Por que amamos tanto Lisbeth Salander

Ela é a primeira heroína do século 21 – não por ter nascido nele, mas por ser uma síntese das mudanças e inquietações do nosso tempo

É possível que, como acontece com boa parte dos escritores, o sueco Stieg Larsson não apalpasse o tamanho da personagem que criou ao escrever o primeiro volume da série Millennium. Do mesmo modo que morreu sem roçar nem a fama nem os milhões que dela vieram, enfartou sem saber que tinha parido – ele, um homem – a primeira heroína do século 21. Não a primeira porque a obra foi escrita no terceiro milênio – aí seria fácil. Mas a primeira filha desse mundo fluido, sem fronteiras definidas tanto na geografia do planeta como na do corpo dos indivíduos que o habitam. Esse mundo onde ditaduras caem com a ajuda do Twitter e do Facebook. Esse mundo em que as formas são forjadas pela ausência de formas da internet.

Se alguém me pedisse hoje uma indicação de como começar a compreender esse mundo novo, que nos escapa a cada esquina – inclusive porque não tem esquinas –, eu indicaria sem hesitar: conheça Lisbeth Salander. Mais do que qualquer obra acadêmica, ela nos introduz nesse tempo sem tempo. Ou melhor, esfrega-o na nossa cara sem virar o rosto para nos olhar. Como os grandes personagens da literatura, Lisbeth é síntese e antítese de uma época. E um dia, talvez, Lisbeth Salander poderá ser tão universal quanto Hamlet. Mas o “ser ou não ser” de Lisbeth se dá em outros termos – jamais como um dilema, mas como um estar no mundo em si. Para Lisbeth, renascida na internet, “ser e não ser”, ao mesmo tempo, é o único modo possível de existir. E essa é a sua força.

Volto a falar de Lisbeth Salander com a desculpa do filme em cartaz nos cinemas. Desta vez, a versão de Hollywood do primeiro volume da série – “Os homens que não amavam as mulheres”. Queria implicar com essa versão, que botou Daniel Craig, o último 007, a encarnar o personagem do jornalista Mikael Blomkvist, mas não consegui. O roteiro é melhor do que o do filme sueco e David Fincher, o mesmo que fez o excelente “Clube da Luta” e também “Rede Social”, é um diretor capaz de lidar com a violência sem escorregar nos clichês. Mas o filme em cartaz é só uma desculpa para falar do lugar que Lisbeth Salander ocupa não apenas no nosso coração, mas também no nosso fígado.

Se você não teve a chance de ler a trilogia Millennium, não se preocupe. Você é um sortudo, invejado por ainda ter esse prazer à sua espera. Nesse verão, Lisbeth Salander capturou até mesmo meu pai, passado dos 80 anos, que até então era rígido em seus hábitos de só ler livros acadêmicos, ensaios e clássicos em geral. De repente, meu pai se viu abduzido por aquela estranha criatura, uma alienígena no seu mundo, mas dotada de uma humanidade avassaladora. E o segundo volume, que não tinha sido levado para a casa de praia, teve de ser providenciado às pressas. À heroína, então.

Lisbeth Salander é uma hacker. Não uma qualquer, mas uma das melhores. Seu passado – e a pior parte do seu presente – é tudo aquilo que os jovens do movimento mundial Occupy, que protestam contra o sistema financeiro internacional e as instituições que o representam, denunciam que está podre e que não faz mais sentido. Mas as semelhanças, como veremos, acabam aí. Se a internet não houvesse surgido, talvez Lisbeth estivesse condenada a morrer numa clínica psiquiátrica, como tantos, tantas vezes, por obra da velha ordem. Mas a internet surgiu, e com ela uma brecha para Lisbeth escapar e inventar sua frágil resistência.

Lisbeth carrega em si todas as marcas do velho mundo – representado pelo Estado que a condenou e ainda controla a sua vida. Estado este que é encarnado por homens “instituídos” que abusaram – e ainda abusam – de Lisbeth, com a justificativa pública, esta também tão abusada ontem como hoje, do “é para o seu próprio bem”. Por trás deles e do Estado a quem dão face, ocultam-se tanto as perversões individuais quanto os crimes do poder estabelecido que devem permanecer escondidos custe o que custar. E custa muito.

