‘O centro do Brasil é a Amazônia’, afirma a jornalista Eliane Brum

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Rosiel Mendonça
rosiel@acritica.com
A Crítica
05/10/2017 às 20:15 – Atualizado em 06/10/2017 às 00:10

Escritora gaúcha lança em Manaus a nova edição do livro “O olho da rua”, com dez grandes reportagens

A escuta é a principal ferramenta usada por Eliane Brum em suas reportagens. “Em geral bato na porta das pessoas e, sempre que possível, não faço a primeira pergunta”, costuma dizer a jornalista e documentarista gaúcha. O resultado desse exercício pode ser conferido no livro “O olho da rua: uma repórter em busca da literatura da vida real”, que ela lança na Banca do Largo São Sebastião nesta sexta-feira, a partir das 18h.

capa olho ruaReeditada pela Arquipélago e ampliada pela autora, a obra reúne dez grandes reportagens feitas ao longo da primeira década deste século, em diferentes lugares do Brasil. A vinda da jornalista para Manaus e a noite de autógrafos são uma iniciativa da agência Amazônia Real, que completa quatro anos de dedicação ao jornalismo independente e investigativo na região.

Este é, aliás, um lugar caro a Eliane, que escreve sobre a Amazônia desde os anos 90. “Desde então, sempre achei difícil falar da Amazônia no singular. Me parece que são muitas as Amazônias, cada uma com a sua singularidade, todas extraordinárias”, comenta. “Nos últimos anos ficou claro que é preciso deslocar o lugar do centro no Brasil. O centro não é Rio-São Paulo-Brasília. O centro é a Amazônia. Por várias razões e porque em tempos de mudança climática causada por ação humana, a floresta se tornou ainda mais estratégica para a própria sobrevivência da nossa espécie e de todas as espécies vivas. E, ainda assim, segue tão ameaçada. Não é preciso ser um especialista para imaginar o que acontecerá com o planeta sem a floresta”.

Apesar de ter feito reportagens em todos os estados da Amazônia Legal, ela admite que conhece apenas uma porção da região, e espera fazer com que seus leitores também descubram sua realidade, sua gente e suas contradições. “Hoje, a floresta é defendida, quase na solidão, pelos mais frágeis: povos indígenas, ribeirinhos, quilombolas e pequenos camponeses. E muitos deles têm sido assassinados por defenderem a floresta. E essa é uma luta que deveria engajar a todos. É por isso que eu sempre volto. Para contar essas histórias de luta e de resistência de uns poucos pela vida de todos”.

Reflexões e posfácio

A nova edição de “O olho da rua” chega quase uma década depois do lançamento da primeira. De lá para cá, com o distanciamento que o tempo permite, Eliane Brum ampliou a sua visão sobre as reportagens publicadas. “Para cada uma delas, faço uma reflexão profunda sobre como foi fazer aquela reportagem: dificuldades, dilemas, descobertas, dores… Acho importante compartilhar os bastidores, o caminho pelo qual se chegou até aquela reportagem e refletir sobre minhas escolhas”, afirma.

Segundo ela, foi nesse ponto que o livro ganhou novas linhas. “Acrescentei algumas reflexões que se tornaram mais claras para mim nos últimos anos, porque tento me manter sempre desacomodada e aprendendo. E há também um posfácio inédito, em que conto os dois grandes impasses recentes que tive com a reportagem e com a palavra escrita e que me marcaram profundamente”.

Três perguntas para Eliane Brum

eliane entrevistaA grande reportagem é o que mantém o viço do jornalismo em tempos um tanto confusos para a profissão?

Ao mesmo tempo que são tempos duros para o jornalismo, que vive sua própria crise dentro da crise maior do país, acredito que o jornalismo nunca foi tão necessário. E espero que a sociedade perceba isso enquanto ainda é tempo. Mas cada vez que uma matéria de jornal se parece com um post no Facebook, o jornalismo desce um degrau a mais rumo à irrelevância. Por isso é tão importante fortalecer o jornalismo independente. Acredito que não há democracia forte sem imprensa forte.

