Quando a crueldade vem travestida de fé
Deve ter sido um junho tenebroso para os católicos que vivem verdadeiramente o evangelho. Para quem não é católico, para os que praticam outra religião, para os agnósticos e os ateus também. Para qualquer pessoa minimamente decente, confrontar-se com o discurso da crueldade – travestido de fé – é uma experiência aterradora. Foi o que aconteceu quando Dom Luiz Gonzaga Bergonzini, bispo da diocese de Guarulhos, no estado de São Paulo, falou em entrevista sobre o estupro de mulheres. Depois, o choque se repetiu no pronunciamento de Myrian Rios, deputada pelo PDT do Rio de Janeiro e, segundo ela mesma, “missionária católica da Canção Nova”, ao discursar sobre gays e pedofilia – e confundir as duas coisas.
Quando duas pessoas públicas, com responsabilidade e ressonância de pessoas públicas, dizem o que Dom Bergonzini e a deputada Myrian Rios disseram, é preciso prestar atenção. Não é banal, não é folclórico. É sério – e tem consequências.
Primeiro, Dom Bergonzini – que, em seu blog, aparece várias vezes com o título de “o leão de Guarulhos”. Em entrevista à repórter Cristiane Agostine, do jornal Valor Econômico, publicada em 13 de junho, o bispo afirmou que há “uma ditadura gay” em curso e que uma “conspiração da Unesco transformará metade do mundo em homossexuais”. Esta forma de ver a conjuntura internacional poderia, por si só, chocar boa parte dos leitores, mas o bispo se supera no trecho da reportagem que reproduzo aqui:
“Vamos admitir até que a mulher tenha sido violentada, que foi vítima… É muito difícil uma violência sem o consentimento da mulher, é difícil”, comenta. O bispo ajeita os cabelos e o crucifixo. “Já vi muitos casos que não posso citar aqui. Tenho 52 anos de padre… Há os casos em que não é bem violência… [A mulher diz] ‘Não queria, não queria, mas aconteceu…’”, diz. “Então sabe o que eu fazia?” Nesse momento, o bispo pega a tampa da caneta da repórter e mostra como conversava com mulheres. “Eu falava: bota aqui”, pedindo, em seguida, para a repórter encaixar o cilindro da caneta no orifício da tampa. O bispo começa a mexer a mão, evitando o encaixe. “Entendeu, né? Tem casos assim, do ‘ah, não queria, não queria, mas acabei deixando’”. (…) O bispo continua o raciocínio. “A mulher fala ao médico que foi violentada. Às vezes nem está grávida. Sem exame prévio, sem constatação de estupro, o aborto é liberado”, declara, ajeitando o cabelo e o crucifixo.
Sim, no teste do bispo, a vagina da mulher é uma tampa e a caneta é o pênis do estuprador. Se a mulher não quer ser violentada, basta que ela não permita que a tampa encaixe na caneta. Simples assim. É com esta humanidade que Dom Bergonzini escuta, há 52 anos, como ele faz questão de enfatizar, as católicas violadas que buscam acolhida e compaixão na sua igreja. E então passam por uma acareação através do método da tampa-vagina e da caneta-pênis.
Agora, Myrian Rios. Aliás, só descobri nesse episódio que hoje ela é deputada estadual. Até então, só a conhecia como ex-atriz e ex-mulher do cantor Roberto Carlos. A deputada do PDT apresentou-se como “missionária católica” e discursou no plenário da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), em 21 de junho, sobre a PEC-23, que inclui a orientação sexual entre as características pelas quais um cidadão não poder ser discriminado. Reproduzo um trecho do seu discurso aqui, mas sugiro que o leitor ouça da própria deputada, na íntegra, em vídeo de menos de 12 minutos, postado no YouTube.
