O que a Lisbeth Salander de Hollywood não dirá sobre nós
Assisti na semana passada ao filme baseado no primeiro livro da trilogia Millennium, do sueco Stieg Larsson: “Os homens que não amavam as mulheres”. Como milhões de pessoas no mundo inteiro, fui capturada por Lisbeth Salander, a perturbadora (e perturbada) hacker que desvenda nossa sombria humanidade (e alguns crimes) em parceria com o jornalista idealista Mikael Blomkvist. Sou fascinada por literatura policial e li os três volumes quase de uma vez só. O autor, um jornalista que morreu de enfarte antes de ficar milionário, conseguiu criar algo que poderia ser considerado um dos primeiros romances policiais pós-modernos. Ao começar a assistir ao filme, porém, tive um estranhamento. E foi um ótimo estranhamento.
O filme, falado em sueco, é uma produção conjunta da Suécia, Dinamarca e Alemanha. Logo de cara, eu me surpreendi com o ator que interpreta Blomkvist. O ator Michael Nyqvist é charmoso, mas tem cicatrizes de acne no rosto e barriguinha de sedentário. Em seguida, estranhei as rugas de Erika Berger, a sócia (e amante) de Blomkvist na pequena e combativa revista Millennium. Na sequência, me espantei com a acanhada redação da revista. Eu imaginava um conjunto pequeno, mas estiloso e muito moderno. E assim segui, de estranhamento em estranhamento. À primeira vista, só aprovei Noomi Rapace, a atriz que interpreta Lisbeth Salander, muito jovem no livro e no filme. E bem mais bonita no filme do que sua descrição no livro.
Até que compreendi (por sorte no início do filme). Era isso! Enquanto lia os livros, eu havia imaginado os personagens. Normal, nunca será como a gente imagina. A questão é que minha imaginação está condicionada pelos blockbusters de Hollywood. No livro, fica claro que Blomkvist está fora de forma. Que a revista luta com dificuldades financeiras. Que Erika é uma mulher que passou dos 40. E assim por diante. Mas eu imaginava um filme de Hollywood, onde os heróis têm barriga tanquinho, as mulheres chegam aos 60 com carinha de 30 e a pobreza tem estilo. Até as marcas, quando existem, são estetizadas.
Vejo muitos filmes que não atendem à estética dos blockbusters de Hollywood, óbvio. E até alguns de Hollywood que não se curvam ao modelo vigente. Mas são filmes que versam sobre outros temas. Quando vou assistir a um filme francês, alemão, japonês, coreano, iraniano, israelense, brasileiro etc, sei que vou ver gente normal, gente com marcas. Mas uma história policial com vocação de blockbuster, hoje, é quase sempre produzida por Hollywood. Neste escaninho do filme policial, de suspense, de ação, as imagens já vêm à minha cabeça no formato Hollywood.
Foi assustador perceber o quanto esta estética condiciona a minha imaginação, está entranhada no meu cérebro, apesar do meu constante questionamento. Eu já tinha um filme de Hollywood na minha cabeça quando fui assistir a um filme sueco, baseado num livro que se passa na Suécia, escritor por um autor sueco, com personagens que são cidadãos suecos.
Desconfio que o filme não fez tanto sucesso por aqui por causa desse estranhamento. Achei o filme bastante bom. Acompanho agora, nos sites e blogs especializados, a expectativa pela produção hollywoodiana da trilogia, com comentários como: “agora sim, a obra terá a adaptação que merece” ou “a trilogia está salva”. Para o papel de Blomkvist, especula-se com os nomes de Brad Pitt e George Clooney, entre outros. Agora sim, teremos um jornalista mais sedentário do que gostaria, fumante, passado dos 40, sem marcas e sem barriga, com muitos músculos e todos no lugar. Para encarnar Lisbeth Salander, uma garota de 20 e poucos anos com corpo de 12, esquisita, desajustada, muito longe de qualquer padrão de beleza, já foram cogitados os nomes de Kristen Stewart, Natalie Portman, Anne Hattaway, Carey Mulligan e até Scarlett Johannsson, entre outras. Com certeza, quando for lançada, a versão hollywoodiana fará muito mais sucesso que a sueca. A maioria de nós terá a sensação de que finalmente está tudo no seu lugar.
Mas a verdade é que está tudo fora do seu lugar – e não da forma que nos leva a algum lugar, mas da forma que nos deixa na mesma.
A estética que impera em Hollywood tem o mesmo sentido da que domina as novelas brasileiras e as revistas de celebridades. Vivemos em um país de gente cheia de cáries e falhas nos dentes ainda hoje. Mesmo quem cuida bem da sua boca – e tem dinheiro para bons dentistas – não envelhece sem ver seus dentes se gastarem e amarelarem. Mas atores e atrizes, jornalistas e apresentadores, todos que aparecem na TV, exibem uma dentadura de comercial de creme dental. Minha dentista me conta que as pessoas aparecem no consultório com capas de revista na mão, dizendo: “Eu quero dentes iguais a estes”.
Fico imaginando um historiador, no futuro, revirando os arquivos da imprensa do início do século XXI. Ele vai ler uma tonelada de páginas, impressas e virtuais, sobre celulite, por exemplo. Mas vai ter muita dificuldade para descobrir por que a celulite era uma questão para as mulheres desta época, já que não vai encontrar uma única criatura do sexo feminino com celulite. Quem aparece é linda, magra e mantém o corpinho liso, “sem o famoso efeito casca de laranja”, à custa de um pouco de malhação e alimentação saudável. Algumas nem gostam de fazer ginástica, é puro dom da natureza. O historiador do futuro vai estar diante de um enigma digno da esfinge do mito de Édipo: a celulite é uma grande questão para a mulher do início do século, mas nenhuma mulher tem celulite.
