Um GPS chamado Sophia Loren

Ou como descobri que meu destino era um ovo de cristal azul

Eu nunca tinha usado um GPS até minha última viagem, neste mês de maio. Antes, tudo o que eu sabia desse aparelho é que eles tinham arruinado meus deslocamentos de táxi, com aquela voz, em geral feminina e rouca, ordenando que o motorista dobre à esquerda ou à direita ou siga em frente ou dê a volta de imediato. Eu, que sempre gostei de me perder, era instada a me achar, mesmo sem dirigir. Desta vez, porém, a viagem de trabalho exigia muitos endereços em país estrangeiro. E alugamos uma dessas bússolas guiadas por satélite para orientar-nos pelas ruas da Itália onde, como disse uma amiga, “as regras de trânsito são uma questão de opinião”.

Mantive a voz feminina programada por um viajante anterior porque a achei parecida com a da Sophia Loren dos filmes. E, por muito tempo, considerei Sophia Loren “la donna più bella del mundo”. De súbito, porém, me tornei dependente da minha Sophia de ângulos retos e fabricação chinesa. Sentia-me incapaz de rodar um quilômetro sem que ela me dissesse para onde ir. Logo, tive ganas de andar com ela no bolso para me carregar também quando caminhava a pé. Era tranquilizador alguém com uma voz tão bem modulada me dizer para onde ir… Até então, mesmo na infância, raramente eu desfrutara das alegrias da obediência.

Passei a conversar com Sophia como se fosse uma amiga de confidências com quem desenvolvi uma gratidão desmedida e até mesmo um certo afeto. Nós, brasileiros, com a cordialidade de que falava Sérgio Buarque de Holanda, queremos ser amados mesmo em breves encontros, uma cultura que se confronta com quase todas as outras, muito mais pragmáticas e menos dependentes do olhar alheio – ou, ao menos, dependentes de outra forma.

Sophia deixava-me defronte ao endereço, com sua precisão de computador, e avisava-me de que havia chegado ao meu destino. Esta frase – “depois de dez metros, você alcançará o seu destino” – até o fim de nossa breve, mas intensa relação, produziu um triplo mortal carpado no meu peito, seguido por uma sensação um tanto aflitiva. Afinal, não é pouca coisa chegar ao próprio destino. Algo como: “Então, depois de tanta luta, era isso? Rua marquês de fulano, número tal”?

Como Sophia conhecia todos os mapas, todos os entroncamentos, todos os códigos de trânsito, ela me localizava, mas eu jamais sabia onde estava. Eu atingia o objetivo sem ter a menor ideia de como, já que ouvia e obedecia mais do que olhava. Nunca tive tão pouca noção do meu paradeiro, porque não precisava procurar por nada. Desde criança ensinada a não confiar em estranhos, entreguei-me por completo à voz desconhecida. Se um dia os computadores dominarem o mundo, como nos filmes de ficção científica, descobri que estarei rendida. De mim, não esperem resistência.

Sophia acabou me levando a lugares onde fui obrigada a pensar muito sobre o destino – o meu e o dos outros. Em um deles, penetrei em um edifício antigo e encontrei-me no apartamento térreo mais estranho que já vi. De fato, ele ficava nos fundos do prédio, aberto para as janelas bisbilhoteiras dos vizinhos e para um quintal com árvores. O apartamento era como se fosse uma casa. E, como casa, era mais parecido com uma caverna com diferentes câmaras e níveis, onde toda a vida de seu enigmático morador se desenrolava pelos quadros e fotografias que cobriam as paredes e pelas recordações de viagens que se acumulavam sobre móveis que fariam bonito em qualquer antiquário de respeito. A melhor forma de descrever essa casa é dizendo que ela se parecia com a de Bilbo Bolseiro, na versão para o cinema da obra fantástica de Tolkien, “O Senhor dos Anéis”.

Para ir ao banheiro, eu descobriria logo em seguida, era preciso abrir a porta de um armário, decorada a mão em delicada marchetaria. Dentro do armário, depois de uma passagem secreta, havia um vaso, uma banheira, uma pia e até algumas cuecas recém lavadas do vetusto senhor que me esperava do lado de fora.

