Há influência do Capitão Nascimento no apoio da opinião pública às operações no Rio?
As operações policiais na Vila Cruzeiro e no Complexo do Alemão têm sido chamadas de “Tropa de Elite em 3D” no twitter. Como se Tropa de Elite, o filme, tivesse passado das telas para a vida real, na menção de mais de um repórter ao relatar o que via. O público previsto para assistir à Tropa de Elite 2, que deverá se tornar o filme mais visto da história do cinema nacional, foi menor do que o esperado no último final de semana de novembro. Segundo alguns sites especializados, teria sofrido a concorrência de seu homônimo em 3D, na transmissão ao vivo das operações no Rio pelas equipes de TV. É apenas uma alegoria ou há algo mais profundo nesta relação entre realidade e ficção?
Acho que vale a pena pensar sobre o efeito de Tropa de Elite 1 e 2 na apreensão dos acontecimentos do Rio pela opinião pública. Não apenas pelos cariocas, mas pela população brasileira, boa parte dela sem nenhuma familiaridade com a realidade do tráfico nas favelas do Rio nem com os policiais do Bope. É possível supor que um dos maiores fenômenos de público da história do cinema nacional possa ter tido um efeito significativo na aprovação massiva (e quase sem ressalvas) à ação policial – no Rio, 88% da população, segundo o Ibope. Minha pergunta aqui, que talvez só possa ser respondida daqui a alguns anos, é em que medida o Capitão Nascimento está presente na decodificação dos fatos da vida real.
Amigos de diferentes Estados e regiões do Brasil, que costumavam assistir ao noticiário do Rio, incluindo operações anteriores, com uma curiosidade distraída, agora acompanham e discorrem sobre o Complexo do Alemão e o Bope como se tudo estivesse acontecendo no bairro vizinho ao seu. O que os “engatou” na realidade e os aproximou de algo que antes soava distante parece ter sido o tanto que gostaram do filme e o tanto que admiram o Capitão Nascimento, a quem enxergavam no rosto anônimo de cada policial nas imagens de TV. Ao buscar dentro de si instrumentos, memória, para compreender a realidade exibida no noticiário, é Tropa de Elite que aparece primeiro.
Nunca ouvi tão poucas críticas aos já comprovados abusos policiais na ocupação dos morros ou tão poucos questionamentos sobre a eficácia e o resultado efetivo deste tipo de operação. Existem, claro. Mas num volume bem menor. Conhecidos que eram os primeiros a levantar a voz para falar da violação dos direitos humanos confessam que estão acuados. Toda vez que abrem a boca para fazer uma ressalva no seu local de trabalho ou na mesa do bar são tratados como “defensores de bandidos”. Outros, que sempre olharam qualquer operação policial – ainda por cima com Exército a tiracolo – com desconfiança máxima, ensaiam discursos maniqueístas. Há não muito tempo me enviavam emails coletivos de campanhas contra o Caveirão. Agora, chegam a repetir o discurso fácil da luta do bem contra o mal. O que mudou?
Desde sempre há gente, muita gente, favorável ao pega e arrebenta. Assim como defensores do uso do Exército no combate ao tráfico, como havia sido tentado no passado. A diferença que percebo é a perda do pudor. Era complicado defender a polícia sabidamente corrupta em sua maioria e intimamente ligada à criminalidade que fingia combater. Era espinhoso falar do Exército na favela com poder de polícia depois dos 21 anos de ditadura militar. Quem compartilhava estas ideias, fora os motoristas de táxi, não saía por aí as bradando em qualquer meio. Agora, parece que inverteu. Criticar, duvidar, questionar, verbos que fazem parte do exercício da cidadania, têm sido rechaçados com alguma – ou até muita – violência. “Ah, lá vem você defender os pobres e oprimidos…”. Ou pior: “Lá vem você e a sua culpa…”. Como se querer que a lei seja cumprida dentro da lei fosse um defeito de caráter. E o autor do comentário já estivesse, a priori, desqualificado.
Vale a pena perguntar se há, nesta espécie de autorização para disparar ideias até então tachadas como “reacionárias”, um dedo engatilhado do Capitão Nascimento. Não o Capitão Nascimento contraditório, atuando em zonas cinzentas na maioria do tempo, aquele dos realizadores do filme. Mas o de cada um, aquele que virou uma espécie de herói no imaginário nacional.
Estamos vivendo dias em que mesmo um reacionário folclórico como o deputado federal Jair Bolsonaro vai ter tantos competidores que precisará mudar de tática se quiser garantir ao menos uma nota de rodapé nos jornais para suas frases bombásticas. Vejam só o que disse o ex-capitão do Bope e atual comentarista de TV, Rodrigo Pimentel, em debate sobre as operações no Rio promovido na quinta-feira (2/12) pela Folha de S.Paulo. “Muita gente se perguntou por que a polícia não deu tiro em todo mundo e matou aqueles 200. Confesso que era o meu desejo. Não tenho a menor vergonha de dizer que gostaria que eles morressem. Era uma situação de beligerância, de guerra”.