As celulites só aparecem quando se trata de “denunciar” uma celebridade que foi flagrada por um paparazzi em estado natural. Neste caso, para ser ridicularizada. Ahá, te peguei, você é igual a mim. Vingança. De novo, um pesquisador que analisar nossa época vai ter problemas, porque não vai saber qual é a imagem verdadeira: a que passou pelo photoshop e está em todas as capas – ou esta, que se apresenta como um flagrante.
Os documentos que deveriam ser testemunhos do nosso tempo estão quase todos “photoshopados” desde que as fotografias se tornaram digitais e passaram a ser manipuladas, retocadas para eliminar marcas e imperfeições ou alteradas para imprimir determinado efeito. “Tratadas”, no eufemismo do jargão. Até as fotos de políticos, empresários e jogadores de futebol em geral passam pelo photoshop, para melhorias aqui e ali. Embora existam uns poucos órgãos da mídia que resistem, a maioria se rendeu aos retoques da realidade.
Basta conversar com colegas em diferentes redações – e não apenas nas de revistas de celebridades – para descobrir que o tamanho da foto e o espaço do personagem na matéria são definidos cada vez mais em função de sua beleza e juventude. Para um feio ou velho virar capa, em boa parte das publicações ele tem de ter feito um sucesso estrondoso. Ou ser tão famoso ou tão rico que se tornou bonito ou sem idade. E os bonitos e jovens ficam mais bonitos e jovens ainda por obra do photoshop.
Alguns jornalistas contam que chegam das entrevistas e o editor lhes pergunta: “Mas fulana é bonita, rende abertura de matéria ou capa?”. Ou, depois de conferir a foto: “É muito feia, não dá para botar na matéria. Não resolve nem com photoshop!”. E, se não for bonita, “não vende”. Em algumas redações, criou-se inclusive a exigência de que o repórter faça uma foto do entrevistado com seu celular, para que o editor possa avaliar se está dentro dos padrões de beleza e juventude exigidos. Alguns desses colegas entram em crise quando percebem que já introjetaram o modelo e começam filtrar os entrevistados também pela aparência – e não apenas pela relevância do que têm a dizer.
Estou falando agora não mais de Hollywood ou de telenovelas, mas de jornalismo, cuja busca da verdade é um dos pilares mais fundamentais. E poucas coisas podem ser mais verdadeiras – ou falsas – que a imagem e a escolha da imagem. Tive a sorte de nunca ter sido pressionada a fazer esse tipo de escolha – e a serenidade de saber que, se fosse, não aceitaria.
Tudo isso revela alguns caminhos por onde um tipo de olhar vai impregnando nosso modo de ver o mundo, aos outros e a nós mesmos. A cada dia nós vamos às ruas e enxergamos a realidade e as pessoas como elas são. A cada manhã nos olhamos no espelho e encaramos nossas marcas. Mas cada vez mais acreditamos e esperamos que exista uma outra imagem do mundo – e uma outra imagem de nós mesmos. Uma que não tem marcas, não engorda e não envelhece. E começamos a acreditar que esta é a imagem mais verdadeira.
Sofremos não pelo que somos, mas pelo que deveríamos ser e nunca seremos, por mais caros que sejam os cremes, mais sofisticadas e invasivas as cirurgias plásticas. Mesmo assim, passamos a medir nossa vida – ou nosso sucesso na vida – por essas duas imagens que jamais se tornarão uma. Passamos a acreditar que o que deveríamos ser – e não o que somos – é nossa versão mais verdadeira. Emprestamos verdade à imagem “photoshopada” dos homens e mulheres das capas das revistas. E falsidade ao nosso rosto no espelho. Como não inventaram um photoshop da vida, sofremos. E nos vemos sempre aquém do melhor de nós mesmos.
O que nem todos percebem é que, por mais que a indústria do entretenimento, a publicidade e, em alguns casos, também o mau jornalismo, tentem nos convencer do contrário, só há um jeito de não ter marcas: não viver. O vivido se inscreve em nós pelas marcas, as físicas e as psíquicas. Elas são o inventário de nossa vida. A prova de que vivemos.
Por isso temo pela versão de Hollywood da trilogia Millennium. Não tenho a menor dúvida de que será bem produzida. Mas, talvez, bem demais. A curta obra de Stieg Larsson conquistou o sucesso que tem porque o escritor criou personagens com muitas marcas da vida. Que ecoam em nós porque nos perturbam, porque nos reconhecemos neles. A mais jovem desses personagens, Lisbeth Salander, tem tantas marcas psíquicas na alma, que precisou tatuar no corpo marcas com as quais pudesse se identificar e, então, pertencer mais a si mesma. Ela, que foi violada e arrancada de si mesma de tantas maneiras, a ponto de não ter nem a tutela da própria vida.
Assim, é sempre possível apaziguar a alma à espera da próxima redenção de Hollywood. É como tantos de nós têm vencido os dias. Mas, se quisermos ter uma vida de photoshop, só há um jeito (e não é o bisturi): morrer ao nascer.
(Publicado na Revista Época em 31/05/2010)