A briga dos ministros do STF nos lembra de que, por baixo da toga, os juízes estão tão nus quanto qualquer um
– Désinvolture brega, caipira.
A expressão, usada pelo ministro Joaquim Barbosa para referir-se ao ministro Cezar Peluso, pode ser a síntese dos dilemas expostos pela briga que ganhou as manchetes na semana passada. É o que confere qualidades shakespearianas à troca de golpes abaixo da linha de cintura, a rigor mais adequada a uma pelada de futebol de várzea. É onde mora a tragédia.
Reparem bem no drama. Joaquim Barbosa queria – e chamou – seu colega Cezar Peluso de “brega, caipira”. Brega, portanto, não era suficiente, para o ministro. Ele tinha ainda de adicionar mais um suposto sinônimo – e o suposto sinônimo escolhido demonstra a ira de que estava possuído, porque se esqueceu por completo do politicamente correto ao usar “caipira” com sentido pejorativo. Barbosa ainda chamaria Peluso de “ridículo”, “corporativo”, “desleal”, “tirano” e “pequeno”. Mas o mais interessante é que, antes de “brega, caipira”, ele instalou uma palavra francesa para completar a expressão: “désinvolture”.
Talvez, na intuição do ministro, uma “désinvolture” o salvasse de escorregar na lama das palavras da língua de origem – o salvasse, quem sabe, até mesmo da origem. Escolha que lembra as elites brasileiras do passado, na época em que apreciavam se expressar em francês para marcar também na linguagem a sua pretensa superioridade. Em boa parte do período em que a elite brasileira assim se comportou, porém, os antepassados de Joaquim Barbosa eram escravos – o que torna tudo mais interessante. Como uma volta completa.
Na fala do ministro, as ofensas de conteúdo mais explícito parecem irromper – e, então, de repente, ressurge o homem refinado, que fez mestrado e doutorado em Paris, subiu todos os degraus com seus próprios pés e méritos, e construiu uma biografia digna de aplausos entusiasmados. Mas ressurge como? Pela palavra estrangeira, aquela que o filho de um pedreiro do interior mineiro, o mais velho entre oito irmãos – negro, como ele se não cansa de lembrar a todos (possivelmente com razão) – precisou conquistar, junto com um lugar na elite jurídica do país. O homem ilustrado ressurge com “désinvolture”.
Em outro ponto, Barbosa usa a expressão “supreme bullying”. Refere-se, então, à campanha que Peluso teria capitaneado para desqualificar seus sérios problemas de saúde, que o obrigaram a pelo menos uma cirurgia e a meses de licença médica. Não. Um ministro do Supremo não sofreria um mero bullying. Mero bullying é para mim ou para você. Para ele haveria de ser um “supreme bullying”. Ainda que Barbosa explicite que criou a expressão com um sentido “jocoso”, não é uma expressão qualquer: é um “supreme bullying”.
A certa altura, o ministro faz um comentário quase incompreensível, pelo menos para mim: “Eu aposto o seguinte: Peluso nunca curtiu nem ouviu falar de ‘The Ink Spots’. Isso aí já diz tudo do mundo que existe a nos separar…” Bem, acho que “isso aí” pode separar Barbosa não só de Peluso, mas de boa parte dos brasileiros. Por sorte, o crítico André Barcinski, na Folha de S. Paulo de sábado (21/4), explicou que se trata de um grupo dos anos 30, formado por quatro cantores negros, que influenciaria mais tarde lendas como Elvis Presley e Paul McCartney. Ainda assim, continuei, possivelmente por ignorância, a não entender que tantas léguas separam quem “ouviu falar” de quem não “ouviu falar” do “The Ink Spots”. De fato, o que o comentário parece revelar é o oposto: não há mundos tão vastos a separar um humano do outro.
No vão das palavras revela-se o drama do homem que precisa marcar a sua diferença – quase com desespero. Ler a entrevista que Barbosa deu à repórter Carolina Brígido, de O Globo, na sexta-feira (20/4), era como assistir a um embate entre vários homens dentro de um só. Além de travar uma disputa com Cezar Peluso, o colega que o ofendera de forma vil, Joaquim Barbosa debatia-se em uma furiosa guerra interna que se manifestava na linguagem.