Para dar forma a essas marcas invisíveis, Lisbeth Salander tatua um dragão nas costas. Como descobrimos no desenrolar da história, as expressões físicas das violências que continuam infligindo em Lisbeth acabam sumindo, nos dias. O dragão permanece lá. O dragão resiste, assim como os inúmeros piercings que a perfuram para lembrar que, em cada um deles, foi ela que escolheu se flagelar. O dragão é a marca que Lisbeth escolheu para representar a si mesma – não a que foi imposta a ela. O dragão é a reinvenção possível.

Nossa heroína não acredita em (quase) nada. Nem em (quase) ninguém. Ela não tem ilusões: Lisbeth sabe que está sozinha. Lisbeth foi vítima tanto das utopias que moveram o mundo no século 20 quanto do fim delas. Ela é, de fato, filha da Guerra Fria e dos arranjos que vieram depois, como o leitor vai descobrir nos volumes seguintes. Mas é também filha de si mesma, como tentam ser todos os que vivem nessa época.

Com uma profunda e justificada desconfiança dos homens – a começar pelo próprio pai – e com uma profunda pena das mulheres – a começar pela própria mãe –, Lisbeth Salander cria um homem e uma mulher, um nem homem nem mulher para si. Radical em sua androginia, Lisbeth poderia ser definida como uma bissexual, não fosse esta uma definição superada e que já não dá mais conta da complexidade da sexualidade humana. Lisbeth, também sexualmente, só pode ser definida pela indefinição. Como o mundo que prefere habitar, o da internet, nossa heroína é fluida e sem fronteiras.

No primeiro volume da série, os caminhos de Lisbeth Salander se cruzam com os de Mikael Blomkvist. Quem é Mikael? Um jornalista que investiga e denuncia os poderosos. Um jornalista que acredita em seus ideais, que sacrifica a vida pessoal pela missão de documentar a História – e as histórias – do seu país. Um homem bom. Para isso, Mikael criou, com dois sócios, a revista “Millennium” – uma publicação pequena, independente e combativa. A princípio, parece que é o nome da revista que dá título à trilogia da série criada por Stieg Larsson. Mas acredito que o “Millennium” de Larsson é algo mais profundo – é um ser e estar neste milênio.

No momento em que Lisbeth e Mikael se encontram, ele acabara de perder uma ação na justiça contra um dos homens poderosos – e corruptos – que denunciou. Com a condenação, Mikael perdeu todo o seu patrimônio: não apenas o dinheiro que tinha conseguido guardar em uma vida apertada, como o maior bem de um jornalista decente, de um homem íntegro: sua credibilidade.

Mikael se assemelha muito ao perfil de Stieg Larsson. Como Mikael, o autor da obra foi um dos jornalistas mais importantes da Suécia. Passou a vida denunciando os poderosos – e mais do que todos, aqueles que eram extremistas de direita. Larsson denunciou várias organizações fascistas e racistas enquanto viveu. Por sua luta pelos direitos humanos, recebeu ameaças de morte. Como Mikael, ele mantinha uma pequena, independente e combativa revista, a “Expo”. E foi ao subir os sete lances da escada do prédio da revista, porque o elevador estava quebrado, que ele teve um enfarte e morreu, em novembro de 2004, aos 50 anos. Antes de lançar a trilogia que o tornaria famoso e milionário. E antes de terminar o quarto livro da série – escrevera 200 das 600 páginas previstas – e escrever os outros seis – ele havia sonhado com dez volumes.

Stieg Larsson era como Mikael Blomkvist. Mas, talvez, como todas as pessoas que já viram as tripas do poder legalmente instituído de perto demais e já foram vítimas dos burocratas que dele se alimentam como os vermes que são, aspirasse a ser uma Lisbeth Salander. Acho que Lisbeth Salander foi a vingança de Stieg Larsson. Depois de passar a vida denunciando a podridão – e, veja bem, estamos falando da Suécia –, e se ferrando por isso na vida real, era preciso criar uma vingadora na ficção. Talvez fosse isso ou deixar de acreditar. E, para alguém como Stieg Larsson, deixar de acreditar era morrer. Na ficção, Lisbeth Salander salva Mikael Blomkvist. Me arrisco a pensar que, na vida real, ela também salva Stieg Larsson. E o salvaria por completo, não fosse ele morrer cedo demais. Este, aliás, é sempre o problema com a realidade.

