Nove meses, nove mulheres, nove histórias de amor
“Acho que exagerei na lasanha de berinjela”, comentou Luciana Benatti com o marido, Marcelo Min. Passava das dez da noite e Luciana, com 37 semanas e 4 dias de gestação, tinha sentido uma dorzinha. Não era a lasanha. Era Pedro, mas naquele momento ninguém sabia que ele se chamaria Pedro, porque os pais achavam que ainda teriam alguns dias de gestação para decidir o nome e preferiam descobrir o sexo apenas quando o bebê se apresentasse. Na madrugada, primeiro chegou a doula. Depois a pediatra. E em seguida a obstetra. Daria qualquer coisa para saber o que o porteiro do edifício no bairro de Pinheiros, em São Paulo, imaginou ao ver três mulheres chegando de malinha no meio da noite. Tudo – de homicídio a orgia – menos que alguém daria à luz no sétimo andar. De repente, já havia uma piscina inflável, decorada com uma alegre fauna marinha, no meio da sala. E uma mangueira de 50 metros levava água quente do velho Lorenzetti até banheira improvisada. Foi lá que Luciana começou a dar aqueles berros primais e libertadores, porque dói mesmo, para algumas mulheres mais do que para outras. E de novo fico pensando no que o pobre porteiro deve ter imaginado quando os vizinhos começaram a interfonar. Arthur, pelo menos, resolveu espiar o que estava acontecendo. Aos quatro anos, ele desembarcou da cama esfregando os olhos amendoados e encontrou uma festa na sala. Como Luciana sabia que nada melhor do que um bom berro quando a contração chegava mais forte, percebeu que precisaria explicar ao menino o que estava acontecendo antes que ele se desesperasse. “Filho, para o irmãozinho sair da barriga, a mamãe vai ter que dar uns gritos de leão”. Arthur é louco por qualquer bicho – mas rei é rei, e rainha melhor ainda. Adorou. E a partir daí, sempre que sua mamãe leoa berrava, ele ria e batia palmas na maior empolgação. Foi assim que Pedro escorregou para o mundo. Marcelo e Arthur, pai e filho, cortaram o cordão umbilical. E depois de um soninho gostoso, Luciana acordou pela manhã com os dois filhos ao seu lado e um café na cama preparado pelo Marcelo. O melhor pão com requeijão da sua vida.
Esta história é contada pelos protagonistas, a jornalista Luciana Benatti e o fotógrafo Marcelo Min, num livro – muito – importante lançado nesta quarta-feira, 4/5 (a partir das 18h30, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional, em São Paulo).Parto com amor (Panda Books) é a narrativa de uma trajetória que começou em 2007, com a gestação de Arthur, o orgulhoso animador de partos do parágrafo anterior. E só terminou no ano passado, com o nascimento de Pedro.
Ao ficar grávida pela primeira vez, quatro anos atrás, Luciana pensava em ter parto normal, mas nunca tinha ouvido falar de parto humanizado. Como boa parte dos médicos, o dela disse: “Parto normal é o melhor para a mãe e para o bebê”. Mas não respondia – e até se irritava – com as perguntas de Luciana. “O que mais a senhora quer saber?”. Um dia Luciana, já com um barrigão de 35 semanas, encontrou uma amiga jornalista. “Mas você tem certeza? Muitos médicos dizem que fazem (o parto normal), mas na hora inventam uma desculpa para a cesárea”.
Luciana ficou bem irritada com a amiga que duvidava do seu médico naquela altura da gestação. Mas o comentário permaneceu fincado como um alfinete em sua cabeça e, na consulta seguinte, diante de seus questionamentos, o médico soltou esta pérola: “Por que você está tão preocupada com o parto? Cuide das roupinhas e da decoração do quarto e deixe que do parto cuido eu”.
Não era esta a ideia que Luciana e Marcelo compartilhavam sobre o parto do seu filho. Eles tinham certeza de que quem tinha de cuidar do nascimento do bebê eram eles – e especialmente Luciana, com o apoio de Marcelo. Nunca mais voltaram ao consultório do médico, que também jamais os procurou para perguntar o porquê.
Um mês depois Arthur nasceu num parto natural na banheira da maternidade de um hospital, sem anestesia, sem episiotomia (o corte que obstetras costumam fazer no períneo da gestante com a justificativa de que ajuda no nascimento e evita lesões maiores) e sem soro com ocitocina (medicamento usado para aumentar a frequência e a força das contrações). Arthur desembarcou do útero no seu tempo, forte e saudável. E Luciana deu à luz inspirada nas suas avós: Aurora teve sete filhos de parto normal e Antônia, sete. “Foi um daqueles momentos que fazem a vida valer a pena”, diz Luciana. “Fui a protagonista da minha história.”
