O Lula que desceu a rampa é maior e menor do que o que subiu
Eu estava entre aqueles milhões de brasileiros que se emocionaram quando Lula fez o discurso da vitória, na Avenida Paulista, no segundo turno da eleição de 2002. No dia seguinte, lembro de ter acordado com a certeza de que vivia num país diferente. Não acho que tenha me enganado. A força simbólica de um presidente com a origem de Lula só poderá ser dimensionada com precisão daqui a algumas décadas, com o necessário distanciamento histórico. Mas a mudança concreta na forma com que milhões de brasileiros passaram a se enxergar pode ser percebida nas ruas para quem estiver disposto a ver. O país mudou para melhor no governo Lula – e não apenas porque a conjuntura internacional era favorável. Lula deu visibilidade concreta a uma parcela da população que, embora maioria, sempre havia ficado na margem. Ao se reconhecer em Lula, esta ampla fatia do povo brasileiro resgatou autoestima e começou a construir um novo lugar no país. Cerca de 30 milhões de brasileiros ascenderam de classe e entraram no mundo do consumo, criando novas cenas na vida cotidiana da casa e dos espaços públicos. E acho difícil alguém, de qualquer estrato social, afirmar com sinceridade que sua vida piorou nos últimos anos.
Dito isso com toda a clareza, posso afirmar que, em minha opinião, o Lula que desceu a rampa do Palácio do Planalto no primeiro dia de 2011 é maior, mas também é menor do que aquele que subiu em 1° de janeiro de 2003. Lula é maior fora e dentro do Brasil – basta conferir a cobertura internacional e os 87% de aprovação interna. É maior também na História, depois de dois mandatos. Mas ao longo destes oito anos Lula perdeu algo que antes de 2003 parecia constituí-lo como liderança. E, embora tenha acreditado em demasia no próprio mito – e talvez por isso mesmo –, ficou aquém dele em princípios fundamentais.
Havia em 2003 uma enorme expectativa sobre os ombros de Lula, maior do que seria realista depositar. Ele mesmo dizia que não podia errar. E muito poderia dar errado diante do tamanho não do medo, como tanto se especulou, mas da esperança. O que eu – e acho que a maioria das pessoas – não imaginava é que a falta de ética na vida pública e a corrupção se tornariam questões sérias e assumiriam tal proporção na era Lula. Que os fins justificariam os meios com tanta desenvoltura. E que o fisiologismo, tantas vezes criticado com razão por Lula e pelo PT no passado, se tornariam o pão com manteiga da rotina do poder. Naquele momento, poucos ousariam imaginar que o partido que sempre se colocara como guardião da ética na política e representante de um novo jeito de lidar com o patrimônio público pudesse rastejar pela lama com tanto despudor e em tão má companhia nos anos seguintes.
Ingenuidade minha e dos tantos que ficaram chocados com as denúncias de corrupção e as negociatas que desfilavam no noticiário diário? Talvez. Mas acredito que pode e deve ser diferente. Que a ética – seja na vida pessoal ou na pública – é essencial e não descartável no primeiro aperto. Milhões de brasileiros pobres que resistem ao crime e à contravenção, mantendo-se honestos contra todas as adversidades nas favelas e periferias do país, nos provam isso todos os dias. Tornar a ética um artigo de luxo, que se coloca ou tira do cardápio conforme as necessidades do momento, é zombar desse esforço pessoal e coletivo empreendido diariamente por brasileiros de todas as classes – mas com um custo muito maior pelos mais pobres.
Esta é a parte que me preocupa na aprovação majoritária de Lula no poder. O que ela nos diz? A vida da maioria das pessoas melhorou de verdade – e esta é uma excelente razão para aprovar um governo e um governante. Mas que a falta de ética, o fisiologismo e a corrupção que também ficaram aparentes nesse governo não pesem pelo menos um pouco nessa conta é triste. Porque aí somos aquele tipo de gente que só se importa com o dinheiro no bolso – e nada com os valores que os puseram ali. Seria melhor para nós e para o país que fôssemos melhores que isso.
