A luta de uma camponesa para não morrer como estatística
Cristina foi sepultada no mesmo dia em que o Papa renunciou. Enquanto no Vaticano Bento XVI acontecia, ali, em Aiquile, Cristina desacontecia. Não havia uma relação de causa e efeito no fato de que o mundo vivia um de seus espasmos, e na cidadezinha boliviana um cortejo comprido levantava poeira ao passar pelas ruas carregando Cristina. Era uma coincidência, só, que para aquele séquito, a decisão de Bento XVI não era notícia. Talvez, dias depois, alguém tenha comentado: “Parece que aquele Papa que renunciou usa marca-passo. Como a Cristina”. Era só o que os dois personagens, um de um drama acontecido, outra de um desacontecido, tinham em comum. E é aqui que as histórias se separam, porque o Papa jamais esteve na de Cristina, além desse encontro fortuito. Desse azar do Papa, que teve a dramaticidade do seu ato empanada pela grandeza do adeus de Cristina.
Ela, ao contrário dele, jamais renunciou. Até o fim, quando o ar já lhe faltava, Cristina se agarrou às batidas descompassadas do seu coração. Se tivesse maneira, ela o teria sacudido com suas mãos bordadas de calos, obrigando-o a continuar. Por isso era difícil acreditar, naquela manhã de segunda-feira, que ela tinha morrido. Não posso morrer, ela dizia. Não quero morrer. Eu preciso ver meus filhos crescer. E quando ficava assim, Cristina cantava. Cantou também quando lhe abriram o peito para botar primeiro um marca-passo, depois um desfibrilador. E mesmo naquela segunda-feira cinzenta, em que a melancolia da cidadezinha metia os dedos por dentro das gentes, Cristina passava colorida em sua melhor saia rodada, sua blusa de renda mais bonita. Altiva, Cristina era altiva até mesmo em seu último passeio.
Todos sabiam o que havia matado Cristina, aos 49 anos. Coração grande demais, coração de gigante. Dizer que alguém tem um coração grande, naquela região da Bolívia, é um péssimo augúrio. Quanto mais o coração dela aumentava, mais a vida encolhia. Ela sabia que não podia ganhar a luta que lhe custou cada dia. Sabia que no fim, sempre muito mais cedo do que tarde, a Vinchuca venceria. A Vinchuca, esse personagem que entrou na sua vida talvez até antes da vida, quando ainda era um desejo no útero da sua mãe. E nunca mais saiu. Vinchuca é o nome em quéchua para o inseto que chamamos de “barbeiro”. Mas esta é uma história que ela mesma vai contar daqui a pouco, porque a voz de Cristina ainda vive. Ela garantiu que sua voz vivesse ao decidir que, se tivesse que morrer, não seria como silêncio.
Há sempre várias maneiras de descrever a causa da morte de alguém. A mais corriqueira seria dizer que Cristina morreu da doença identificada pelo brasileiro Carlos Chagas no início do século XX. É uma verdade que ela tenha morrido de doença de Chagas. Mas é uma verdade pequena. É preciso ampliar um pouco mais essa verdade. Cristina morreu porque a indústria farmacêutica não tem interesse em pesquisar tratamento, vacina e cura para as doenças dos pobres, as doenças de quem não pode pagar por medicamento. Cristina morreu porque, apesar de fazer um século que a doença foi descrita, a principal droga usada para o seu tratamento foi desenvolvida para outra patologia em 1960 e é produzida hoje apenas no Brasil, por um laboratório público, e na Argentina. Cristina morreu porque esse medicamento só alcançou a região onde ela vivia neste século, levado pela organização humanitária Médicos Sem Fronteiras, e para ela já era tarde demais. Cristina morreu porque os camponeses moram em casas de pau a pique, cobertas de palha, onde até hoje em algumas delas centenas de barbeiros se escondem – centenas, até milhares em cada casa. E, se os camponeses mal tem o que comer, não há nenhuma chance de melhorarem o seu teto. Cristina morreu porque os barbeiros não são exterminados como poderiam e deveriam ser – e pessoas como ela são entregues a insetos que transmitem um parasita que pode matá-las. Cristina morreu, como os outros 14 mil que morrem da doença a cada ano, nas porções pobres do mundo e também na Amazônia brasileira, por causa da nossa omissão. Cristina morreu de silêncio.