Lisbeth Salander olha para Mikael Blomkvist com algo próximo da ternura. Não são muitos os homens bons na sua vida. Ela o ajuda não por acreditar no que ele acredita, ela o ajuda por acreditar nele. De certo modo, Lisbeth, apesar de sua juventude, é mais vivida e experiente do que Mikael. Como os jovens do Occupy, ela acredita que as instituições estão falidas, que a velha ordem ruiu e que não há como lutar dentro do sistema. Mas, diferentemente deles, Lisbeth não acredita em quase ninguém e, portanto, desconfia das massas. Para Lisbeth, a única saída possível é individual. Ela é um rato resistente, sobrevivendo nos porões e roendo os alicerces da cidade, na mais absoluta solidão existencial. Ela é uma hacker – e o único movimento coletivo possível é aquele onde os indivíduos não sentem o cheiro da pele um do outro, cada um seguro na sua toca.

E essa é uma face importante de Lisbeth: a não face. Ela revela nossa época também por uma não autoria: não é essa, afinal, uma das grandes questões colocadas pela internet e um dos grandes embates travados hoje em torno dos direitos autorais? Enquanto há um movimento em que indivíduos fazem qualquer coisa, até comer baratas ou se submeter a 50 cirurgias plásticas para se diferenciar, ter seus minutos de fama e conquistar uma autoria no mundo, ainda que efêmera, Lisbeth mergulha no anonimato. Renascida na internet, ela é reconhecida apenas por seus pares, outros hackers, mas não com um nome – e sim com um codinome. Lisbeth, ao contrário dos homens e mulheres da geração de Mikael Blomkvist, não se interessa por construir um nome. Sua salvação e sua liberdade estão no anonimato. Lisbeth realiza feitos fantásticos, mas não reivindica nem autoria, nem créditos.

A outra face essencial de Lisbeth é o não pertencimento. Estrangeira em um mundo sem fronteiras, o conceito de nação não faz parte do planeta dela. Lisbeth é mais familiarizada – e a escolha do termo é proposital – com o hacker sem nome de lugar nenhum do que com o vizinho de porta. Lisbeth não tem chaves – tem senhas. Estar em Estocolmo ou em Pequim, para ela tanto faz. Ela não é estrangeira por pertencer a um outro país, ela é estrangeira como um ser em si. Ela é estrangeira diante do outro – ou de quase todos os outros – porque o olhar do outro para ela não faz a menor diferença. Ela não reconhece esse olhar, estrangeira que é frente à sua própria espécie. Ser estrangeira, para Lisbeth, é parte da nova condição humana.

Lisbeth Salander é andrógina, miúda e parece anoréxica – “é metabólico, não engordo”, diz no filme americano. Come junk food, fuma um cigarro atrás do outro, circula pela noite underground. Parece frágil, mas é forte. E se vinga. É marcada – e faz marcas. Sem confiar na lei e no Estado, faz justiça na ilegalidade e nas margens. Para ela, esses limites não existem, o mundo não se coloca mais nesses termos. Todas essas convenções, no olhar e na experiência de Lisbeth Salander, já apodreceram. Em sua moto pelas estradas – ou escondida sob o seu capuz – ela talvez seja a nova mulher, aquela que se recusa a ser vítima, mas que jamais queimará sutiãs em praça pública. Lisbeth Salander é a nova mulher na medida em que também é o novo homem.

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P.S. – Nesta segunda-feira, faz três meses e 22 dias que Junior José Guerra foge pelo país por ter denunciado a máfia do ipê no oeste do Pará. Até hoje não recebeu proteção do Estado. A história de Junior foi tema de reportagem na coluna “A Amazônia segundo um morto e um fugitivo”. Nesta semana, o caso ganhou repercussão internacional, em matéria de Tom Phillips, no jornal britânico The Guardian, com o título: “Defensores da floresta enfrentam a morte ou o exílio”. A reportagem pode ser lida em inglês ou em português.

(Publicado na Revista Época em 13/02/2012)