Como jornalista, cheguei a estudar seriamente a possibilidade de pedir transferência para Brasília em 2003 com o objetivo de cobrir a mudança de costumes na capital federal. Eu esperava testemunhar um outro tipo de elite política provocando transformações na forma de se relacionar não só nas esferas oficiais de poder, mas nos restaurantes, nas casas e nas ruas sem esquinas de Brasília. Ainda bem que tive de abortar o projeto por razões pessoais. Algo mudou, é verdade, mas não no rumo que se esperava.
O comportamento da primeira família também despertava minha curiosidade. Quando cobri a eleição de 2002, vale a pena lembrar, Lulinha (Fábio Luís Lula da Silva) era apenas aquele garoto que acompanhava a mãe nos eventos de campanha. Formado em biologia, o mais significativo que ele havia feito até então era um estágio no zoológico de São Paulo. Lulinha era simpático e falava meia dúzia de palavras a mais que dona Marisa Letícia, que não pronunciava nenhuma. Naquele momento eu não apostaria um real que Lulinha tivesse esse progresso meteórico e pudesse se transformar no empresário rico e bem sucedido, exemplo de sucesso que é hoje. Dona Marisa manteve o mutismo público nos oito anos como primeira-dama, mas apenas isso. De todas as seduções do poder, parecia difícil supor que seriam as cirurgias plásticas e os tratamentos estéticos, as roupas de grife, o cabeleireiro a tiracolo e a companhia chique que a seduziriam mais.
Acho uma pena Lula acreditar tanto no próprio mito, a ponto de às vezes soar como um messias. É saudável para qualquer um em algum momento do dia parar tudo e olhar para si mesmo de um canto, com o necessário distanciamento, para retornar às dimensões humanas. Lembro de meu mal-estar na primeira vez em que estive na Bahia, ao constatar o número de obras públicas com o nome de Antônio Carlos Magalhães. Naquele tempo, “Painho” era vivíssimo. Quem diria que o governo do filho de dona Lindu terminaria com um campo gigante de petróleo batizado com o nome de Lula.
Nesta mesma linha, colocar-se como um pai e como um chefe de família quando está no lugar de presidente soa mal, muito mal. Lula é pai do bem sucedido Lulinha e de seus outros filhos. Assim como cada um de nós tem seu próprio pai. E um já é suficiente. Um presidente republicano, eleito democraticamente, é alçado ao poder pelo voto, por um tempo determinado pela Constituição. É colocado no poder não por filhos, mas por cidadãos adultos e livres. E é julgado por seus atos e pela qualidade de sua administração – e não pelo afeto. É uma relação de igual para igual, entre adultos responsáveis e emancipados.
Essa conversa de pai e filho infantiliza a população – especialmente os mais pobres, que supostamente precisam ser “cuidados”. Como se um governo que inclua seus anseios e necessidades fosse a concessão de um governante bondoso e não um direito básico de cidadão legitimado pelo voto e assegurado pelo processo democrático. Essa conversa de pai e filho também ecoa o que há de pior no Brasil patriarcal – ainda que o pai desta vez seja um “homem do povo”. Acho este discurso uma irresponsabilidade. Ainda bem que não colou quando tentaram transformar Dilma em nossa mãe durante a campanha eleitoral. Era só o que nos faltava nessa altura de uma vida democrática tão duramente conquistada, em parte pela geração da própria Dilma.
Mas a maior fraqueza do governo Lula, além da saúde, foi a educação. Ao contrário do que Lula diz, melhorou muito menos do que deveria. Terminar o segundo mandato com um investimento em torno de 5% do PIB não dá a nenhum presidente a possibilidade de afirmar que a educação foi prioridade em seu governo. Não foi – e não foi por nenhum ângulo que se olhe. É verdade que ocorreram alguns avanços, como a ampliação do acesso ao ensino superior. Mas é pouco, muito pouco, diante da catástrofe educacional do país. A educação tem de ser uma causa como foi – e pelo discurso de Dilma Rousseff na posse continuará sendo – a erradicação da miséria. Causa do governo, causa de todos.
