A viagem de duas bolivianas com doença de Chagas para salvar suas vidas

Cristina e Maria estão entre os milhares de camponeses da região de Narciso Campero, na Bolívia, que convivem com o “Vinchuca”, o barbeiro transmissor da doença

ELIANE BRUM (TEXTO) E VÂNIA ALVES (FOTOS)
De AIQUILE

NO CORAÇÃO Maria Rodríguez Barrios (à dir.) no quintal da casa de Cristina Salazar López. Elas fizeram uma viagem a Cochabamba em busca de um marca-passo (Foto: Vânia Alves)

NO CORAÇÃO
Maria Rodríguez Barrios (à dir.) no quintal da casa de Cristina Salazar López. Elas fizeram uma viagem a Cochabamba em busca de um marca-passo (Foto: Vânia Alves)

Capítulo 1
No princípio, era um rufar de asas

A Vinchuca sempre esteve lá. Cada homem ou mulher dos vales e morros da Bolívia perguntou aos que vieram antes e obteve a garantia de que ela sempre esteve lá. Não há notícia de um mundo sem Vinchuca. Desde cedo as crianças aprendem a reconhecer o arranhar de suas asas e patas nas paredes de barro antes de atacar. “Soa como as folhas secas do milho ao vento”, dizem Cristina Salazar López e Maria Rodríguez Barrios. “Escutamos e então sabemos que elas estão lá. No escuro. Sobre nossas cabeças. Esperando para cair sobre nossos corpos.”

Quando ouviram a Vinchuca pela primeira vez, Maria e Cristina souberam, por intuição, que seria o som de sua vida. Na porção rica do mundo, a parte a que elas não pertencem, os vampiros da ficção movimentam milhões de dólares na indústria do entretenimento. Ali, nos vales da Bolívia, é como se os vampiros existissem. E milhões é a ordem de grandeza que mede o número de suas vítimas na América Latina.

São muitos os seus nomes. Barbeiro, chupão, bicho-de-parede, cascudo ou fincão. Vinchuca é seu nome em quéchua, a língua falada desde antes dos incas. Significa “deixar-se cair”. A cada noite centenas desses insetos de seis patas e até 3 centímetros de comprimento se alinham sobre o teto de palha e as paredes de barro das casas dos camponeses.

Quando homens, mulheres e crianças adormecem, despregam-se. Aterrissam sobre eles. Enfiam seu ferrão e sugam até seu corpo inchar. Empanturrados de sangue, defecam. Quando suas vítimas se coçam, em um sono agitado pela dor das picadas, o parasita letal que habita suas fezes invade o corpo. Ou as contamina pela boca e pelos olhos. É o Trypanosoma cruzi, identificado pelo sanitarista brasileiro Carlos Chagas na primeira década do século XX.

De cada 100 infectados, 50 desenvolvem a doença. Nestes, lenta e silenciosamente o protozoário vai levando seu hospedeiro ao fim, ao minar coração, esôfago, intestinos e sistema nervoso central. Mais de 10 milhões de pessoas estão infectadas no mundo. E, a cada ano, surgem 40 mil novos casos e cerca de 14 mil doentes morrem.

Cristina, Maria e milhares de camponeses da região de Narciso Campero, província fincada ao sul do departamento de Cochabamba, na Bolívia, vivem, noite após noite, um filme de terror com bem mais de duas horas de duração.

Capítulo 2
Como Maria e Cristina se uniram pelo coração

Os pés de Maria Rodríguez Barrios hesitavam ao entrar no ônibus para Cochabamba. Um avançava, o outro recuava. Ela era quase empurrada. Vestia sua melhor pollera, a saia rodada das cholas (bolivianas de origem indígena), a tradicional blusa de botões, uma trança negra de cada lado da cabeça e o chapéu-coco. No peito, as folhas de coca para proteção. “Eu não vou”, disse à agente dos Médicos Sem Fronteiras (MSF), que a levou até o ônibus. “Você precisa ir. É sua chance de botar o marca-passo e salvar sua vida. Você não quer ver seus filhos crescer?” Maria queria. Mas o medo a fazia retroceder.

Maria tinha pavor de que seu coração parasse de repente, aos 38 anos. Morte súbita como a de seu pai e de sua mãe e de quase todos que conhecia. Maria tinha mais medo da cidade. E do que os homens e mulheres brancos da cidade poderiam fazer com ela. Não por vê-la, mas por ignorá-la.