Para quem não acompanhou o entrevero, tudo começou na quarta-feira (18/4), com a publicação de uma entrevista do ministro Cezar Peluso, que deixaria a presidência do Supremo no dia seguinte, a Carlos Costa, do site Consultor Jurídico. Nela, Peluso refere-se a Barbosa nos seguintes termos: “Ele é uma pessoa insegura, se defende pela insegurança. Dá a impressão de que tudo que é absolutamente normal em relação a outras pessoas, para ele, parece ser uma tentativa de agressão. E aí ele reage violentamente”. E, mais adiante: “A impressão que tenho é de que ele tem medo de ser qualificado como arrogante. Tem receio de ser qualificado como alguém que foi para o Supremo não pelos méritos, que ele tem, mas pela cor”.
É importante registrar que, como dizem as crianças ao terem a atenção chamada pelos pais, foi Peluso quem começou. Foi ele quem deu o primeiro chute nas canelas – por trás. Mas há uma parte particularmente interessante no discurso de Peluso nessa entrevista. Ele define-se como um “apaziguador”. Sua gestão como presidente do Supremo teria sido de “apaziguamento”. Nas palavras literais do ministro: “O que me deixa de consciência tranquila é que, de certo modo, o tribunal se apaziguou um pouco durante a minha gestão. Sabemos dos diálogos exacerbados entre os ministros, que aconteceram no passado. Durante minha gestão isso não aconteceu em nenhum momento. Tentei conduzir as reuniões do Plenário de uma maneira tranquila, de alto nível. Não houve nenhum episódio que relembrasse os atritos anteriores. Acho que minha moderação na direção do Supremo ajudou a refrear um pouco o entusiasmo ou o estado de ânimo, permitindo que o tribunal decidisse sem se expor. As brigas anteriores expunham muito o tribunal”.
Não é fascinante? Tanto Cezar Peluso quanto Joaquim Barbosa, nessa guerra de discursos, tornam-se personagens de tragédia, ao serem traídos por demônios interiores. Na mesma entrevista em que se lança como “apaziguador” e “moderado”, Peluso revela-se o mais belicoso e destituído de moderação dos presidentes. Na mesma fala em que se gaba de ter evitado a exposição negativa do tribunal, Peluso provoca a maior – e a mais vexatória – exposição da história recente do Supremo. E Joaquim Barbosa, acusado por Peluso de responder com violência ao sentir-se inseguro, como responde? Violentamente.
Humano, demasiado humano. É aqui que, para além da tragédia, pode haver um aprendizado para todos nós. Não vejo nenhuma ameaça à credibilidade do Supremo, como foi manifestado por alguns. O que vimos foi uma exibição de humanidade, em sua vasta complexidade. Tanto Cezar Peluso quanto Joaquim Barbosa, independentemente de concordar ou não com seus votos, têm evidente saber jurídico. Mas são, também, dolorosamente humanos. Não estamos sempre repetindo que queremos juízes mais humanos?
Aí está. A humanidade, como descobrimos mal botamos o pé na rua – ou mesmo antes, ao nos encararmos no espelho do banheiro –, está longe de ser feita apenas de sentimentos elevados. Alguns votos de ministros do Supremo alcançam o melhor da espécie, ao exibirem um pensamento tão límpido que quase viram arte. Mas, se é humanidade o que queremos, é preciso ter a maturidade de acolher o pacote completo. Não para sermos condescendentes, mas para exigirmos superação e melhoria de quem tem um papel estratégico em questões que envolvem a vida de todos.
É um episódio muito rico, este. E me parece que existe ainda um ponto a mais a observar. Qual foi o palco que ambos elegeram para essa briga mais adequada a um campinho de várzea? A imprensa. Eles poderiam ter discutido a relação, numa tradicional DR, no gabinete de um ou de outro ou ainda na zona neutra de um terceiro, nos corredores do tribunal tomando um cafezinho, ou até no lusco-fusco de um bar discreto de Brasília, bebericando um Dry Martini – ou um uísque cowboy. Mas aí ninguém ficaria sabendo. Não haveria audiência – nem holofotes.
