Reflexões entre múmias e estátuas de um museu egípcio
No sábado, eu caminhava embasbacada pelo Museu Egípcio de Turim, entre sarcófagos, múmias e estátuas milenares. Estava na cidade para um debate sobre a edição italiana do “Dignidade”, obra que marca os 40 anos da organização humanitária Médicos Sem Fronteiras, e escapei do Salão Internacional do Livro para dar uma espiada no museu. O prédio abriga uma das maiores coleções de arte egípcia do mundo e é difícil não se emocionar diante de algumas peças que nos contêm antes mesmo de existirmos. Mas, diante dos hieróglifos, alguns gravados mais de 3 mil anos antes de Cristo, fiquei pensando se algo de nós sobreviverá tanto quanto aquelas pedras onde a história foi inscrita para permanecer.
Em nenhum ponto da aventura humana nos contamos tanto quanto hoje. Cada um de nós pode escrever sobre si mesmo dezenas de tuites em um só dia ou postar no Facebook cada um de seus desejos ou percalços. Somos milhões registrando, dia após dia, nossa trajetória individual. E, ao contrário dos egípcios da Antiguidade, desta vez não é apenas a história dos faraós que é contada, mas a do homem e da mulher comum, a minha e a sua.
A tragédia, porém, é a mesma. Quando olho para a arte, de qualquer período, me emociona o gênio humano que transcendeu a miséria cotidiana para criar algo além. Por outro lado, enxergo nela a solidão abissal diante da finitude da vida, seja em uma estátua de Osíris ou em uma pintura de Picasso, em um romance de Tolstói ou em uma sinfonia de Beethoven. De certo modo, toda arte é um monumento ao nosso desespero diante da morte. Como se tudo o que foi criado até hoje documentasse, no fundo, sempre o mesmo desejo impossível de permanência. E como se todo museu ou biblioteca fosse, na verdade, uma prova pungente e grandiosa de nosso fracasso.
Quando nos contamos nas redes sociais, nos detalhes mais mínimos, somos movidos por esse mesmo anseio. Primeiro, que nos reconheçam. Segundo, que nos amem, o que supostamente seria dado pelo número de seguidores no Twitter ou de amigos no Facebook. Ou que ao menos nos achem importantes o suficiente para nos odiarem. Há quem fique irritado com aqueles que anunciam ao mundo que vão lavar o cabelo ou que estão com sono ou que sentem fome. Eu, às vezes, me enterneço. Parece tão espantosamente banal, mas naquele tuite prosaico berra o medo da morte. Ela avisa que precisa lavar o cabelo, mas, de fato, está pedindo um olhar que lhe garanta a existência. E se alguém responde ou comenta, ainda que seja para xingar, está salva por um momento.
A internet nos deu essa chance, a de nos contarmos todos. Como se os escravos que ergueram as pirâmides e os escribas que registraram a vida dos faraós, assim como as transações comerciais e as leis do Egito Antigo, tivessem sido autorizados a documentar também suas tristezas e suas epifanias, assim como seus nadas. Mas, é irônico. Porque nós, os humanos pós-internet, não nos narramos em pedras, nem em papiros, nem em papel. Contamo-nos em lugar nenhum.
Tudo é memória – e, ao mesmo tempo, nada é ou está. O registro de nossa passagem pelo mundo é guardado na nuvem, essa figura enigmática que ninguém consegue apalpar com as mãos. E, embora nada possa ser esquecido, ao mesmo tempo podemos queimar mais rápido do que a Biblioteca de Alexandria. E, se tudo pode ser contado, a maioria de nós escolhe o que deixará documentado, como editores – e censores rigorosos – da própria história. Se fôssemos todos tão felizes como nas fotos do Facebook, os fabricantes de antidepressivos, ansiolíticos e hipnóticos teriam mudado de ramo. Se fôssemos tão belos e tivéssemos o rosto tão liso, a indústria de cosméticos e os cirurgiões plásticos já teriam falido.
Alcanço uma das peças mais acachapantes deste museu egípcio de Turim: a estátua do faraó Tuthmosis III (1479-1425 a.C). E percebo que, na base da estátua, o francês que a “descobriu” gravou seu nome, no ano de 1818, na esperança de garantir também para ele um naco de eternidade. E eu, que em maio de 2012 a admiro, nada sou além de um olhar anônimo entre centenas por dia.
Mas, ali, entre turmas de crianças de escola e turistas de nacionalidades variadas, me sinto semelhante ao faraó e ao francês. Porque aquilo que ficou do faraó, por monumental que seja, assim como a tentativa do francês de imortalizar-se, por patética que seja, não é nem um, nem é outro. O faraó e o francês são como eu, um mistério efêmero. Eles, com tudo o que foram, estão mortos. Como eu, entre hoje e algumas décadas, também estarei.
O que sou eu? Talvez o olhar terno para as duas escovas de dentes que repousam num copo de plástico na pia do hotel. Ou a revolta com a espinha que irrompeu no lábio superior bem no dia de minha apresentação pública. Ou o que escapa de mim nas histórias dos outros que conto. Sou muito mais o que não está contado de mim, o que escoa com as horas sem deixar rastro, do que aquilo que se sabe de mim.
E talvez essa seja a grandeza do momento histórico que vivemos, em que todos se narram por segundo. Se os hieróglifos do mundo antigo revelavam o mesmo desejo de permanência que a polifonia sem hierarquia das redes sociais de hoje, penso que agora estamos mais perto de nossa verdade mais profunda. Essa memória na nuvem, ainda mais imaterial do que nosso corpo condenado a desaparecer, esse nada que resta de nossa passagem fugaz pelo mundo, é apenas isso: a nossa tragédia sem museu. Finalmente, sem museu.
(Publicado na Revista Época em 14/05/2012)