Sou uma mulher sortuda

Conheci não um, mas três homens incríveis nos últimos dias

“Mal chegou, o primeiro me perguntou. “Você é cristã?”. Vestia um turbante e uma túnica branca. “Não”, eu respondi. “Qual é a sua religião?”, ele continuou. “Eu não tenho fé”, disse eu. “Mas você não acredita em Deus?”, o homem insistiu. “Vivo com o mistério”. Achei que a sinceridade acabara de me custar a entrevista. Esperei que ele se levantasse e virasse as costas. O homem diante de mim era um imã, líder espiritual muçulmano. Seu nome é Muhammad Ashafa e ele é protagonista de uma das histórias mais extraordinárias que eu jamais ouvira. Ao lado dele, estava o outro personagem dessa história, o pastor cristão James Wuye. Ambos são líderes religiosos da Nigéria e o esperado era que estivessem naquele momento esfaqueando um ao outro com adagas afiadas. Mas, em vez disso, eles trocavam sorrisos cúmplices, só permitidos a velhos companheiros.

Cada um deles teve o leite materno adoçado com o ódio ao outro. A Nigéria, um país criado em gabinete pelos colonizadores, é ocupada ao sul por maioria cristã, ao norte por maioria muçulmana. Milhares vêm morrendo pelas mãos de um e de outro nas últimas décadas. Quando estendo a mão para cumprimentar o pastor James Wuye, ele se adianta e intercepta minha mão com a sua esquerda. Metade de seu braço direito foi decepado por um muçulmano, e ele prefere que eu não toque a dureza da prótese. Mesmo assim, esses dois homens têm andado pelo mundo defendendo que a ONU crie um “Dia do Perdão”. Caminham lado a lado, carregando suas mutilações, as visíveis e as invisíveis, encarnando a possibilidade do impossível.

Conto a extraordinária história desses dois homens na atual edição de Época, com o título de Amando o inimigo. Aqui, quero falar de apenas um deles. Do imã Muhammad Ashafa. Não sou nem religiosa, nem mística. Sou curiosa. E, como tal, perambulo por aí aberta para o espanto. E fico toda feliz quando sou pega de surpresa, porque posso, então, aprender algo novo. Há algo diferente em Mister Ashafa. Percebi no momento em que ele juntou as mãos, como uma prece, para me cumprimentar. A muçulmanos não é permitido tocar mulheres que não as suas. Ainda em silêncio, sua presença é poderosa, intensa. Pensei: ainda bem que esse homem escolheu a paz. Porque alguém com esse carisma poderia ter uma enorme capacidade de destruição.

Ao falar, Mister Ashafa transforma imagens em palavras. Traz no ritmo de sua narrativa uma vida lendo e ouvindo os versos do Alcorão. Sua voz é profunda, cheia. A musicalidade de suas palavras ressoa dentro de seus interlocutores. Mas, em vez de pregar o sectarismo religioso, como tantos líderes messiânicos, ele defende não apenas a tolerância, mas algo um pouco maior. “Não devemos apenas tolerar aqueles que são diferentes de nós, mas aceitá-los. Aceitar é um pouco mais”.

Mister Ashafa não teme o diferente. Ele acredita que a diversidade não é uma ameaça, mas nossa força. Aprendeu com seu mentor, um velho sábio sufi, que é preciso nos colocar no lugar de todos os seres. “Era isso que meu mestre ensinava, que a gente nunca deixasse de se enxergar em todos os outros seres, de sentir empatia por todos os outros seres. Devemos nos colocar no lugar das outras pessoas antes de julgá-las, condená-las ou castigá-las. Não podemos demonizar o outro, porque essa demonização só serve para arrancar do outro a sua humanidade. Deixamos de ver o outro como alguém que tem questões muito parecidas com as nossas. Então, podemos matá-lo. Quando um muçulmano mata, ele não é mais muçulmano. Quando um cristão mata, ele não é mais cristão. O centro de qualquer religião é a compaixão. E este tem de ser o novo espírito do Islã. Se ver espelhado.” O imã conclui, com seus negros olhos febris: “Hoje eu não tenho inimigos, mas um amigo que ainda me falta conhecer”.

Não são palavras fáceis. Para pronunciar cada uma delas, Mister Ashafa teve de viver uma transcendência que quase lhe revira as entranhas pelo avesso. O mestre sufi a que ele se refere foi jogado num poço pela milícia comandada pelo pastor James. Em seguida, coberto de pedras. Seu discípulo só encontrou o corpo três dias depois. Mister Ashafa compreendeu então que só havia um modo de o mestre continuar vivo. Era preciso fazer com que suas palavras vivessem. Elas vivem nele desde então.

Mister Ashafa tem uma resposta para o nosso medo. Ele diz: “Nossa segurança não está baseada nas armas, mas no quanto respeitamos o nosso próximo. Quando meu vizinho está com fome, eu vivo com medo. Se meu filho vai para a escola e o filho do meu vizinho não vai, a segurança do meu filho está em risco. Então devo investir na educação para que o filho do meu vizinho também tenha acesso a uma boa escola, para que ele não vire um marginal, forme uma gangue e queira ferir o meu filho. Devo fazer isso e não me armar e erguer muros entre mim e meu vizinho. Isso vale para as comunidades, para os governos, para cada um de nós. Quando você consegue fazer isso, você consegue dormir em paz. Porque seu vizinho tem condições de se reerguer por conta própria. Enquanto não fizermos isso, o mundo não será um lugar seguro para ninguém”.