Os ministros queriam que fosse público. Por quê? Houve pelo menos duas mudanças no Supremo que podem ter influenciado esse comportamento. Os julgamentos passaram a ser transmitidos pela TV Justiça, a partir de 2002, transformando em ritual público o que antes era rito privado. Uma demonstração de transparência e uma tentativa de aproximar a Justiça do povo, já que os temas julgados pelo tribunal são do interesse da população. No mesmo período, o Supremo passou a julgar questões cada vez mais cruciais para a vida dos cidadãos comuns, o que também é muito positivo. Esses dois fatos relacionados arrancaram os ministros de uma obscuridade com pompa, mas sem nenhum brilho popular, e os lançaram em um tipo muito particular de celebridade.
Essa troca de lugar simbólico, como sabemos, pode explicitar o melhor, mas também o pior do humano. Neste caso, revelou que tanto Peluso quanto Barbosa confundiram o personagem – que é apenas uma parte de alguém – com o todo. A ponto de se acharem tão importantes que tudo o que diz respeito a eles deveria interessar ao país inteiro. Como aquelas celebridades que postam no Twitter que precisam lavar o cabelo ou que acham que uma celebridade rival exagerou na quantidade de silicone no peito.
A rigor, não foi muito diferente. Na contenda dos ministros, a única informação relevante para o Brasil, se for comprovada, é a de que Peluso supostamente tentava manipular os julgamentos ao presidir a corte. De resto, só cotoveladas no estômago e puxões de cabelo. O que é relevante de fato é o que nenhum deles tinha a intenção de revelar, mas escapou pelas fendas da linguagem: a matéria falha de que todos somos feitos. Inclusive vossas excelências.
É ruim quando um ministro envergonha a si mesmo, por um lado. Por outro, é bom quando um ministro envergonha a si mesmo. Quando ministros chegam ao ponto de dizerem o que Peluso e Barbosa disseram um ao outro, pela imprensa, é porque ambos se colocaram acima do bem e do mal. E este lugar é o único que um juiz não pode estar. É justo, portanto, que despenquem desse lugar indevido com todo o vexame devido.
É importante lembrar, porém, que o episódio está longe de ser o único na história recente do Supremo. Houve outros – e com diferentes protagonistas. Lembro-me de, em 2004, ter ficado estarrecida quando o ministro Marco Aurélio Mello praticamente chamou Joaquim Barbosa para brigar na esquina durante um julgamento em que se desentenderam. Desde que acompanho algumas votações, tanto por obrigação profissional quanto por gosto pessoal, acho curiosíssimo que alguns ministros são capazes de falar as maiores barbaridades para o outro, mas jamais se esquecem de usar o “Vossa Excelência” antes de proferir cada baixaria. O “Excelência” está só um degrau acima do “Doutor”, essa praga que assola o Brasil desde a sua formação.
Numa dessas disputas de guris, Marco Aurélio disse a Barbosa: “Enquanto estiver com a toga sobre os ombros…” Pois é. O “désinvolture” do ministro Joaquim Barbosa é a toga com que ele tentou esconder a nudez do seu discurso. O “Vossa Excelência” é a toga da linguagem usada por todos os outros. Episódios como a briga entre Cezar Peluso e Joaquim Barbosa em nada ameaçam a credibilidade do Supremo. Mas são importantes para que os juízes – todos e também os da corte máxima do país – possam lembrar que, por baixo da toga, eles também estão nus. Acredito que um juiz julga melhor quando conhece o tamanho da sua nudez. E passa a tomar mais cuidado para não voltar a esquecer-se de que é tão nu quanto qualquer um.
Se o nível das desavenças estava mais para um bate-boca numa pelada de várzea do que para um debate público, ouso fazer uma sugestão pueril. Quem sabe alguém não possa organizar um futebolzinho leve aos sábados, misturando excelências e não excelências. Nesse espaço informal, uns empurrões aqui e ali aliviariam a pressão acumulada e seriam interpretados como parte do processo. Para quem tem impeditivos de saúde (e também para quem não tem), terapia tampouco seria má ideia.
Na semana que passou, Cezar Peluso e Joaquim Barbosa deram-nos uma grande lição de humanidade. No que ela tem de pior, é verdade. Mas é importante, tanto para os ministros do Supremo quanto para nós, lembrar o que nunca convém esquecer: ter um “excelência” antes do nome assegura muitos privilégios, mas não garante excelência a ninguém.
(Publicado na Revista Época em 23/04/2012)