foi a nossa prosa. E, se ela é bem divertida, há mais nela do que parece à primeira vista.

– Me conta como é esse teu bigode, João!

– De uma ponta a outra tem meio metro. Do nariz para a direita, 25 centímetros. Do nariz para a esquerda, outros 25 centímetros. Por aqui não tem um bigode do tamanho do meu. Tu sabes? Eu coloco atrás da orelha!

– Sério?

– É, uma ponta em cada orelha.

– E por que tu deixaste um bigode desse tamanho?

– Sempre achei lindo bigode grande. Sou bisneto de português e tu sabes que português é apaixonado por bigode. Português sem bigode é quase como gaúcho sem bombacha.

– Não sabia disso…

– É… Na lógica é assim que funciona. Decerto tá no sangue esse negócio de bigode. Eu sempre fui cuidando desse lado da história. Tu sabes que já nasci velho. Se encontro três livros, um mais velho que o outro, eu pego logo o mais velho de todos. É isso. Nasci velho.

– E se tu perdesses o bigode na cirurgia?

– Deus te livre se o médico tivesse de tirar. Acho que eu não ia me conhecer mais. É da identidade minha, de índio primitivo. Não há o que me faça desistir desse bigode. Tu sabes que meu bigode tá em Roma?

– Roma?

– Tu sabes como é no interior. O bispo quando vem, crisma um monte de crianças de uma vez só. E eu tinha ganhado um afilhado nesse dia. Quando terminou a crisma, o bispo me disse: “Quero um particular contigo. Na primeira oportunidade que der, me tira um retrato porque tu me lembras muito meu avô, que tinha um bigode igual ao teu. Depois me manda pelo padre”. O padre é muito meu amigo, sabes, vem pescar e caçar aqui em casa. Tirei o retrato e no que deu na volteada estou em Santo Ângelo, onde o bispo mora. Pensei, com o retrato já no bolso: Vou acertar as contas com o bispo. Cheguei lá na casa do bispo, que agora tá aposentado: “Eu tenho um acerto, uma conta com o senhor. Casualmente vim acertar hoje”. O bispo gostou muito. Disse que ia pra Roma e levaria o retrato pro Papa orar por mim quando fizesse as orações. Nem sei se já foi, mas digo por aí que meu bigode tá em Roma.

– É verdade que tu estás num concurso de bigode?

– É um jogo.

– Como foi isso?

– O Altair, um amigo meu que tem um alambique e vende sua cachaça pelos municípios aqui da região encontrou esse homem em Itacurubi que também tem bigode grande, conhecido por Tio Nato. Este Tio Nato é um contador de causos, gosta de ligar pra rádio e contar anedota. É bem historiador ele. Pois fizeram um jogo de um capão assado (cordeiro desmamado e castrado) e uma carreira de cerveja. Quando fui operar, eu disse pro doutor que tinha este jogo e tinha um seguro. Se ele me cortasse o bigode eu achava que me pagavam o seguro, mas ia perder o jogo. O doutor então abriu uma exceção pra mim. E foi um sucesso a cirurgia, caso muito sério. Vinte e cinco dias depois eu já andava a cavalo no campo. Aí, quando meu amigo contou pro Tio Nato que o meu bigode de ponta a ponta tinha 50 centímetros, ele disse que já tinha perdido. Agora é só marcar de medir os bigodes e comer o capãozinho.

– Não tem nenhum bigode maior que o teu na região?

– Por aqui não tem um bigode como este meu. Mas parece que tem um rapaz lá no Itaqui que tem um bigode de 50 centímetros pra mais. Ele também gosta de coisas antigas, parece até que tem um museu. Tenho muita vontade de conhecer.

– E como tu cuidas do teu bigode?

– Nunca facilitei no cuidado com meu bigode. Digo pro rapaz que me faz a barba, de nome Joaquim, mas vulgo Quim, que me faça a barba caprichosamente, mas não mexa no bigode. Qualquer centímetro que crescer é lucro pra mim.

– Mas e o cuidado com ele em casa, pra lavar e tal…

– Tu sabes que não sou de ficar com muitos cuidados. Faço a higiene e às vezes uso um xampu pra ele ficar mais solto. Penteio com a mesma escova do cabelo. Eu não sou de torcer o bigode nem nada. Gosto de deixar à vontade. Ao natural, bem estendido. Acho lindo ao natural.

– E a tua mulher, a Ozana, gosta desse teu bigode?

– Ela aceitou normal, as gurias é que acham muito engraçado. É um troço quase que meio exótico, no bom sentido. Alguns amigos até usam essa expressão. Ah, mas deixou um bigode meio exótico. E eu sou muito bom de prosa e apesar de não ter grande estudo sou bom de argumento. Eu digo: Mas que esperança, meu amigo, se fosse verde ou encarnado podia ser exótico. Este bigode é do índio primitivo. Bigode igual a este meu tu só vês no túnel do tempo da Zero Hora (seção de memória do jornal gaúcho). E uns vêm até me elogiar porque sabem que estou dizendo não de brabo, mas porque é meu direito. Uns me batem nas costas e outros só encabulam.

