O capeta do porcelanato

A vida que se desenrola sem alarde, nas frestas das notícias

Sempre me pareceu que a tragédia humana, assim como a beleza, se mostra mais nos pequenos gestos do cotidiano do que nos grandes acontecimentos. É no esforço de alcançar o dia seguinte ainda suficientemente inteiro, no medo de só conseguir aos pedaços, na ânsia por algo além do pão para alimentar uma vida, que se faz o movimento da história. Quando logo cedo pela manhã me deparo com as paradas de ônibus lotadas, o metrô cheio, as pessoas caminhando com passos apressados que parecem conhecer o rumo, mas que são desmentidos pelos olhos perdidos, sinto que estou diante de uma obra de arte viva, que me conta de um momento histórico, um pulsar. Tento adivinhar as pequenas grandes epopeias de cada um para entender a trama maior. Com o que as pessoas que se preocupam com o preço do pão se preocupam além do preço do pão? O que as faz rir ou chorar? Será que percebem que se abriria um vazio doloroso no quadro se sumissem de repente?

Nesta coluna, conto quatro pequenas histórias reais que jamais seriam notícia, quatro encontros desencontrados ocorridos nas águas de março de São Paulo, quatro janelas de humanidade, quatro nadas que tudo contêm. Apenas os nomes dos protagonistas são fictícios, para proteger as dores. São diálogos que duraram não mais do que um, dois minutos. São insurreições que ninguém viu ou viu sem ver. São esquinas onde a luta de classes se revela pelo minúsculo. São fissuras de um Brasil ainda tão partido. São pontes ainda incompletas, gestos interrompidos.

São desacontecimentos.

Dor de sonho (terça-feira, 26 de março):

Maria acordou com dor nas pernas. Mas tão feliz que nem queria acordar, desejando segurar o sonho entre os dentes, com ganas de perder o trem, o ônibus, as horas. Trabalha de segunda a sexta na casa de alguém, cada dia da semana um alguém diferente. E gosta de pensar que as casas ruiriam entre poeira, fuligem e limo se ela não estivesse lá esfregando furiosamente. E quando volta para a casa dela também varre, lava, desinfeta, certa de que o marido, o irmão e o filho morreriam de imundície e fome se ela não estivesse por perto. Maria por toda a vida acreditou que com um bom desinfetante na mão era capaz de superar qualquer obstáculo. Mas ultimamente uma tristeza que ela não consegue remover nem com o mais potente dos químicos se entranhou na sua carne, fazendo peso no seu coração. E às vezes ela chora escondida quando passa roupa, as lágrimas molham camisas sociais, calças jeans e até um vestido, e ela se apressa a secar com o ferro para que ninguém suspeite que esteja salgando o que não deve. Maria agora se sente presa entre tantas casas, naqueles mesmos destino de trem e ônibus, ônibus e trem. Não é que desgoste, ela só sente que não basta. E ela, que preencheu todas as casas, não sabe o que fazer com essa casa vazia que agora mora nela.

Não naquela manhã. Naquela manhã, ela só sentia dor nas pernas. Uma latejante e deliciosa dor nas pernas, uma alegria que nem lembrava que existia.

– Andei de limusine a noite inteira com a patroa – anunciou ao marido e ao filho logo cedo, quando já pegava a bolsa para pegar o primeiro trem. – Me pegavam aqui na porta de casa, até buzinavam. E a gente andava São Paulo toda. A gente ia até a 23 de Maio. E a gente abanava pelo buraco no teto. Foi bom demais!

Caminhou até o portão, se despediu do cachorro, que saltava nas suas pernas, fazendo festinha atrás das orelhas do bicho. Um minuto depois estava de volta, meio esbaforida.

O que foi, mãe?, perguntou o filho.

– Tô com muita dor nas pernas. Fiquei sentada tempo demais naquela limusine, não tenho esse costume. Voltei pra tomar um dorflex.

Engoliu um comprimido e despencou rua abaixo atrás do trem, onde nunca encontra lugar para sentar. Já estava medicada para dor de sonho.

A palavra-caroço (quinta-feira, 28 de março):

Antonio falhou a quarta-feira de trabalho, ele que nunca falha. Reapareceu na quinta, meio abatido, na janela da portaria. Entregou correspondência, recebeu encomendas, avisou de chegadas, não avisou de partidas, espiando, torcendo para que uma moradora específica do prédio aparecesse, uma que sempre encomendava livros, toda hora um pacote da livraria, uma mulher que devia entender das letras, segundo lhe garantiram. A certa hora da manhã ela finalmente se materializou:

– Tava doente, Antonio? Melhorou?

– Ainda não. Tenho um caroço aqui (e apalpou o pescoço). A médica mandou fazer um exame pra ver o que é, mas não tem vaga. Fui ver o preço pagando particular, é oitocentos reais. Não tenho condição de pagar. Vou conseguir bater um elétrico, mas esse outro é muito caro.

– Nossa, Antonio. Mas e agora, precisa fazer esse exame, né? Caroço não dá pra esperar.

