Nos tornamos deuses escravos: em vez de viver, estamos sendo consumidos
Começou. A qualquer lugar aonde vou, alguém fala que o ano está acabando. Passando rápido demais. Há anos o ano começa a acabar no meio. E todo ano isso se repete. E a cada ano acho que piora. Se levar em conta a percepção geral, a cada ano o ano passa mais rápido e acaba mais cedo. Eu já estava com vontade de gritar diante da próxima pessoa que repetisse esse comentário. Um grito longo, silencioso e interno. Fora de mim, um sorriso educado. E aquele comentário: “Que loucura, né?”. Então, o Reginaldo, taxista amigo, perguntou: “Quando o ano vai parar de passar rápido?”. Ótima pergunta. E não era uma pergunta retórica. O Reginaldo queria saber, mesmo. Eu, que para variar estava sem tempo, fiquei também sem resposta.
Desde então, a pergunta do Reginaldo não me sai da cabeça. Tenho, algumas vezes, a sensação de que estamos todos, cada um a sua maneira, vivendo uma gincana, rigidamente cronometrada. Parece que nunca trabalhamos tanto. E nunca faltou tanto para fazer. Cada vez acordamos mais cedo e dormimos mais tarde. E estamos sempre atrasados e devendo tarefas para todo mundo. Não é maluco precisar de agenda para saber o que fazer? Ou no início da manhã de segunda-feira já estar atrasado para as necessidades do mundo?
Toda a parafernália eletrônica que supostamente deveria servir para nos libertar só aumentou nossas tarefas. Agora, é encarado como ofensa grave desligar o celular para não ser encontrado ou para almoçar sem ser perturbado. Vejo todo mundo almoçando com seus aparelhos na bandeja, jantando com o iPhone ao lado do prato. Há celulares ao lado das velas em jantares românticos. Tornou-se normal fazer sexo ou mesmo dormir com o celular ligado. Desde quando nos tornamos imprescindíveis para o mundo? Será que somos tão importantes assim que não podemos ficar desconectados? Por que deveríamos ser alcançados o tempo todo? Desde quando o planeta deixa de girar porque alguém não nos achou?
Menos, menos. Muito menos.
O celular toca o tempo todo. Recebemos centenas de e-mails exigindo resposta imediata. De repente, tudo virou urgente. Todos que nos procuram têm demandas. E tudo era para ontem. A tecnologia nos deu um atributo que antes pertencia só aos deuses, a onipresença. Mas nos tornou escravos. Somos deuses escravos.
Temos até uma espécie de onisciência, porque somos superinformados por sites, blogs e agora também pelo twitter. Posso saber, em tempo real, o momento exato em que um avião caiu do outro lado do mundo e o momento exato em que uma celebridade pintou as unhas com esmalte vermelho-paixão. Não é fantástico?
Desconfio que não. É claro que existem coisas realmente interessantes. Mas a maioria, convenhamos. Percebo agora o quanto deve ser chato ser Deus. O twitter nos mostrou isso. Já imaginou? Se a cor do esmalte ou o aviso de que vai tomar banho são as revelações que alguns acham bacana contar, já parou para pensar o que não acham bacana? Já imaginou ser obrigado a assistir a isso?
Não, não. Eu realmente não quero nem preciso saber da maioria das coisas que me informam. Acho que ninguém precisa. Também não quero estar em toda parte. Não me interessa estar no blog, no MSN e no twitter ao mesmo tempo. Mal consigo estar em um lugar de cada vez.
Tampouco quero ser encontrada 24 horas por dia. Gosto de desligar o celular e desaparecer. Não entendo por que tanta gente fica ofendida quando encontra apenas minha voz simpática na caixa-postal. É isso. Continuo gostando de você, mas não estou. Sumi. Volto quando puder.
Adoro receber e-mails. Guardo muitos deles e, alguns, releio várias vezes. Tento resistir à tentação de imprimir, em nome das árvores, mas vez ou outra sofro recaídas. E-mails queridos são como cartas. Alimentam-nos de intangível. Mas, exceto os urgentes, que são poucos, neste momento estou respondendo aos da terceira semana de agosto.
Tenho certeza: ninguém vai entrar em depressão profunda porque não recebeu uma resposta imediata. E não, não estou tuitando, por enquanto. Acho que nunca vou conseguir dizer nada muito importante em 140 caracteres. Sou prolixa, como quem me lê já descobriu. Sou perdulária nas frases. Não consigo economizar palavras. Lamento.
Não sei vocês, mas descobri, depois da pergunta do Reginaldo, que precisava resistir. Costumava salvar algumas horas da semana só para encarar meu vazio, ficar contemplando o nada. Mas, nos últimos tempos, estava cada vez mais difícil. Percebi que estava embarcando na ideia de me tornar deus. Atributos divinos são sempre muito sedutores.
Comecei a ter enxaquecas. E a acordar cada vez mais cedo e já atrasada. A contar com os finais de semana e com as férias para trabalhar. Um dia, percebi que estava indo encontrar amigas queridas como se fosse mais uma tarefa a ser riscada na agenda. No caminho, já pensava nas próximas que ainda me aguardavam. O que estava acontecendo comigo?