Em segredo, Maria armou um plano. Assim que o ônibus partisse, ela pediria ao motorista para descer e voltaria para sua aldeia. Ela morreria, mas não seria humilhada na cidade. Segura de sua escolha, virou a cabeça bonita para espiar a passageira que subia as escadas do ônibus, com sua pollera de veludo e um ar de grande dama.

Os olhos líquidos de Maria encontraram a rocha dos olhos de Cristina Salazar López. Seus ouvidos treinados de camponesa puderam adivinhar que o coração de Cristina, aos 47 anos, era doente como o seu. Cristina ajeitou as dobras da saia ampla no banco ao lado de Maria. E disse, em quéchua: “Você não quer viver? Cuidaremos uma da outra”.

E foi assim que Maria e Cristina iniciaram uma longa travessia para salvar o próprio coração. “Por que você tem tanto medo?”, perguntou Cristina. “Porque os da cidade não nos enxergam. Não tenho para onde ir nem tenho dinheiro. E não entendo o castelhano, e eles não entendem o quéchua. Somos cholas. E eles nos desprezam.”

Cristina conhecia esse desprezo. E o usara para esculpir seu rosto de bronze com uma dignidade altiva e uns olhos de pedra viva que não recuavam diante de ninguém. “Escuta. Sou chola também. E como chola fui vereadora. E cheguei a ser prefeita da cidade de Aiquile por três meses. E falaram, e conspiraram, e tentaram me derrubar. E toda vez que tinha sessão me escolhiam para ler porque eu não sabia. Então fui para a escola depois de velha para aprender a ler e fui estudar as leis com um advogado para que não me enganassem. E descobri as fraudes deles, e os denunciei. Com as minhas polleras, as minhas tranças e falando apenas quéchua. Esta é a segunda vez que coloco marca-passo. O primeiro coloquei com dinheiro emprestado e ainda estou pagando. Sou pobre e só consigo comprar meus remédios porque as pessoas conhecem meu sofrimento e me dão dinheiro no ônibus.” E começou a chorar, porque receber esmolas a aviltava.

Cristina terminou seu discurso num soluço. Maria perdeu a vontade de fugir. Ela agora queria ficar. Suas mãos buscaram-se no banco encardido do ônibus. Reconheceram-se pela rugosidade dos dedos de quem trabalhava desde menina e tinha na terra entranhada nas unhas uma segunda pele. E, ao silenciar, perceberam que a primeira das cinco horas de viagem havia passado.

Capítulo 3
A gênese da Vinchuca, segundo Maria e Cristina

BARBEIRO Na foto acima, uma agente dos Médicos Sem Fronteiras explica a doença de Chagas a moradores da região boliviana de Narciso Campero. Na abaix, o barbeiro – ou “Vinchuca”, seu nome em língua quéchua. Na vida dos camponeses, o inseto é como um vam (Foto: Vânia Alves )

BARBEIRO
Na foto acima, uma agente dos Médicos Sem Fronteiras explica a doença de Chagas a moradores da região boliviana de Narciso Campero. Na abaix, o barbeiro – ou “Vinchuca”, seu nome em língua quéchua. Na vida dos camponeses, o inseto é como um vam (Foto: Vânia Alves )

Ao desembarcar em Cochabamba, Maria descobriu que a cidade era como ela tinha imaginado. Entre ruas largas e olhos indiferentes, Cristina não era apenas sua bússola, mas toda a sua geografia. Era sua aldeia e também os morros, as espigas do milho e o rio onde ela se banhava aos domingos. Cristina era o mundo que sabia dela, Maria. E foi assim que à noite elas decidiram dormir na mesma cama para não se perder uma da outra e também de si mesmas, enquanto esperavam a cirurgia que emprestaria um compasso regular a seu coração.

Foi Cristina, sempre ela, quem começou a contar: “Desde que o mundo é mundo a Vinchuca existe. Aprendi a reconhecer o som de suas asas quando se enfileiravam no teto e nas paredes para esperar nosso sono. Um som que podia ser doce, mas que nos apavorava. Nesse tempo não sabíamos que elas nos matavam, mas sofríamos porque chupavam nosso sangue e às vezes nossos rostos e olhos amanheciam inchados. Quando acordávamos com a dor da picada e acendíamos a lamparina, descobríamos que não existiam mais parede nem teto. Havia tantas vinchucas, uma ao lado da outra, que não podíamos mais enxergar o que estava por trás. Então as esmagávamos com nossas mãos e com nossos pés, e as paredes eram pintadas com nosso sangue. Quando as queimávamos, era esse o cheiro. De sangue velho. E pensávamos que não existia em nenhuma parte uma vida sem vinchucas e noites sem que nosso sangue fosse sugado por elas. Então brincávamos de matá-las, sem saber que elas já tinham nos matado”.