Meu entrevistado e dono da casa era um cientista um tanto lendário por seus feitos em determinada área, que ali vivia sozinho com seu cachorro Jack desde a morte da mulher, anos atrás. Passado dos 80 anos, ele sentia saudade daquela mulher bonita que nos espiava dos retratos, mas não sentia-se sozinho, como me garantiu, porque tinha uma vida plena de memórias e de fatos presentes. Jack, ao contrário, chegara à casa poucos dias antes da doença de sua dona e, sem atenção ou GPS, desenvolvera uma neurose que o fazia buscar, com sofreguidão e de forma ininterrupta, o próprio rabo. Só interrompia sua trajetória circular quando eu lhe coçava a barriga, entre uma pergunta e outra.

Entre mim e meu entrevistado estabeleceu-se, de pronto, uma empatia profunda. E logo ficou claro que poderíamos conversar por dias inteiros sem nos cansarmos um do outro. Mas eu tinha outra entrevista marcada para o final daquela tarde e fui obrigada a deixar ele e Jack, assim como a caverna de maravilhas habitada com alegre desmazelo por aquele par de solteiros de idade avançada. Antes de minha partida, porém, o cientista pescou de uma das prateleiras um ovo de cristal azulado, decorado com elaborados desenhos em dourado, e me alcançou como um presente: “Para você, Eliane (ele pronunciava “Elein”), uma recordação da minha mulher”.

A mulher do cientista tinha um nome de joia. E o presente era também uma joia inspirada em um daqueles famosos ovos que, de 1885 a 1917, o joalheiro Peter Carl Fabergé criou para os czares da Rússia. Até a revolução, quando os bolcheviques nacionalizaram a “Casa Fabergé”, e a família fugiu para a Suíça, onde um dos mais célebres joalheiros do mundo acabou morrendo.

Os ovos imperiais eram feitos com uma combinação de esmalte, ouro, platina e pedras preciosas. Ao serem abertos, revelavam uma surpresa, como a miniatura da coroa imperial ou da carruagem de Catarina, a Grande. Deram grandes alegrias aos czares da Rússia antes de o último Románov ser executado com a família. Muitos ovos acabaram mais tarde sendo vendidos por Stálin para obter moeda estrangeira. E, hoje, os que restaram em museus e coleções particulares valem milhões.

O meu ovo é uma réplica em cristal azul. E não há como abri-lo. O cristal é tão fino que, de cada ângulo, sou capaz de enxergar todos os outros. Portanto, não há nada escondido ali. Mas, desde que o segurei com mãos trêmulas e indagando muitas vezes se o cientista tinha mesmo certeza de querer me dar algo tão precioso – e precioso de tantas maneiras diferentes –, não consigo parar de pensar no destino intrincado traçado pelo ovo. E também passei a ser assediada pela ideia inquietante de que, apesar da sua fragilidade de cristal, o ovo sobreviverá a mim, como sobreviveu à antiga dona.

Quem era o ourives que o criou? Teria ele um capote para o gélido inverno russo ou seria como o personagem de Gógol? Por que a mulher bonita com nome de joia o escolheu entre tantos outros? Que momentos da vida dessa mulher ele testemunhou naquelas décadas todas? O que observou no parapeito daquela casa de hobbit onde tanto aconteceu? E a pergunta que ecoava sem parar entre as paredes castigadas do meu crânio: por que caminhos invisíveis esse ovo de cristal azul acabou na minha escrivaninha-xerife?

Olho para ele neste exato momento, enquanto escrevo, e me parece que vive. Tento imaginar o que o ovo pensa da mudança de geografia, tão repentina quanto drástica. E da companhia tão pouco convencional. Ele, que testemunhava a passagem da vida humana entre obras de arte, agora é obrigado a conviver, entre outros companheiros, com uma réplica de Scratch, o esquilo da animação “A Era do Gelo”, uma estatueta africana em bronze, um Obelix de ossos largos carregando seu menir, outra estatueta africana, esta de madeira, uma miniatura do King Kong, uma carranca do São Francisco, um miniglobo, uma peteca e minha coleção de insetos de borracha. Penso que meu ovo deve estar querendo muito um GPS nesse momento. Mas não tem. É, a vida não é fácil, digo a ele, porque nada mais filosófico me ocorre.

Do ovo sei muito pouco. Apenas que foi comprado pela mulher bonita com nome de joia em uma viagem solitária a São Petersburgo. E quero interpretar como um chamado para que eu parta de imediato para São Petersburgo, uma cidade que me fascina desde sempre, mas que, nos últimos tempos, tem me acenado com insistência de vários modos. E, agora, esse ovo misterioso, com sua procedência gravada na parte inferior. Fosse hoje, ele seria um ovo de São Petersburgo da China, feito em série por operários semiescravos. Como é antigo, é um ovo de São Petersburgo da Rússia, feito a mão por um ourives, em uma joalheria. Lá fora, fantasio, caía neve enquanto o homem, corcunda pela posição ingrata, criava algo que o superasse.