Achei curioso que um líder muçulmano de um país africano devastado por conflitos étnicos, econômicos e religiosos pudesse dizer algo tão perto da nossa realidade. Parecia que ele vivia logo aqui, em meio a casas gradeadas como prisões. Quando a escola pública perdeu qualidade, a classe média tratou não de brigar pela recuperação da educação, mas deu um jeito de botar seus filhos nos colégios privados. Quando aumentaram as filas do sistema público de saúde, tratamos de fazer crescer e multiplicar os planos privados de saúde. Quando os ônibus do sistema público de transporte transformaram-se numa máquina de esmagar pessoas, tratamos de aumentar o número de carros e as vagas na garagem. Quando as ruas ficaram perigosas, instalamos grades, alarmes, aumentamos a altura dos muros e o número de cães e de seguranças.

Como isso poderia resultar em algo que não fosse violência? E por que temos a ousadia de acreditar que não temos nenhuma responsabilidade pelo nosso medo que não para de crescer? O que mais falta fazer para se proteger de gente igual a nós, mas que não tem nem escola, nem saúde, nem casa, nem sistema de esgoto? Talvez olhar para ver. Não como um demônio pronto a nos fazer mal, mas para alguém que também tem medo. E pouco mais além disso.

Há sempre algo que cada um de nós pode fazer, a partir daquilo que já fazemos. Há sempre algo que podemos mudar nos pequenos vícios cotidianos. Há sempre uma janela que podemos abrir em vez de se render ao hábito de fechar. É um risco, sempre é. Mas todos sabemos que não há vida sem risco. No caso de Ashafa, o que ele fez foi dar um passo para dentro do território inimigo. Achou que estava indo espionar, armazenar informações para o próximo ataque. Mas descobriu que o pastor James Wuye tinha tanto em comum com ele, apesar das tantas e necessárias diferenças, que já não pôde matá-lo.
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Logo ao chegar, o segundo homem poderia ter me perguntado: “Você é atéia?” Dias depois de conversar com Mister Ashafa, tive a chance de ouvir Richard Dawkins, um britânico nascido no Quênia. Ele é o ateu mais famoso do mundo. Entre outros livros polêmicos, o biólogo escreveu Deus, um delírio (Companhia das Letras, 2007). Escutar Mister Dawkins é também uma experiência de transcendência, mas por outro caminho. Acompanhar a evolução de seu raciocínio límpido, elegante, é uma vivência da beleza. Tenho esse êxtase quando ouço alguém genuinamente brilhante, de o quanto a mente humana pode criar beleza pela harmonia de formas do próprio pensamento. Dawkins é assim, um poema científico.

O que ele tem a ver com Mister Ashafa? Ou melhor, o que ele está fazendo nesse texto? A certa altura de sua fala, na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), Mister Dawkins falou algo sobre o imenso valor da vida. Se, na sua concepção, não há deuses, nenhum deles, muito menos uma vida depois da morte ou um corpo para reencarnar, o que faz desta vida algo que vale a pena? Nesta hora, lembrei de Mister Ashafa, que faz de sua inscrição no mundo um libelo pela vida. Não a dos muçulmanos, mas todas as vidas, na beleza infinita de sua diversidade.

É de diversidade que Mister Dawkins fala, ao evocar Charles Darwin. E é pelo acaso que ele nos mostra nossa imensa sorte de estar aqui. Sempre fico aterrorizada pensando que se minha mãe não tivesse decidido casar com o meu pai quando ele nem mesmo sabia disso, se três irmãos não tivessem nascido antes, se tantos milhões de acasos não acontecessem, de forma a não alterar um único milésimo de segundo, se aquele exato espermatozóide não tivesse fecundado o óvulo, eu não estaria aqui. Mas se você pensar que não é apenas esse momento determinado da soma de todos os acasos que resultou na combinação genética única que nos constitui, mas precisou de todos esses milhões de ocorrências comezinhas também para que nossos avós se conhecessem e gerassem um pai e uma mãe como os nossos, e assim também com nossos bisavós, tataravôs, até chegar a um ancestral em cuja forma não mais nos reconhecemos.

Um único acaso diverso nesses zilhões de pequenos acontecimentos e seria um outro – e não nós – que estaria aqui nesse exato momento, lendo esse texto. Um cigarro ou um café que nosso pai ou mãe resolvesse tomar antes de transar, um zíper do vestido que emperrasse ou não emperrasse, um acesso de tosse e – zum – já não seríamos nós. Não é assustador? Mas somos nós que estamos aqui, contra todas as probabilidades. Então, como não fazer desta vida algo que vale a pena? E como não olhar para a vida do outro com a dimensão dessa grandeza?
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O terceiro homem da minha vida nesses últimos dias nada me perguntaria. Eu já sabia seu nome, António Lobo Antunes. Português, é considerado por alguns críticos o maior escritor lusitano depois de Eça de Queirós. Com ele, tive uma experiência amorosa. Não o escutei impávida, toda atenta e cerebral. Fui relaxando, deslizando na cadeira, toda entregue a uma voz que me trazia o que para mim é uma combinação irresistível, a da sabedoria com simplicidade. Eu não era mais uma pessoa, era um ouvido. Meus braços escutavam, a gola da minha camisa branca escutava, todas as minhas sardas escutavam, até minhas mechas loiras escutavam. Tive uma epifania. Saí da tenda da Flip em estado de felicidade absoluta.

Deixo para vocês uma imagem composta por Lobo Antunes, que tem tudo a ver com esse texto: “Não existe profundidade, apenas uma sequência infinita de superfícies”.

(Publicado na Revista Época em 06/07/2009)