– Pois então. Precisa. Vou lá nas Clínicas hoje pra tentar passar no médico, ver se eles dão um jeito de me encaixar. Mas antes, eu precisava que a senhora me ajudasse.

A moradora pensou que era dinheiro, pensou que não sabia o que fazer, pensou no tanto que um caroço podia ser, na pressa que ela teria se tivesse um caroço, começou a fazer contas, se atrapalhou.

Antonio primeiro ficou vermelho , depois falou:

– É que eu não sei dizer a palavra pra explicar pro médico das Clínicas.

– Que palavra?

– O nome de onde fica o caroço. A doutora do posto falou, mas eu não consegui gravar. É meio como es…fgo.

E esperou que ela esclarecesse.

– Esôfago?

– Essa aí! Como é que é? Pode repetir?

– Esôfago.

– Es…ôfago. Esôfago. Esôfago! Aprendi. Agora vai dar tudo certo.

E deu um sorriso quase feliz.

A moradora ficou ali, sem palavras, com um caroço na garganta que não dava para apalpar porque invisível.

O capeta do porcelanato (três semanas atrás):

O moço é jovem, tem músculos de levantar tijolos, mulher bonita, filho pequeno e nome bíblico. Planejava tomar uma no boteco antes de voltar pra casa. Ia acabar o serviço naquele dia mesmo, era uma desculpa pra comemorar. Terminou de encaixar a última peça de porcelanato preto. E olhou a cozinha de classe média, achando bonito. Então o viu.

No andar de cima, Juvenal pintava a parede da suíte quando escutou o grito da dona da casa. Nem lembra como desceu as escadas, quase voou. Encontrou o amigo de infância, o compadre, o colega de trabalho, já que sempre se ofereciam em dupla, quebrando o porcelanato que tinha acabado de terminar a golpes de picareta.

– Tá doido, homem? – Juvenal tentou segurá-lo.

– Tá vendo não? Tem um capeta embaixo do piso.

Só parou quando conseguiu agarrar o capeta e enfiá-lo dentro da mochila de trabalho. Deixaram os dois a casa e a mulher histérica no meio da cozinha arrebentada, mas devidamente exorcizada, e foram caminhando até o ponto de ônibus. Lá, o moço de nome bíblico jogou a mochila no chão e começou a chutar o capeta dentro dela.

O capeta se foi, mas nas últimas semanas o moço não consegue mais serviço. E agora teme ele mesmo virar um capeta.

A casa não caiu (terça-feira, 19 de março)

Seu Mário é um homem de metro e meio, que veio da Bahia há dez anos pra fazer móveis em São Paulo. Nem sempre consegue, então quando falta mobiliário ele vira pedreiro. Mas quando arruma um serviço de marcenaria, ele se bota todo bonito e faz o milagre de chegar cheiroso mesmo depois de pegar dois ônibus e caminhar outro tanto para fazer o trajeto entre o Jardim Pantanal e o centro expandido de São Paulo. Adivinha os ônibus e o destino pelo desenho das letras, porque nunca aprendeu a ler, mas encarna um Pitágoras ao calcular as medidas de prateleiras, mesas, armários e cadeiras. Como, ninguém entende, nem mesmo ele. Chega com uns sapatos bem lustrados de graxa preta, parecendo estalando de novos apesar dos tantos aniversários. Vem puxando uma espécie de baú que ele mesmo fez, com madeira velha, e o abre como se fosse uma caverna de Ali Babá, expondo todas as ferramentas muito bem organizadas.

Naquela terça-feira ele instalava estantes aéreas nas paredes, e a mulher perguntou, aflita:

– Seu Mário, o senhor garante, o senhor tem certeza que dá pra furar a laje pra botar essas estantes? Eu morro de medo que o prédio desabe, como aquele do Rio de Janeiro.

E Seu Mário respondeu, com sua sinceridade doce, sem maldade na voz, com o firme propósito de tranquilizá-la com sua lógica pitagórica:

– A senhora não se preocupe. Na minha casa corre um rio de esgoto por baixo, comendo os alicerces. Essa chuva toda, barranco desbarrancando, gente morrendo, e ela ainda não caiu. Antes da sua casa cai a minha.

Naquele momento a mulher enxergou o abismo entre eles e quis estender a mão, alcançá-lo de alguma forma, pedir desculpas pela superficialidade de seus temores, mas seu Mário já tinha começado a furar a laje. (E ela ainda tinha medo que a casa caísse.)

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Uma amiga minha ensinou a empregada doméstica da casa da mãe a ler e a escrever. Faminta de letras, a cozinheira devorou o alfabeto com uma rapidez de prodígio. Ao final de três meses de aulas bissextas, a professora improvisada botou pedaços de papel com sílabas e vogais avulsas diante dela. A primeira frase que a mulher montou sozinha, as primeiras letras de uma vida inteira, aquilo que escolheu escrever entre todas as coisas do mundo, foi:

“Deus gosta da gente”.

(Publicado na Revista Época em 01/04/2013)