Algo estava muito errado. O Reginaldo me acordou. Deveria ter pagado mais por aquela corrida de táxi. Pelo menos no meu caso, o ano só vai parar de passar rápido quando voltar a me apropriar do meu tempo, estabelecer minhas prioridades. E não viver em função da pressa alheia, que agora me alcança pela parafernália eletrônica que preencheu nossa vida e roubou nossas horas. Agora, minha meta mais importante na agenda é fazer essas máquinas fantásticas, brilhantes e barulhentas trabalharem para mim. E não o contrário. No momento, estou querendo inventar a oniausência.
Um parêntese. Sabe outra coisa que começa a me deixar enjoada? As decorações dos shoppings centers. Acabou a do Dia dos Pais, daqui a pouco teremos a do Dia das Crianças e, depois, cada ano mais cedo, a do Natal. Sei que é feio, mas tenho vontade de arrancar aquelas guirlandas e bolas coloridas e dar um chute no boneco do Papai Noel. Quero mandar ele e as renas e os duendes todos de volta para o Pólo Norte.
Desculpa. Reconheço que não é um sentimento elevado. Mas me sinto uma trouxa quando dividem meu ano em datas de consumo e ficam tentando fazer com que eu gaste todo o meu dinheiro me seduzindo com falsos sentimentos. Eu sempre caio, é uma desgraça. Aí o ano nem acabou e eu já estou endividada para o próximo. Atrasada para tudo, adiantada nas contas. O Papai Noel e o Coelhinho da Páscoa existem, mas não são boas pessoas.
Voltando. Depois da tal pergunta do sábio Reginaldo, percebi que não lembro o que fiz na semana passada. Se me esforçar, recordo. Mas não é automático, preciso pensar. Quando lembro, percebo que fiz coisas bem legais. Como pude, então, esquecer? Como é possível parecer que faz um ano que algo tão importante aconteceu? Seria porque vivi, mas não senti que vivi? Por que o ano passa rápido demais e todas as horas são preenchidas por tarefas? Por que não temos tempo para elaborar o que vivemos?
Algo está errado se acordamos na segunda-feira pela manhã e já estamos atrasados, já estamos devendo, já estamos cansados. Ainda que excitados com o que estamos fazendo, como é o meu caso. Algo está bem errado quando a vida vira uma sucessão de tarefas, mesmo que as tarefas sejam bem interessantes. Algo está errado quando até o lazer se torna uma tarefa. Algo está muito errado quando precisamos marcar na agenda para passear com os filhos ou namorar. Algo está definitivamente errado quando precisamos pensar para lembrar do que vivemos no dia anterior.
Não sei se acontece com você, mas tenho sentido falta de viver o que vivi. O que vivo. De sentir o tempo passar. De ter tempo para elaborar o vivido. E também de ter tempo para ficar no vazio, apenas contemplando o silêncio dentro de mim.
Não gosto quando os dias se tornam uma sequência de ruídos, de luzes que piscam em telas variadas, simulando uma falsa urgência, exigindo atenção. Não gosto de me sentir consumida até que o tempo se esgote dentro de mim. Ano após ano que acaba no meio, ano após ano que acaba rápido demais.
Como disse um filósofo, o tempo é uma criança que brinca com ossos. É preciso não esquecer. Um dia tudo vai mesmo acabar, e não queremos perceber nesse último momento que nossa vida foi consumida. Ao final de cada frase desse texto deixo para trás minutos mortos, vida que se foi. Quero, então, ter certeza que não me deixei consumir. Quero ter certeza que vivi cada um dos meus segundos.
Não lembro qual foi o pensador que disse essa frase: “Nem todos os anos que passam se vive: uma coisa é contar os anos, outra é vivê-los”. Como se conta então os anos que começam a acabar no meio?
Tempo é tudo o que temos. Se não temos tempo, nada temos. Só um ano que acaba no meio e passa rápido demais.
Ao dizer que não temos tempo, o que estamos dizendo é que não temos subjetividade. O que vivemos não foi sentido. Se não é sentido, não é vivido. Se não é vivido, não há sentido.
Quando o tempo vai parar de passar rápido demais? Talvez, Reginaldo, quando pararmos um minuto para termos, de fato, um minuto. Quando nesse minuto nos dermos conta que, ao final dele, estaremos um minuto mais mortos. E, então, nos apropriarmos do nosso tempo para viver segundo um calendário próprio – e não segundo as leis de uma agenda que nos aliena daquilo que sempre foi nosso. Daquilo que é nossa única riqueza ao nascer, quando então começa a contagem regressiva da nossa vida. Essa existência sem nenhuma garantia, que pode ser interrompida a qualquer momento. Por isso viver sentindo que se vive não é algo adiável para amanhã.
Acredito muito na resistência pelos detalhes, começando pelas pequenas coisas. Vou desligar o celular nas refeições, quando chegar em casa, nos fins de semana. Quero reservar um tempo determinado para verificar e-mails, responder conforme minhas possibilidades. Pretendo me tornar mais seletiva na hora de buscar informações na internet. E levantar para conversar com alguém que está perto em vez de mandar um e-mail ou um torpedo. Quero voltar a ter mais tempo para livros, filmes, viagens por estradas reais e pessoas que amo.
Só desejo ser o deus do meu tempo. Às vezes vou passear por blogs, twitters, chats que valem a pena. Mas não moro lá. Quando olhar para mim mesma, espero não ver nada piscando nem buzinando. Não quero mais ser inquilina de outros mundos. Só aspiro agora habitar minha própria vida.
Parei. Meu ano acaba em dezembro e não passa rápido demais.
(Publicado na Revista Época em 14/09/2009)