E foi assim que outra história começou – a do livro. Marcelo, um dos melhores (e mais sensíveis) fotógrafos do Brasil, registrou em imagens o parto de Arthur. Ao refletirem sobre sua experiência, Marcelo e Luciana perceberam que valia a pena documentar o parto natural, comum nos países desenvolvidos da Europa, mas uma exceção no Brasil, um país com índices de cesariana superior a 80% nas mais conceituadas maternidades privadas – quando a Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda no máximo 15%.
Nos últimos quatro anos, Marcelo e Luciana acordavam na madrugada com telefonemas do tipo: “Vai nascer!” ou “Começou!”. E lá se ia Marcelo com seu equipamento, enquanto Luciana ficava com Arthur. Depois, a jornalista fazia uma longa entrevista com cada uma das mulheres em suas casas, para que contasse sua trajetória a partir do seu próprio olhar – todos os textos do livro são na primeira pessoa e cada um deles traz o jeito particular da autora daquele parto. A cada final de capítulo, há uma seção de perguntas e respostas feitas com muita responsabilidade, precisão e conhecimento, que esclarecem questões trazidas na narrativa.
Como os meses de uma gestação, são nove histórias de mulheres – e homens – que decidiram se tornar protagonistas do nascimento de seus filhos. Cada uma delas com seu próprio caminho, suas possibilidades, seus conflitos e também seus limites. Cada capítulo nos dá uma história contada em duas linguagens – o texto e a fotografia. E ao final de cada um deles sofremos e nos alegramos junto com aqueles homens e mulheres – e bebês lindos e amarrotados – que passamos a sentir como se fossem da família.
Marcelo ganhou das gestantes o apelido de “fotógrafo invisível”, pelo seu dom – já testemunhado por mim em reportagens muito delicadas que fizemos juntos – de registrar a realidade com uma câmera enorme sem que ninguém se sinta invadido ou mesmo perceba a sua presença. As duas fotos abaixo são do primeiro capítulo, justamente o parto de Arthur. A mulher, berrando na banheira, é Luciana. Sim, parto dói, mas há uma diferença fundamental, que a maioria das pessoas parece ter esquecido, entre dor e sofrimento. A do parto é uma dor que não vem da doença e da morte, mas da saúde e da vida. É uma passagem. Você está junto com seu filho, ajudando-o no primeiro momento mais importante da vida que se inicia fora do útero materno. E poder berrar, sem que nenhum obstetra ou enfermeiro torça o nariz, é libertador.
Parto com amor é um livro que registra um dos movimentos femininos mais interessantes deste início de milênio (e que, para muitas parcelas da sociedade, permanece invisível): a decisão das mulheres de recuperarem a posse do corpo em um momento crucial da vida – o parto do filho. Elas passaram a perceber que dar à luz não é um procedimento técnico apenas, mas algo que vai definir uma questão determinante para tudo o que vem depois: o nascimento de uma mãe.
As decisões tomadas no parto e a forma como cada mulher lida com a gestação é parte da construção da maternidade que também ali se inicia. E para cada filho – e não apenas o primeiro – há uma mãe diferente que nasce. Assim como a forma que cada homem lida e participa – e a sua presença ou ausência nesse momento – também é determinante para a paternidade que se inicia, para o pai que também nasce.
Assumir a responsabilidade de parir é uma etapa essencial do processo de fundação e autoconhecimento da família recém nascida. Assim como delegar todas as decisões do parto para a autoridade médica também é, pelo avesso. Tanto uma escolha quanto a outra têm significados e consequências.
Em boa parte dos países desenvolvidos, a cesariana não é uma escolha, como é no Brasil. Da mesma forma que qualquer pessoa de bom senso acharia um absurdo se submeter a uma cirurgia nos rins ou na próstata sem necessidade. Nesta visão responsável da saúde, a cesariana é um procedimento de grande seriedade, como qualquer cirurgia, realizado apenas quando é necessário. E só é necessário quando há um risco comprovado para a mulher e para o bebê, quando é a realmente a melhor alternativa para a mulher e para o bebê.
Se esta fosse a verdade do atendimento às gestantes no Brasil, por que só as brasileiras teriam indicação de cesariana em mais de 80% dos nascimentos nas maternidades privadas – e não os 15% previstos pela OMS? Será que as brasileiras são mulheres diferentes das demais mulheres do mundo? Teriam um corpo diferente, que as impossibilita de parir seu filho de forma natural?