O vídeo é todo coberto por textos em amarelo, num discurso sobreposto em defesa da deputada. Pede apoio a ela e faz, inclusive, um alerta: “Cuidado com a imprensa e a mídia”. Sugiro escutar Myrian Rios, sem prestar atenção ao texto. E, em seguida, assistir ao vídeo novamente, só lendo os textos em amarelo. Ambos – o discurso e a defesa do discurso – são muito reveladores. Para alguns, pode parecer uma perda de tempo, mas vale a pena o esforço para compreender o mundo onde estamos metidos.
A seguir, uma amostra da fala de Myrian Rios no plenário da Alerj:
“Eu não sou preconceituosa e não discrimino. Eu prego o amor e o respeito ao próximo. (…) Se somos todos iguais, com os mesmos direitos, eu também tenho que ter o direito de não querer um funcionário homossexual na minha empresa. (…) Digamos que eu tenha duas meninas em casa, que eu seja mãe de duas meninas, e eu contrate uma babá. E esta babá mostre que a orientação sexual dela é ser lésbica. (…) Se minha orientação sexual não for esta, for contrária, e querer demiti-la, eu não posso. (…) O direito que a babá tem de mostrar que a orientação sexual dela é lésbica eu tenho como mãe na minha casa de não querer que ela seja babá das minhas filhas, dá licença? (…) Com esta PEC, eu não tenho esse direito. Eu vou ter de manter a babá na minha casa, cuidando das minhas meninas, e sabe Deus se ela não vai inclusive cometer a pedofilia com elas.
(…) Então, se o rapaz escolheu ser homossexual, o problema é dele. (…) Ele escolheu ser homossexual, ser travesti, aí eu o contrato para ser motorista da minha casa e eu tenho dois meninos em casa. Ele começa então a trabalhar vestido de mulher, travestido, porque é essa a orientação sexual dele. Aí eu, como mãe dois meninos, digo opa, não é essa a minha orientação sexual aqui em casa. Aqui em casa eu gostaria que meus filhos crescessem pensando em namorar uma menina para perpetuar a espécie, como está em Gênesis. Deus criou o homem e a mulher para perpetuar a espécie. (…) No momento em que eu descobri que o motorista é homossexual e poderia estar, de uma maneira ou de outra, tentando bolinar o meu filho… não sei, pode de repente partir para uma pedofilia com os meninos, eu não vou poder demiti-lo, a PEC não me permite. (…) Se essa PEC passa, e o rapaz tem uma orientação sexual pedófilo (sic), se a orientação sexual do rapaz é transar, é ter relacionamento sexual com um menino de 3 a 4 anos, nós não vamos poder fazer nada, porque ele está protegido pela lei.
(…) Eu estou defendendo as crianças e os jovens de uma porta para a pedofilia. (…) Não vou permitir que, por uma desculpa de querer proteger ou para que se acabe com a violência, a homofobia, a gente abra uma porta para a pedofilia! (…) Deus abençoe a todos, tenham uma boa tarde, que o Espírito Santo possa hoje, nesta Assembleia, cair fogo do céu aqui. Muito obrigada.”
É constrangedor fazer alguns esclarecimentos pela sua obviedade. Mas já que discursos desse nível existem – e são feitos por representantes democraticamente eleitos – é preciso dizer à deputada que: 1) homossexualismo e pedofilia não são a mesma coisa; 2) pedofilia não é uma orientação sexual, mas um crime; 3) se um funcionário da sua casa ou da sua empresa ou qualquer pessoa, em qualquer lugar, tenha a orientação sexual que tiver, cometer o crime de pedofilia, deverá ser denunciado e preso, independentemente da PEC-23, porque está previsto no Código Penal.
Se Myrian Rios cometeu esse discurso por ignorância ou por má fé, só ela, com sua consciência, pode resolver consigo mesma. E aqui uso o “má fé” em dois sentidos: tanto na tentativa de manipular a opinião pública, fazendo com que os cidadãos do estado do Rio de Janeiro pensem que não vão poder demitir criminosos se a PEC-23 for aprovada, como por sua controversa interpretação do evangelho que diz praticar.