Se São Petersburgo é uma das cidades mais belas do mundo, é também uma com origem das mais trágicas. Em 1703, Pedro, o Grande, decidiu que teria uma nova capital imperial. Por razões estratégicas, escolheu como berço uma região recém tomada do rei sueco, um de seus muitos inimigos. De fato, a escolha revelava bastante da personalidade desse imperador mítico, porque o lugar era pouco mais do que um charco que permanecia congelado por cinco meses do ano e ameaçado por inundações no restante do tempo.

Mas Pedro era Pedro – e era grande. E queria provar que um homem realmente grande era capaz de dominar a natureza – assim como seus inimigos. Para cumprir essa profecia humana, centenas de milhares de servos russos e de prisioneiros de guerra suecos foram condenados a derrubar florestas, nivelar montanhas, drenar pântanos. Sem pás, muitos deles cavavam com as próprias mãos e carregavam a terra na camisa.
Historiadores russos costumam dizer que nenhuma batalha travada no mundo matou mais homens do que a construção de São Petersburgo – um belíssimo cemitério. E, mais de dois séculos depois, a cidade sepultaria outras centenas de milhares de pessoas ao ficar sob cerco nazista por 900 dias na II Guerra Mundial, quando era chamada de Leningrado, em homenagem a Lênin.

Aleksandr Púchkin, o pai da literatura russa moderna, fez para ela um poema no qual transforma a épica enchente que cobriu São Petersburgo em 1824 numa vingança da natureza contra a pretensão do czar de arrancar uma cidade do mar. Na história de Púchkin há um escrevente chamado Evguéni que amaldiçoa o desejo do imperador. Assim que o faz, passa a ser perseguido pelo Cavaleiro de Bronze – estátua de Pedro, o Grande, que até hoje domina a cidade. O cavaleiro salta de seu pedestal e persegue o pobre homem pelas ruas de São Petersburgo até levá-lo à loucura.

Tudo isso, de certa forma, o ovo me contou, sob a indiferença entediada de seu companheiro da direita, um boneco do Alien, aquele que no cinema já foi “o oitavo passageiro”, e com certeza protagonizou massacres mais ferozes, com seus temíveis dentes e sua saliva ácida, em sistemas solares ainda desconhecidos. Boa parte do poder letal do Alien mal-humorado que mora no meu escritório deve-se ao fato de que ele é um grande babão. Mas, aqui, mantenho-o de boca fechada.

À esquerda, a narrativa do ovo é acompanhada pelo olhar meio abobalhado de um inocente pássaro Dodô, das Ilhas Maurício, no leste da África, que mantenho vivo em minha escrivaninha apesar de sua extinção, em 1681. Dizimados por culpa de sua boa índole, os pássaros dodôs e sua falta tanto de medo quanto de competência para voar, uma combinação catastrófica, me comovem às lágrimas. E lembram-me de que devo ser mais atenta à natureza pragmática dos humanos próximos, se não quiser ter minha alma cozida e extinta.

As viagens, como sabemos, começam muito antes de embarcarmos. Às vezes, inclusive, a melhor parte delas se passa antes. E a minha a São Petersburgo iniciou-se ainda no último verão, culminando agora com esse ovo azulado que deu uma distinção aristocrática à minha escrivaninha. E, como os leitores mais fiéis podem ter notado, alterou um pouco o estilo da minha escrita. Não se pode colocar um ovo dessa envergadura moral no parapeito do nosso mundo e seguir escrevendo da mesma maneira.

Este não foi, porém, o meu único contato com os russos nessa viagem de trabalho para a Itália. Depois que meu GPS me deixou no aeroporto, os russos estavam por todos os lados. Não exatamente os russos, mas um certo tipo, que pode ser chamado de “homens russos com enfeites de ouro”. É um tipo característico, que se encontra nos aeroportos da Europa, e corresponde ao brasileiro que fala alto, demasiado alto, não respeita filas nem o próximo e grita a todo momento: “Não aguento mais ver museus e coisas velhas”!