Não me parece que exista essa compreensão. Nem com Lula, nem com Dilma – ainda que no discurso de posse a presidenta tenha sinalizado a educação, a saúde e a segurança como prioridades. Assim como a educação também não foi prioridade no governo de seus antecessores. E isso explica nossa situação atual. Como um país pretende ser grande com metade dos jovens de 15 anos que estão na escola – porque 15% já não estão – com dificuldades para interpretar textos e um problema maior ainda para fazer contas? E com 43% dos empregados no mercado de trabalho sem diploma do ensino médio? Ou com os professores ganhando a miséria que ganham, a maioria deles descomprometidos com seu trabalho e sem serem avaliados por sua atuação em sala de aula?
A educação é uma das principais causas de desigualdade, e o Brasil continua sendo um dos países mais desiguais do mundo. Erradicar a miséria não é apenas garantir que todos os brasileiros possam comer – o que é enorme, mas ainda é pouco. Há uma miséria subjetiva que não se resolve com comida, mas com educação. Como já escrevi numa coluna anterior, logo após o primeiro turno da campanha eleitoral, o desafio que se impõe a todos nós é qualificar o nosso desejo. É pela educação que as pessoas desejam mais (e não apenas produtos de consumo), exigem mais de si mesmas e do país, e são capazes de andar com suas próprias pernas, superando a mera transferência de renda e os programas assistenciais.
Diante da catástrofe educacional vivida pelo Brasil, não dá para fazer apenas o possível. Tem de dar um jeito de fazer o impossível. Já, ontem. E Lula não fez. Mesmo simbolicamente ele não fez. Com o capital simbólico de Lula, teria feito diferença vê-lo alguma vez com um livro na mão. Em vez disso, houve ocasiões em que Lula reforçou a falsa dicotomia entre a experiência prática e a intelectual. Posso compreender seu esforço em valorizar a “escola da vida”, historicamente relegada como algo menor. Mas ele deveria ter a clareza de mostrar que não há oposição entre um e outro, pelo contrário, são conhecimentos que se complementam e dialogam entre si.
Nas ocasiões em que Lula colocou um tipo de conhecimento em oposição ao outro, prestou um grande desserviço ao país. Ao inaugurar o campus de Sorocaba da Universidade Federal de São Carlos, em agosto último, por exemplo, ele referiu-se à importância de um governante conhecer seu país. Para conhecer o país que governaria, afirmou ter preferido percorrê-lo (na Caravana da Cidadania, em 1993) a ler Raízes do Brasil, a obra clássica de Sérgio Buarque de Holanda. “Eu poderia ter lido o livro do Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, e poderia ter conhecido um pouco o Brasil. Mas eu achava que em vez de a gente apenas ler um livro e dizer que a gente conhecia, era melhor que a gente botasse o pé na estrada para ver a megadiversidade deste país”.
Seria tão melhor se Lula tivesse dito que é importante ler o livro e é importante percorrer as estradas e conversar com o povo. Afirmasse que uma experiência amplia a outra. Que ambas foram e são importantes. Afinal, a educação, o acesso aos livros, a possibilidade de inscrever sua experiência na literatura é o que foi roubado dos mais pobres durante tantos séculos. Uma pessoa deve lamentar que não pôde ler ou estudar e reivindicar maior acesso aos livros e à educação – mas, se orgulhar da falta de leitura, nunca. E nunca mesmo se esta pessoa é presidente de um país em que boa parte da população não entende o que lê.
Espero que Dilma Rousseff tenha a clareza de transformar a educação em prioridade de fato. E Lula possa aproveitar o tempo livre para ler Raízes do Brasil e muitos outros livros. Ninguém perde nada por ler – nem mesmo e principalmente alguém com a estatura e a grandeza de Lula.
(Publicado na Revista Época em 03/01/2011)