Sarney e Manezinho

Será que alguns são mais comuns do que outros? Não acredite em Lula

“Sarney tem história no Brasil suficiente para que não seja tratado como se fosse uma pessoa comum.”

Esta foi a frase mais terrível já dita por Lula desde que ele iniciou uma trajetória pública que deu esperança a milhões de pessoas comuns no Brasil. Para mim, 17 de junho de 2009, a data em que foi pronunciada essa sentença, lá do outro lado do mundo, no Cazaquistão, tornou-se histórica. Nela, o homem comum que chegou ao poder afirma que: 1) há brasileiros, como Sarney, que não são comuns; 2) porque seriam supostamente incomuns mereceriam tratamento diferenciado; 3) ser comum é desimportante.

É com essa frase – mais do que qualquer outra coisa que tenha dito ou feito – que Lula pisoteia sua extraordinária biografia. E, ao fazê-lo, esmaga 190 milhões de brasileiros comuns. Como muitos, eu sempre admirei Lula – antes mais do que até há pouco, é verdade. Na campanha presidencial de 2002, coube a mim fazer as reportagens sobre a vida de Lula e de sua grande família. Tive a alegria de conhecer todos os irmãos de Lula, os meio-irmãos, os primos, os tios, os amigos. Não só os irmãos que mais freqüentam as páginas da imprensa, como Frei Chico e Vavá, mas também outros, como Jaime, que trabalhava como metalúrgico, e Tiana, merendeira de escola. Eles são extraordinariamente comuns, como Lula e como todos nós.

O que Lula deu ao país como capital simbólico ao tornar-se presidente do Brasil era enorme. Vi nas ruas, fazendo reportagem, o aumento da auto-estima de brasileiros que até então acreditavam que ser comum era desimportante, que o poder não era para o homem comum. Gente que descobria, com Lula, que também era habitada pelo extraordinário. Grande, muito grande. E agora Lula diz essa frase. Ela mesma tão comum na boca das elites que precisavam se diferenciar para justificar seus desmandos e seus privilégios desde o Brasil colônia.

Todos esses dias eu esperei que Lula dissesse que errou, que pedisse desculpas públicas, que lembrasse de si mesmo como um homem comum, que merece tratamento de homem comum, como todas as pessoas que o elegeram e como todas as pessoas que não votaram nele, mas cujo país é governado por ele. Não aconteceu. Ao que parece, o pragmatismo do político prevaleceu sobre os ideais do homem comum.

Acho que vamos demorar muito tempo até conseguir alcançar não só o significado, mas as enormes consequências da mais terrível frase já pronunciada por Lula. Tão terrível porque ela destrói um valor simbólico que não pertence ao operário que virou presidente, mas, num momento histórico determinado, foi encarnado por ele. O de que ser comum não é banal, não é trivial, não é óbvio. O de que somos, sim, todos comuns e, ao mesmo tempo, extraordinários.

Comuns e singulares. Alguns mais bonitos, outros mais inteligentes, outros ainda engraçados. Alguns, como eu, não conseguem recortar um pedaço de papel em linha reta e derrubam sorvete na roupa, mas são capazes de escrever uma frase interessante. Há aqueles que tocam música ou pintam lindamente sem nunca ter estudado, os que cozinham com um tempero só deles, os que contam histórias sem saber ler nem escrever. Há de tudo, ainda bem.

Nunca encontrei ninguém que não fosse habitado pelo extraordinário. Mas só a igualdade permite que sejamos singulares cada um a sua maneira, só a igualdade concilia a enorme riqueza de nossos diferentes modos de ser e de estar no mundo. Essa é a diferença que nos aproxima. Não aquela, forjada, que nos afasta. A singularidade que nos permite perceber que, na beleza da nossa humanidade, somos mais iguais do que diferentes. Que a diferença serve para alargar a riqueza da nossa vida comum, em comum.

O que quero dizer aqui é: não acredite nessa frase de Lula.