– Me fala um pouco mais da tua vida aí na fazenda. Desde quando tu andas a cavalo?

– Desde os quatro, cinco anos. E até o dia de hoje nunca paguei um pra domar meus cavalos. Meus cavalos se deitam e obedecem ao comando da minha fala. Tenho retrato pra mostrar. Faço parto de vaca, faço até cesariana. Aprendi na lida bruta da vida. A melhor escola é a do mundo. E não é querer me gabar, mas tem veterinário que vem se aconselhar comigo qual é o mais prático, qual é o mais certo. Eles sabem na teoria, mas na prática quem sabe sou eu. Na lida campeira é touro criado, é cavalo, não é pra me gabar, mas aqui na vizinhança marcam dia pra ver quando vou poder capar lá pra eles. E até o dia de hoje nunca tive problema nenhum.

– E como é que tu fazes a castração do gado?

– Gaúcho mesmo não usa máquina, não usa burdizzo. O gado é capado à faca. Faca de ferro que é a melhor. Eu, quando vejo um índio desses de burdizzo debaixo dos pelegos, derrubando touro pra capar, eu tô fora, nem é comigo. Eu entendo mesmo e sei fazer essa lida bagual, do tempo antigo.

– E tu ainda comes os bagos do boi como no passado? Quando era criança eu assistia à castração e comia também, mas agora faz um tempão que não vejo isso.

– Faz parte da lida. Se o cara chega a não estar lá no costado da mangueira com um punhado de sal nem começamos a lida. É o primeiro que vai pra beira da mangueira. E tu sabes que é o viagra campeiro. É um revigorante de primeira linha. Assim como carne mal passada é outro que não é brinquedo, um estimulante fora de série.

– Então a mulherada fica feliz nesse dia?

– É…

– Mas por que tu não usas a máquina para castrar, por que achas tão importante fazer do jeito tradicional?

– Eu sei usar a máquina, mas não uso. Considero que é capa de colonial. E eu não sou colonial, eu sou índio do campo mesmo, gaúcho e bagual. Comigo tem de ser no sistema antigo.

– E o que é “colonial”?

– Colonial, como a gente costuma dizer e me desculpe pela expressão, é o índio já meio pendendo pro americanizado. Tá no campo porque pertence à classe povoera. Termo pejorativo nosso aqui, que não é nem a expressão certa, mas a gente diz. Meio americanizado, povoero e meio cowboy. Este nós consideramos colonial.

– Tu já pensaste em morar na cidade?

– Nunca morei na cidade e não quero que Deus me castigue de um dia precisar morar lá. A cidade me dá um tipo de angústia. Sempre brinco com os meus amigos que quero ir mais pra costa do Icamaquã (rio) e não pra beira da estrada. Aqui é que eu acho lindo. No dia em que tenho mais tempo chego a entrar no meio do mato só pra sentir o cheiro. Me sinto tão bem que vou te dizer, sou apaixonado pelo campo e pelo mato.

– O que é um gaúcho no teu modo de ver?

– O gaúcho é aquele que entende de toda a lida que for preciso. Eu, se precisar derrubar uma vaca, carnear e charquear, eu sei fazer. Se tiver de carnear uma ovelha, charquear e assar, eu sei fazer. Na minha concepção, entendo assim. Se o cara disser que amanhã vamos sair bem cedo, eu tô com o cavalo encilhado e o ponche na garupa. O gaúcho tropeiro é praticamente superior ao tempo. Se amanhecer o dia com sol que racha eu tô indo. Se amanhecer o dia chovendo tô indo igual.

– Tu te orgulhas de ser gaúcho?

– Mas deus te livre!

– Como é um dia normal teu?

– Quando começa a pender pra amarelar a barra do dia já começo a agitar o serviço do campo. Às 5 e meia, 6h, já estou agitando. Tu sabes, né, que cada dia que tu saíres para a lida na fazenda tem uma surpresa, sempre tem uma surpresa. É uma vaca que o terneirinho se desprendeu e tem de procurar, ou uma vaca que não pode dar cria e tem de ajudar a nascer ou fazer cesárea, uma ovelha que apareceu mordida de cachorro… Desde que clareia o dia é assim. Eu aqui cuido de umas 200 cabeças de gado, umas 150 ovelhas e umas 40 éguas.

– Sozinho?

– É barbada depois que acostuma. E tenho os cachorros que me ajudam igual a um homem. Tendo cachorro bom, a gente lida com qualquer quantia de gado. Tenho cinco cachorros. A Famosa, o Bugio, o Raposinha, o Chatão e o Max. E quando tem algo maior, eu e meu vizinho trocamos serviço.

– Quando tu acordas, a primeira coisa é o chimarrão?

– Primeiro o mate. Depois tomo o meu desjejum.

– E o que tu comes?

– Carreteiro de charque. De manhã cedo é comida de sal.

– João Marques, tu és feliz?

– Mas bah!

– A vida é boa para ti e o teu bigode?

– Mas barbaridade, vou te dizer… uma pena ter de morrer.

(Publicado na Revista Época em 07/02/2011)