Eram mulheres, agora. Mas continuavam assustadas. “Minha mãe nos dizia que uma em cada 100 vinchucas estava envenenada. E por isso as recolhíamos numa panela à noite e as queimávamos em água quente”, disse Maria. “Mas não sabíamos que causava essa doença. Como é mesmo o nome? Acho que Chagas é um nome dado pelos Médicos Sem Fronteiras.”

Cristina estava pregada na infância. “Maria, os dois primeiros que morreram por causa da Vinchuca na minha família foram meus irmãos. Eles nem mesmo chegaram a ficar doentes, ainda eram crianças. Meus irmãos dormiam de boca aberta, e as vinchucas se enfiaram na sua boca até a garganta. Não na mesma noite. Primeiro um, depois o outro. Você sabe como elas são, têm as patas ásperas. Meus irmãos se engasgaram. E morreram com as vinchucas entaladas, sem ar.”

Maria sentiu uma pontada no coração, sem saber se era da doença ou da angústia. Mas ela se envergonhava de pedir para Cristina parar. “Então catamos todas as vinchucas, e abrimos um buraco, e as queimamos, e as enterramos. Meu irmão mais velho disse: ‘Pronto, sepultamos as vinchucas’. Nas primeiras noites havia menos, mas elas foram voltando. Maria, as vinchucas renasceram.” Era uma história de terror, mas Cristina e Maria não sabiam. Para elas, era apenas a vida que conheciam. A vida que as levara até aquela cama na cidade grande.

Capítulo 4
E um dia os homens desembarcaram na vida de Maria Cristina

PRÊMIO Para alcançar os doentes, a equipe dos Médicos Sem Fronteiras precisa atravessar o rio que corta uma aldeia boliviana. No livro Dignidade!, nove escritores contam a experiência humanitária – 28 mil profissionais de saúde em 65 países – que recebeu o Nobel da Paz de 1999 (Foto: Vânia Alves)

PRÊMIO
Para alcançar os doentes, a equipe dos Médicos Sem Fronteiras precisa atravessar o rio que corta uma aldeia boliviana. No livro Dignidade!, nove escritores contam a experiência humanitária – 28 mil profissionais de saúde em 65 países – que recebeu o Nobel da Paz de 1999 (Foto: Vânia Alves)

“Como é seu marido, Maria? É bom ou mau?”, perguntou Cristina, para que a noite virasse logo dia. Não havia vinchucas naquele quarto de cidade. Mas o mal já respirava dentro delas, e era tarde demais para arrancá-lo do corpo. Então era preciso falar. Emendar uma história na outra para ter certeza de que havia uma vida. E, se acontecesse o pior, a existência estava lá, presa na teia das palavras.

“Meu marido é bom, ele não me bate”, respondeu Maria. “E como você o conheceu?”, disse Cristina. “Eu estava pastoreando as ovelhas, e ele surgiu no canto do morro. Ele me ofereceu uns doces, e comemos juntos. Perguntou se eu queria me casar com ele, que não era bonito, era bem feio até. Perguntei a ele: ‘Você vai me tratar bem ou vai me pisar?’. Ele garantiu que nunca bateria em mim. E isso me animou. Então aceitei, e duas semanas depois ele apareceu na minha casa com os pais.”

Cristina queria mais: “E ele te pegou naquela noite mesmo?”. Maria se torceu na cama. Ela tinha vergonha de falar. Mas respondeu, porque Cristina era mais velha e já tinha se alojado na porção sadia de seu coração. “Você sabe, Cristina, que os homens não perdoam, mas ele estava cansado, tinha vindo de longe, e dormiu. Depois, pedi que ele esperasse, e ele esperou. Só nos casamos um ano depois, quando eu já estava grávida da minha filha. E, como a tradição manda, foi ele quem fez o parto.”