“Cristina morreu de negligência”, diz Lucia Brum, dos Médicos Sem Fronteiras, uma referência em doenças infecciosas emergentes. Conversamos por telefone, e ela desenha com palavras a paisagem obscura das chamadas doenças negligenciadas, as doenças dos pobres do mundo, aquelas que não deveriam estar matando mais ninguém, mas matam porque quem poderia combatê-las não se importa. “Cerca de 90% das pessoas infectadas não sabem que têm doença de Chagas, porque nunca tiveram acesso nem à informação, nem ao diagnóstico, muito menos ao tratamento”, diz. Pergunto de Cristina, e a voz de Lucia lacrimeja. Ela trava. Combinamos que ela me escreverá. E penso nessa médica que convive com a morte e a impotência em todos os cantos do planeta, mas mantém a capacidade de chorar por uma pessoa – por cada pessoa. Mantém a capacidade de chorar por Cristina.
Lucia escreve:
“Não consigo pensar na Cristina sem pensar que ela foi vítima de um ciclo de negligências que também se reflete nas pessoas que sofrem com as doenças típicas da pobreza no mundo todo. Houve negligência quando se permitiu que ela e a família vivessem anos em uma casa infestada de barbeiros. Houve negligência quando não lhe deram a oportunidade de um diagnóstico precoce e o acesso a um tratamento efetivo, que curasse ou evitasse as complicações causadas pela doença de Chagas. Houve negligência quando não se investiu em pesquisas que contribuíssem para melhorar a atenção médica de todos os afetados pelas doenças esquecidas, porque foram esquecidos. Cristina nunca se calou diante de todas essas negligências. Aproveitou todas as oportunidades que teve para contar a sua própria história e através dela falar por milhares de outras pessoas que sofrem do mesmo mal, mas que não saíram do anonimato e continuam morrendo em silêncio. Existe uma forte identidade sociocultural entre a doença de Chagas e a América Latina, e escutar Cristina era sentir o clamor do continente latino-americano exigindo um maior esforço e compromisso para minimizar o sofrimento que afeta 10 milhões de pessoas em todo o mundo. É triste saber que é possível fazer muito por essas pessoas, mas falta compromisso e sobra negligência. Quando Cristina falava, todos se calavam. Essa lembrança vai me emocionar e comover sempre, pois nossos esforços não foram suficientes”.
Quando alguém morre como Cristina, não é a doença que mata. A doença é como a arma. Atrás da pistola ou da metralhadora, há uma pessoa. Atrás da pessoa, há um processo histórico e um presente no qual é preciso determinar as responsabilidades, caso se deseje barrar o massacre. Cristina e todos os que morrem como ela, morrem de assassinato. É o genocídio silencioso e invisível que mata os que não têm voz. Cristina se deu voz. Sua voz é seu legado.
Quando abriu a boca para contar sua história, em março de 2011, Cristina se revelou uma narradora poética. E algo curioso se passou. Ela só falava em quéchua, a língua de parte da população boliviana, um idioma que resiste desde antes dos incas. Eu não compreendia uma única palavra, mas elas me alcançaram mesmo assim, e meus olhos sofreram um naufrágio. Lucia conta que o mesmo aconteceu quando Cristina, que pela primeira vez deixava seu país, contou sua história em Olinda, na assembleia da Federação de Pessoas Afetadas pela Doença de Chagas, em 2010. Era a primeira vez que Cristina deixava a Bolívia, ninguém entendia seu idioma, mas ainda assim suas palavras chegaram. Nilce Mendoza Claure, a tradutora que me acompanhava na escuta de Cristina, explicou que a língua tem uma doçura muito particular e que tudo fica mais triste quando é dito em quéchua. Compreendi, ao meu modo, que o quéchua é como uma chuva fina que vai nos penetrando lentamente e, quando nos damos conta, estamos encharcados até os ossos.