Digo isso porque sou brasileira e não me comporto assim, do mesmo modo que vários outros brasileiros, e seria injusto concluir que todos os russos são “homens russos com enfeites de ouro”. Mas estes são os russos que, digamos, despontam. Caracterizam-se pelas muitas correntes, pulseiras e anéis de ouro; por carregarem sacolas, muitas sacolas de lojas das grandes grifes do free shop; e por falarem ainda mais alto que os italianos e os brasileiros, o que até conhecê-los eu considerava uma façanha impossível. Alguns deles têm a cabeça raspada e sempre me levam a fantasias pouco tranquilizadoras com a máfia russa.

Por causa delas, eu, que nem sempre sou uma flor, evito atritos com eles, mesmo quando recebo os perdigotos russos de seus gritos na minha cara. E não soltei nem mesmo um “Excuse me, sir, come on!” quando um grupo deles trancou o trem que levava ao portão de embarque por quase cinco minutos, apenas porque aguardavam o restante da trupe que devia estar comprando algo de ouro em alguma loja cara e não queriam esperar o próximo carro.

Entre as mãos, eu carregava meu ovo de cristal azul, com mais cuidado do que teria com um bebê. E ele me provava que há russos bem educados, com pensamentos refinados e vozes moduladas me esperando em São Petersburgo. Algumas horas antes eu havia me despedido da minha Sophia Loren – e ela de mim – de uma forma bastante perturbadora.

Sophia, com sua precisão de máquina, havia me deixado em todos os meus destinos sem sobressaltos. E eu já passara a acreditar que a vida era docemente controlável, mesmo em terra estrangeira. Mas, no último endereço, Sophia se perdeu. Sim, Sophia, a exata e previsível Sophia, não se achou. De repente, me descobri sem bússola e, porque não tinha prestado atenção em nenhum dos caminhos anteriores, sem referências.

Encontrava-me nos arredores rurais de uma pequena cidade e, atrasada por causa da falha de Sophia, que costumava calcular até mesmo os minutos entre o deslocamento de um ponto a outro, eu perguntava com sofreguidão a toda pessoa que encontrava. Perguntava pelo meu destino. E ninguém o conhecia. Nem mesmo tinham ouvido falar. Meu destino, ao que parecia, era lugar nenhum.

Finalmente, decidi que, naquela situação, só me restava pedir socorro à Cruz Vermelha. No escritório da organização humanitária, ao informar o nome da pessoa que procurava, pensando que talvez pudessem conhecê-la, deparei-me com sinais de entendimento. Uma moça simpática me levou até a calçada e apontou para o belo prédio antigo e restaurado em frente, cercado por um jardim de luxúria e silêncios. E lá me esperava uma mulher loira e pequena, com olhos de um verde aquoso que se confundia com as árvores.
Ela tinha marcado a entrevista em um “hospice”. Para quem não conhece, hospice é um lugar onde aqueles que têm uma doença além da possibilidade de cura são acolhidos para serem cuidados sem a obstinação dos exames e das intervenções desnecessárias, que apenas encolhem a qualidade de vida – e sem a arrogância dos profissionais de saúde com dificuldades para aceitar que nem sempre podem curar.

Hospice é um lugar muito difundido na Europa – e quase nada aqui – onde se compreende que a vida é vida – até o fim. Ou, como li em um caderno logo na entrada, na frase deixada por alguém que lá esteve: “Aqui eu descobri que não é possível controlar o rumo dos ventos, mas encontrei pessoas que me ensinaram a mover as velas”. Li e de imediato pensei no meu GPS.

A pequena mulher com olhos de árvore complementou, para que eu entendesse bem onde estava. “Aqui compreendemos que não podemos dar dias à vida, mas podemos dar vida aos dias”. Ao falhar, Sophia, meu GPS alugado, havia me ensinado mais sobre destinos do que em todos os seus acertos anteriores.

Deixei o norte da Itália um dia antes do terremoto. De novo sem GPS, mais uma vez perdida, eu contemplo o ovo de cristal azul que agora é meu e me pergunto: “Quem será a próxima mulher que vai segurá-lo entre as mãos, indagando-se por onde andou e que desejos carregou”?

Espero que seja cedo para respostas. Planejo viajar pelas ruas de São Petersburgo, onde meu ovo azul nasceu sem partir-se, antes que a resposta me alcance. Sem nenhum GPS, para não correr o risco de que se chame Anna Kariênina. Já conheço o único destino que importa. E não tenho pressa em alcançá-lo.

(Publicado na Revista Época em 21/05/2012)