Assim, que bom que vivemos um momento da medicina em que, quando há risco para a mãe ou para o bebê, é possível fazer uma cirurgia. Mas que pena que um número significativo de cesarianas é realizado todos os dias não por necessidade real, mas por comodidade do médico e da mulher. E, mais triste ainda, que um número considerável seja feito à revelia da mulher.
Diante dessa realidade e da sensação de que algo estava errado na experiência vivida nos consultórios e nos hospitais, em diferentes partes do país mulheres começaram a reagir. Sem encontrar respostas nos lugares óbvios, em geral contaminados pela cultura da cesariana e pela ideia da autoridade inquestionável do médico, elas passaram a criar grupos de discussão e de pesquisa na internet. Ao voltarem arrasadas da consulta, mães de primeira viagem encontravam pelo Google mães mais experientes que respondiam a suas perguntas e lhes davam orientação.
Duas destas mulheres, cada uma com uma história diferente, podem ser vistas nestas fotos extraordinárias. Na primeira, Denise, Lauro e a pequena Alice, no momento do nascimento. Na segunda, Andréia aconchega Maura, que acabou de nascer no ofurô. Matheus já deu as boas-vindas à irmã e muitos beijos na mãe. Em seguida, foi fazer xixi. “Muita gente se surpreende com esta foto”, comenta Andréia no livro. Como se o xixi fosse sujo, nascer fosse limpo e o fato de os dois estarem tão próximos pudesse fazer algum mal para o bebê.” A resposta padrão de Andréia é a seguinte: “Você sabe por onde ela saiu? Então, qual é o problema?”.
Pela internet, tornou-se possível recuperar uma tradição perdida: a das mulheres mais velhas ou experientes que compartilham seu conhecimento com as mais novas. A velha sabedoria das mães e das avós, só que a rede virtual e as mudanças culturais do nosso tempo tornaram esta uma família expandida. Hoje, há centenas de sites, blogs e listas de discussão de mulheres sobre gestação e parto. É possível, inclusive, assistir a partos pela tela do computador, em tempo real. Em algumas cidades brasileiras, profissionais da saúde adeptos do parto natural e humanizado formaram grupos onde as mulheres fazem cursos e trocam experiências. Trocam também indicações de doulas, parteiras, obstetras e pediatras que garantidamente vão respeitar suas escolhas, manter seu bebê junto delas e só realizar uma cesariana se for realmente necessário.
Da mesma forma que a internet deslocou o poder em muitas esferas – com o acesso à informação, a ampliação das vozes e a possibilidade de divulgação –, também teve profundo efeito no protagonismo do parto no Brasil. E, como toda mudança, esta causa um bocado de polêmica e resistência – especialmente entre a parcela dos profissionais de saúde que sente seu poder, antes inquestionável, ameaçado. Não acredito que esse movimento seja revertido. Pelo contrário, me parece que a tendência é crescer e se multiplicar com a ajuda das redes sociais.
Parto com amor é um dos primeiros livros brasileiros a documentar esse fenômeno cultural tão interessante. E recebeu o apoio entusiasmado de uma das brasileiras mais famosas do mundo, a supermodelo Gisele Bündchen. A maioria das celebridades marca dia e hora para botar seus filhos no mundo, a data é escolhida com a ajuda de um numerologista e o mapa astral está na lista do enxoval. Gisele, a celebridade entre as celebridades, não. Ela faz parte desse movimento novo. Teve seu filho Benjamin em casa, na banheira, com parteira, da forma mais natural possível. E sofreu críticas por causa disso.
Em entrevista ao Fantástico, programa da TV Globo, ela disse: “Meu parto não foi dolorido em nenhum momento. Não foi assim, ai que dor, mas a cada contração eu pensava que meu bebê estava mais perto de mim. Eu transformei aquela sensação intensa, que acontece para todo mundo, em uma esperança de ele estar chegando mais perto. E no segundo dia (depois do parto) eu já estava caminhando, lavando louça, fazendo panqueca, sabe assim, vida que segue”.
Gisele leu Parto com amor e comenta na contracapa do livro: “O parto pode ser, sim, um momento poderoso de transformação, alegria e prazer. Espero que este livro inspire muitas mulheres”. Depois, encomendou exemplares para dar de presente às irmãs.
Espero que os votos de Gisele Bündchen se realizem.
(Publicado na Revista Época em 02/05/2011)