Cristina assim explicou o que era a Vinchuca. E a partir deste parágrafo, não falaremos mais em barbeiro, mas em Vinchuca, porque é esta a palavra que expressa algo maior, mais completo e profundo do que um inseto. Perguntei qual era o som da Vinchuca. Cristina disse:
– Soa como as folhas secas do milho ao vento. Escutamos e então sabemos que elas estão lá. No escuro. Sobre nossas cabeças. Esperando para cair sobre nossos corpos.
Perguntei qual era o cheiro da Vinchuca. Ela disse:
– Cheira como sangue velho.
Ao escutar a narrativa de Cristina e de outras pessoas da região de Aiquile, compreendi que a Vinchuca não era apenas um inseto, mas algo que sempre esteve lá. Para aqueles homens e mulheres nunca havia existido uma vida sem Vinchuca, ela marca o tempo e as estações, ela é onipresente. Por isso escolhi colocar a palavra em maiúscula, porque ela expressa um nome próprio, quase uma entidade maléfica, o mais próximo de um vampiro real que eu já conheci. Não apenas porque suga o sangue, bem mais pela teia de significados que lhe foi atribuída na existência concreta e simbólica dos camponeses bolivianos.
Estes vampiros da vida real assinalam as gerações através dos séculos. E garantem ainda hoje a perpetuação da pobreza. Como as pessoas são infectadas ao nascer, às vezes ainda no útero da mãe, a evolução da doença começa quase junto com a vida. Depois das primeiras décadas, homens e mulheres morrem no momento mais produtivo, quando poderiam ter forças para pelo menos lutar para mudar o destino, por melhores condições de habitação e saúde, por uma alimentação mais rica, por educação. Em vez disso, exauridos pela doença, condenam com essa morte precoce seus filhos e netos à mesma sina de miséria e labirinto.
Era assim que Cristina contava essa história:
– Desde que o mundo é mundo a Vinchuca existe. Aprendi a reconhecer o som de suas asas quando se enfileiravam no teto e nas paredes para esperar nosso sono. Um som que podia ser doce, mas que nos apavorava. Nesse tempo não sabíamos que elas nos matavam, mas sofríamos porque chupavam nosso sangue e às vezes nossos rostos e olhos amanheciam inchados. Quando acordávamos com a dor da picada e acendíamos a lamparina, descobríamos que não existiam mais parede nem teto. Havia tantas vinchucas, uma ao lado da outra, que não podíamos mais enxergar o que estava por trás. Então as esmagávamos com nossas mãos e com nossos pés, e as paredes eram pintadas com nosso sangue. Quando as queimávamos, era esse o cheiro. De sangue velho. E pensávamos que não existia em nenhuma parte uma vida sem vinchucas e noites sem que nosso sangue fosse sugado por elas. Então brincávamos de matá-las, sem saber que elas já tinham nos matado.
Só há pouco os camponeses descobriram a relação entre a Vinchuca e o que era chamado de morte súbita. Parte deles apenas alguns anos atrás, quando os Médicos Sem Fronteiras criaram um projeto na região e passaram a fazer diagnóstico e tratamento. Até então, acostumaram-se ao fato de que as pessoas estavam caminhando pelo campo, pastoreando ovelhas ou plantando, e, de repente, caíam mortas. Era o jeito “natural” que pessoas como eles morriam, era a morte dos avós e dos bisavós, e seria a morte deles e a de seus filhos e netos. Foi já como adulta que Cristina descobriu que ela e seus irmãos tinham Chagas, assim como seu marido e sua filha mais velha.
Bem antes disso, a Vinchuca já tinha matado. De novo, a voz de Cristina:
– Os dois primeiros que morreram por causa da Vinchuca na minha família foram meus irmãos. Eles nem mesmo chegaram a ficar doentes, ainda eram crianças. Meus irmãos dormiam de boca aberta, e as vinchucas se enfiaram na sua boca até a garganta. Não na mesma noite. Primeiro um, depois o outro. Você sabe como elas são, têm as patas ásperas. Meus irmãos se engasgaram. E morreram com as vinchucas entaladas, sem ar.