Tenho me dedicado a grandes reportagens nestes últimos quase 20 anos e acho que elas são fundamentais, porque para contar algumas histórias é necessário tempo e dedicação exclusiva. Investigar com responsabilidade é um trabalho árduo e demorado. Não há jornal de fato grande, com relevância, se não investir em grandes reportagens. Mas também acredito muito na reportagem do dia a dia, que fiz por mais de dez anos e considero importantíssima, porque é ela que documenta a história cotidiana. E acho que é possível contar grandes histórias no jornalismo diário, desde que o repórter esteja disposto a olhar para ver e a escutar o que a realidade conta. Algumas das que considero minhas melhores reportagens foram feitas no jornalismo diário.

Hoje, o que também me angustia é que, com a crise da imprensa, tantas histórias estejam deixando de ser contadas, seja em grandes reportagens, seja nas pequenas grandes histórias do cotidiano. E, assim, várias porções de Brasis jamais serão contadas, estão perdidas para sempre. E isso impacta os destino do país e empobrece a vida de todos. Parte do papel da imprensa é produzir memória sobre a história do hoje, a história em movimento. E, infelizmente, por tantas razões, há hoje uma grande produção de desmemória. É fundamental resistir aos apagamentos e cada jornalista tem um papel intransferível neste desafio.

Você diz que o audiovisual é uma forma de escrever com imagens. Tem outro projeto em vista depois de “Laerte-se” [documentário sobre a cartunista Laerte]?

Acabamos de lançar um documentário muito singelo, que está disponível no YouTube, chamado: “Eu+1: uma jornada de saúde mental na Amazônia”. Numa das minhas viagens à região impactada pela hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, no Pará, hoje minha principal área de atuação na Amazônia, escutei um ribeirinho chamado João Pereira da Silva, que havia sido expulso da sua ilha e teve sua casa incendiada pela Norte Energia, a empresa concessionária de Belo Monte. Ao saber que perdia tudo e que não tinha mais forças para reconstruir o que perdera, suas pernas travaram, e ele perdeu a fala no escritório da empresa. Depois se descobriria que ele teve um AVC. Quando conseguiu recuperar a voz e parte do movimento das pernas, ele decidiu se matar em sacrifício na ilha queimada. Mas foi impedido pela família. Perguntei a ele o porquê da decisão de se sacrificar. E ele disse: “Quero que o mundo saiba que Belo Monte me matou”. Quando o escutei, percebi que para ele e para tantos era preciso de uma outra escuta, diferente da escuta jornalística, porque essas pessoas estavam completamente traumatizadas e não conseguiriam reinventar a vida e mesmo seguir lutando por justiça sem tratamento.

Voltei para São Paulo e fui bater em várias portas de psicanalistas que admirava e de entidades psicanalíticas. E se iniciou um grupo, coordenado por Ilana Katz e Christian Dunker, psicanalistas ligados à Universidade de São Paulo (USP), e por mim. Através de uma vaquinha na internet, por meio da plataforma Catarse, conseguimos realizar três viagens e dois cursos de preparação para levar 14 profissionais de saúde mental voluntários para Altamira, em janeiro deste ano. Eles ficaram lá por duas semanas e realizaram 171 sessões com ribeirinhos expulsos em situação de sofrimento profundo. Disso resultará também um documento sobre o sofrimento da população ribeirinha atingida que ficará disponível na internet. O documentário “Eu+1” registra essa experiência a partir da percepção da equipe, para que quem sabe ela inspire outros projetos e outras reflexões.

Que outras histórias gostaria de contar?

Eu sempre tenho muitos projetos. E um dos mais queridos é um documentário sobre uma das histórias de amor mais bonitas que vi na vida. Não amor romântico, mas amor que transcende as definições. Mas ainda vou demorar para realizar esse projeto, porque preciso me afastar e ficar em paz para realizá-lo. E não me parece que teremos paz tão cedo neste País.