Após a repercussão dos respectivos discursos, tanto Dom Bergonzini quanto Myrian Rios manifestaram-se como de hábito: a questão não foi o que disseram, mas uma interpretação equivocada de suas palavras. É curioso como a responsabilidade é sempre do outro. No caso, do leitor, da jornalista, do espectador, do eleitor. Mas as respostas, tanto de Dom Bergonzini quanto de Myrian Rios, são autoexplicativas. E iluminam melhor do que eu seria capaz de fazer as verdades dos fatos.
O bispo reproduziu a reportagem do Valor Econômico em seu blog. Sem desmenti-la, fez uma chamada em vermelho, acima da matéria: “Obs: sobre estupro, leia aqui”. Depois, repetiu o alerta no ponto da reportagem em que discorre sobre o tema. Neste novo link, ele declara: “Só um insano diria que a mulher é culpada pelo estupro”. Aqui, sou obrigada a concordar com ele. O religioso continua: “A violência contra a mulher é mostrada diariamente pela imprensa. As mulheres, de qualquer idade, são atacadas, brutalmente violentadas e assassinadas por maníacos sexuais em praças, vias públicas, locais mal iluminados e até em casa. A lei presume a violência em crimes de estupro praticados contra menores e pessoas especiais”. Dom Bergonzini termina esse tópico dizendo: “Jamais afirmamos que a mulher não é a vítima. O criminoso é o culpado pelo crime que ele cometeu”.
O bispo parece não apenas duvidar da dor e do testemunho das mulheres violentadas, mas também da inteligência e da capacidade de discernimento do leitor. Todos puderam ler o que disse Dom Bergonzini à jornalista do Valor Econômico e aprender sobre o “teste da caneta”. Portanto, cada um pode tirar suas próprias conclusões.
Já a deputada Myrian Rios (PDT) divulgou uma nota, através de sua assessoria. No texto, ela pede desculpas pelo discurso, mas responsabiliza o público por uma compreensão equivocada de suas palavras: “Se entenderam dessa maneira, peço desculpas”. Reproduzo a nota na íntegra: “Iniciei meu discurso de 21 de junho na tribuna da Alerj relatando a minha condição de católica, missionária consagrada da comunidade Canção Nova (ligada ao movimento de Renovação Carismática) e, como tal, eu prego o respeito, o amor ao próximo, o perdão. Destaco que Deus ama a todas as pessoas, pois Ele não faz diferenciação. Em um dos trechos, afirmo: não sou preconceituosa e não discrimino. Repudio veementemente o pedófilo e jamais tive a intenção de igualar esse criminoso com o homossexualismo. Se entenderam desta maneira, peço desculpas. Conto na minha família com parentes e amigos homossexuais e os amo, respeito como seres humanos e filhos de Deus. Da mesma forma repudio a agressão aos homossexuais, pois nada justifica tamanha violência. Votei contra a PEC-23 por minhas convicções e não contra este ou aquele segmento de determinada orientação sexual”.
Graças à internet e à tecnologia, o leitor pode assistir ao discurso da deputada na íntegra. E tirar suas próprias conclusões sobre as intenções da “missionária católica” ao dizer o que disse.
Percebo que existem pessoas que, ao falarem em nome de sua fé, seja ela qual for, acreditam ter o patrimônio do bem, da ética e da verdade. Às vezes, até do “amor”. Como alguém já disse, muita gente tortura os números para que eles digam aquilo que pode comprovar a sua tese. Lendo, escutando e assistindo à fala de alguns religiosos, tenho a impressão de que torturam a Bíblia para que possam seguir com a propriedade de uma verdade única – a sua. O caminho da sabedoria, porém, inclusive para os grandes teólogos da Igreja Católica, passou e passa pelo exercício da dúvida, constante e tenaz. É preciso se despir da vaidade das certezas para alcançar a dor do outro – movimento imprescindível para o amor.
De minha parte, acho que o mundo pode abrir mão de demonstrações de “amor ao próximo” como a de Dom Bergonzini e Myrian Rios.
(Publicado na Revista Época em 04/07/2011)