Vou fazer a minha parte nesse ato cotidiano de resistência. E contar não a história de Sarney, mas a de Manezinho. Eu o conheci na mesma semana em que Lula pronunciou A frase. Não ele, mas os fragmentos do final de sua história. Fazia uma reportagem sobre a única família que resistiu à destruição da favela Jardim Edite, na Zona Sul de São Paulo. Uma única casinha pintada de azul em meio aos escombros que até o final de maio eram habitados por mais de 800 famílias, em meio ao que hoje é uma zona imobiliária em expansão, ao lado do mais novo cartão postal da capital paulista, a ponte estaiada. A matéria foi publicada neste site com o título de Marcão da Pipoca contra a expansão imobiliária.

Manezinho também morava ali. Separado da mulher e da filha, sozinho no seu barraco. Todo dia esse migrante nordestino puxava sua carrocinha, juntando sucata pela cidade. Sobrevivia disso. Seguidamente bebia além da conta, mas sem causar grandes incômodos. Quando a favela foi despejada, depois de uma longa batalha judicial e de um acordo entre a prefeitura e a associação de moradores, Manezinho disse: “Só saio daqui morto”. Era uma frase de efeito. Virou destino.

Num dia de maio, Manezinho estava sentado diante de seu barraco, enquanto as máquinas destruíam a favela. Avistou uma calha de latão. Foi pegá-la para vender ao ferro-velho. Um muro inseguro, como muitas das ruínas ali, desabou sobre ele. Manezinho foi socorrido por Marcão da Pipoca, seu filho e os trabalhadores da empreiteira. Ainda disse: “Eu pedi”. Talvez, confuso, tenha achado que a dor se devia a um castigo por ter pegado a telha. Não sei. Manezinho morreu. Enquanto era enterrado no Cemitério São Luiz, “num caixão bonito pago pela empreiteira”, como diz Marcão da Pipoca, o barraco de Manezinho foi demolido pelos homens e pelas máquinas. Não havia mais nada dele no mundo.

Tudo isso se passou atrás da montanha de terra em que se transformou a favela. Da bela ponte estaiada, nada se vê. A demolição de centenas de casas, rotinas de vida, sonhos de gente, é sempre uma morte simbólica. A de Manezinho foi literal. Mas quase ninguém viu. Menos ainda ligou. Tentei descobrir na internet o que sites ligados ao Jardim Edite diziam sobre Manezinho. Em um dos poucos que faziam referência a sua morte, ele era um bêbado sem nome. Como se o alcoolismo de Manezinho justificasse que um muro desabasse sobre ele, sepultando sua vida. Uma das lideranças comunitárias mais importantes disse que “coisas assim acontecem”. Ninguém quer “criar caso”, à espera do conjunto habitacional que a prefeitura prometeu construir ali para apenas 240 das mais de 800 famílias.

Entre Sarney e Manezinho há muitas diferenças. A mais simbólica delas não é a de que Manezinho era um homem comum e Sarney supostamente não seja. Mas a de que a Manezinho foi oferecido R$ 8 mil pela sua única casa ou R$ 500 de aluguel por dez meses. E a Sarney era dado, irregularmente, R$ 3,8 mil de auxílio-moradia todo mês, mesmo ele tendo casa fixa em Brasília.

Da frase de Lula pode-se inferir que algumas mortes são menos importantes que outras. Algumas mortes são visíveis, outras não. Por quê? Porque algumas vidas supostamente valeriam mais a pena do que outras. Algumas vidas seriam supostamente mais importantes do que outras.

Não acreditemos nisso. Meu ato de resistência é devolver a Manezinho não a sua vida, porque isso é impossível, mas a história de sua vida. Me comprometo aqui a resgatá-la. E contá-la nessa coluna. Se você puder ajudar, se souber algum detalhe, uma informação que seja, sobre Manezinho, me ajude, escreva nesse espaço ou me envie um email.

Toda vida é comum, toda vida é extraordinária. Toda vida vale a pena.

O fotógrafo Marcelo Min enviou duas fotos de Manezinho. Agora ele já tem, pelo menos, uma imagem

O fotógrafo Marcelo Min enviou duas fotos de Manezinho. Agora ele já tem, pelo menos, uma imagem

manezinho2

(Publicado na Revista Época em 22/06/2009)