Cheios de dor pela perda dos pequenos, Cristina e seu irmão mais velho clamaram por vingança. Decidiram acabar com as vinchucas, varrê-las de seu pequeno mundo. É ela que conta:
– Catamos todas elas e abrimos um buraco, e as queimamos, e as enterramos. Meu irmão mais velho disse: “Pronto, sepultamos as vinchucas”. Nas primeiras noites, havia menos. Mas elas foram voltando. As vinchucas renasceram.
Muito mais tarde, quando descobriu que as pontadas que sentia eram a doença de Chagas, Cristina buscou ajuda. Essa busca por salvação, em todos os relatos que escutei, é sempre um caminho de humilhações. Não há na Bolívia um sistema público de saúde universal, como existe no Brasil. E apesar de serem a maioria da população, os indígenas, e especialmente os do campo, são discriminados nas cidades. Ao falar quéchua, não são sequer compreendidos. É como se nem os vissem.
Ao contar uma de suas consultas com um médico de Aiquile, Cristina nos ajuda a compreender porque uma doença é sempre muito mais do que uma doença, é um universo de relações e de fissuras, um retrato multidimensional da sociedade. Ela diz:
– Só descobri que ia morrer aos 35 anos, quando já tinha me mudado para Aiquile com meu marido e meus filhos. No hospital me disseram que meu coração tinha se tornado grande demais e me deram um mês de vida. Não contei a ninguém, mas comecei a me preparar para a morte. Depois, procurei outro médico. Sabe o que ele fez? Ele me golpeou. Me deu uma bofetada no rosto e depois me deu outra. “Você quer morrer porque é frouxa”, ele dizia. “Não há um remédio para você, não há nem mesmo uma aspirina para você. É você que precisa reagir”.
Cristina conseguiria viver quase 15 anos mais, graças à chegada de organizações humanitárias à região. O preconceito tem raízes tão fincadas que alcança também os agentes dos Médicos Sem Fronteiras, chamados por alguns moradores e profissionais da cidade de “come-vinchucas”. Conheci Cristina quando fui à Bolívia para escrever sobre a doença de Chagas para o livro Dignidade! (Leya, 2012). A obra, na qual nove escritores de diferentes nacionalidades contam diferentes projetos da organização, marca os 40 anos de atuação de MSF nas epidemias e guerras do mundo. No meu capítulo, conto duas histórias reais: uma delas é a viagem empreendida por Cristina em busca de um marca-passo em Cochabamba.
Nesta jornada, ela conheceu Maria, outra camponesa. E Maria preferia morrer a ter de enfrentar a cidade grande. Foi Cristina quem a convenceu a continuar no ônibus e salvar sua vida. Foi isso o que Maria ouviu de um dos médicos da cidade:
– Você vai precisar de um marca-passo, mas vocês, camponeses, não têm dinheiro nem pra botar uma roupa boa no corpo, imagina pra um marca-passo. Custa US$ 5 mil. Você conhece dólar? Claro que não. Então vai embora, anda, vai atrás dos come-vinchucas pra ver se te ajudam.
Juntas, Cristina e Maria fizeram uma travessia que era muito maior do que as cinco horas entre a cidade pequena e a grande – era uma travessia entre mundos e era uma travessia de confidências entre duas mulheres forjadas num universo moldado por homens. Duas mulheres que, unidas por um coração descompassado, encontraram o caminho uma para o coração da outra. E, pela primeira vez numa vida bruta, tiveram tempo para si – e para a delicadeza.
Maria voltou com um marca-passo no peito, mas não contou a ninguém, porque ter marca-passo ainda é um estigma nas aldeias camponesas. Uma marca de fraqueza e de invalidez, que assinala as pessoas como quase mortas. É também este preconceito que a voz de Cristina se levantava para combater, ao falar publicamente sobre o relógio que acertava o ritmo do seu coração. Parte desta história pode ser lida aqui. A foto abaixo, da jornalista Vânia Alves, de MSF, mostra Maria e Cristina no quintal do cortiço onde Cristina vivia com a família, em apenas um quarto, dividindo o banheiro e a cozinha com os vizinhos. Cristina tem sua mão sobre o coração de Maria.
Há gente que vive morta. E há gente que morre viva. Cristina Salazar López morreu viva.
(Publicado na Revista Época em 18/02/2013)