Pois é, ele não tem “a menor vergonha de dizer”. Ninguém mais parece ter. Posso ser meio antiquada, mas acho importante ter vergonha. Assim como pudor. Especialmente quando se tem uma expressão pública, o que sempre aumenta a responsabilidade. Capitão Pimentel, como é conhecido o autor do comentário, é tido como a versão encarnada do personagem da ficção Capitão Nascimento. É também um dos autores dos dois volumes do “Elite da Tropa”, livros nos quais se basearam os filmes. Ele costuma explicar que Nascimento é um personagem totalmente fictício, construído a partir de histórias vividas por ele e por outros colegas do Bope.
Aqui há outro capítulo dos mais interessantes sobre a intersecção entre ficção e vida real. Neste mesmo debate, participaram também o cineasta José Padilha, diretor de Tropa de Elite 1 e 2, o antropólogo Luiz Eduardo Soares, ex-coordenador de Segurança do Estado do Rio e coautor dos livros “Elite da Tropa”, e Marcelo Freixo, segundo deputado mais votado do Rio no qual foi inspirado o personagem do parlamentar Diogo Fraga, central no segundo filme. Os três estão entre as principais vozes críticas às operações no Rio e ao que Soares chegou a chamar em seu blog de “pastiche da mídia”.
Não perdem a oportunidade de lembrar que aquilo a que assistimos pela tela das TVs não é uma mera luta de mocinhos contra bandidos nem vai resolver o problema da criminalidade no Rio. E que, sim, a maioria dos policiais continua sendo corrupta e a situação só chegou a esse ponto por causa disso. E que não, não é o tráfico o maior problema hoje, mas as milícias compostas por policiais, bombeiros e militares, pelo Estado portanto, que criaram hoje um modelo de negócio mais eficiente, variado e adaptado ao momento histórico. E que não, as Forças Armadas não devem continuar nas favelas. E sim fazer o seu trabalho determinado pela Constituição, como impedir que as armas sejam contrabandeadas para dentro das fronteiras do Brasil e alcancem os morros.
Entre os méritos de Tropa de Elite 1 e 2 está o de mostrar o que muita gente parecia ter esquecido: a existência de policiais bons e honestos que arriscam a sua vida por um péssimo salário. Mostrou também que estes policiais bons e honestos constituem uma minoria no conjunto da força policial do Rio. A maioria está implicada, por parceria ou por omissão, como não se cansa de dizer Soares, em todas as modalidades de crime. Tropa 1 e 2 mostrou, portanto, que o mal está nos dois lados, na polícia e no tráfico. E apontou a necessidade urgente de distinguir a polícia do crime – hoje indistinguíveis.
Mas, quando Tropa de Elite vira Tropa de Elite em 3 D, a história é outra: a polícia é o bem, os bandidos são o mal e, como bem e mal, mocinhos e bandidos, estão em lados opostos e bem delimitados. Ao anular as diferenças entre o bom policial, uma minoria que precisa ser identificada e reconhecida, e o mau policial, a maioria que também precisa ser identificada e reconhecida, a opinião pública passa a tratar todos como mocinhos. Depois há de sair explicando como boa parte dos traficantes conseguiu fugir ou por que é necessário proibir os heróis de subir os morros com mochilas para evitar que saqueiem as casas e os bolsos dos moradores. Efeitos colaterais da simplificação grosseira da realidade.
A vida real não cabe no preto e no branco. Algo de cinza sempre vaza pelas margens. Neste sentido é que acho importante, além de todas as outras perguntas, tentar entender como Tropa de Elite – o duplo fenômeno cinematográfico – acabou emprestando um suporte simbólico às operações do Rio. Não exatamente por aquilo que disse, mas pela forma como foi decodificado e reelaborado pela população. Ou, dito de outra forma, sempre vale a pena pensar sobre a verdade da ficção e a falsificação do real.
É bem significativo que os criadores do espetáculo mais importante da década – e talvez da história do cinema brasileiro – sejam aqueles que tentam lembrar a toda hora em debates, entrevistas e artigos que o que assistimos na vida real não é espetáculo. Mas os criadores não têm mais domínio da criatura, que na boca do povo, dos políticos e de parte da imprensa vira o que cada um quer ou precisa. Uma pena que as zonas cinzentas de Tropa de Elite 1 e 2 – muitas e ricas – tenham sido deixadas de lado em favor do preto e do branco, sempre mais fácil. E também mais longe das verdades todas.
Por coincidência, enquanto escrevo esta coluna há um aniversário de criança no salão de festas do prédio que dá fundos para o meu. Da janela do meu quarto vejo meninos e meninas, acompanhadas por suas mães e babás, pulando loucamente ao som de: “Tropa de Elite, osso duro de roer/ Pega um, pega geral, e também vai pegar você/ Tropa de Elite, osso duro de roer/ Pega um, pega geral, e também vai pegar você”.
Pegou?
(Publicado na Revista Época em 06/12/2010)