Cristina sentou-se na cama: “E como foi?”. Maria queria ficar séria, mas não conseguia. “Você sabe, Cristina, que só é lindo dar à luz porque nos dão caldo de galinha. Por isso as mulheres ficam grávidas a cada ano. Para tomar caldo de galinha pelo menos uma vez.” As duas se abraçaram e riram. E mais riram porque não podiam rir. E por um momento se esqueceram de que eram mães e esposas, e camponesas, e quase mortas.

“E você, Cristina, como se enamorou?”, perguntou Maria, quando o riso estancou e a escuridão trouxe um frio que não vinha de fora. “Eu estava apaixonada por outro. Muito apaixonada. Um curandeiro viu meu futuro nas folhas de coca e disse que eu não me casaria com o homem que amava, mas com um muito mais pobre. E assim foi. Este, que seria meu marido, trabalhava na oficina de costura comigo, mas eu não gostava dele. Um dia cheguei em casa, e ele estava lá com sua mãe. Meus pais disseram que eu tinha dado esperança, que, se não aceitasse, seria considerada uma mulher perdida. Eu aceitei, Maria. Mas chorava. E então meu marido me levou para sua aldeia.”

Maria correu os dedos pela trança negra de Cristina. Tão tímida que nunca soube se Cristina chegou a perceber. “E você o esqueceu?” A voz de Cristina era grave agora. “Eu o enterrei, Maria. Porque minha mãe disse que uma mulher podia ser tocada por um só homem na vida. Eu o enterrei, porque agora eu tinha um marido.”

Maria percebeu que Cristina não queria mais falar, mas o sono escapara por alguma fresta da janela, e a angústia passeava por seu peito com pés de ferro. Insistiu. “E seu marido é bom?” A voz de Cristina se suavizou. “Ele é bom, Maria. E gosta de mim. E, porque ele é bom e se preocupa comigo e não bate em mim, passei a gostar dele. Ele não é bonito nem simpático, mas acabei por lhe querer bem. Dançamos muito na festa de casamento, e foi um dia feliz. Depois, ele me pegou.”

Maria hesitou antes de perguntar. Mas talvez não houvesse outra chance, e ela nunca tinha conhecido uma mulher com tantas respostas. “Pode ser bom, Cristina?” Cristina quase podia colher a urgência na voz de Maria. E por isso afagou sua mão. “Tudo depende do homem, Maria. Se ele te trata bem, se te abraça, se te acaricia, então você pode gostar. Mas, se ele vier bêbado e fizer à força, você não pode gostar. Aí, como as pessoas dizem, você está com seu coração seco.”

Maria fez um silêncio espichado, antes de voltar a perguntar: “E havia Vinchuca na tua primeira vez, Cristina?”. Dessa vez, Cristina segurou o riso entre os dentes: “Maria, você acha que a Vinchuca respeitaria minhas bodas?”. As duas voltaram a se abraçar, os corpos sacudidos por gargalhadas. “Eu devia ser homem, não mulher”, disse Cristina, de repente. “Há tanta dor em ser mulher. O trabalho da mulher nunca acaba.” Maria concordou. “Se existir uma outra vida, Maria, eu quero voltar homem. Você sabe por quê?” Maria achava que sabia. “Para casar-me contigo!” Não falaram mais naquela noite. E demoraram a dormir.

Capítulo 5
Maria e Cristina descobrem que seu coração é grande, mas não é bom

Naquela noite havia um medo novo. Elas teriam de atravessar a cidade na madrugada para entrar na fila do hospital e fazer os exames. A cidade já era assustadora quando havia sol. Mas ao sol elas eram invisíveis. À noite, temiam que as enxergassem. No campo haviam dito a Maria que as mulheres da cidade iriam atacá-la e arrastá-la para um beco onde os homens a violariam. E foi isso o que ela garantiu a Cristina que aconteceria.
A aflição era ainda mais urgente porque o dinheiro acabara. E agora elas não sabiam como comer até o dia da cirurgia. Deitadas na cama para esperar a hora de enfrentar a cidade, agarraram-se às mãos e às palavras com uma força apressada. Era preciso encontrar uma história, mesmo que fosse triste.

“Maria”, disse Cristina, “aos 16 anos eu senti o veneno da Vinchuca pela primeira vez. Era como se uma faca perfurasse meu coração.” Maria não se moveu. Apenas apertou a mão de Cristina, para que ela soubesse que estava escutando. “Minha mãe me disse que uma pessoa só poderia ter duas pontadas como esta na vida. Na terceira, morria. Fiquei com muito medo de morrer e chorava muito. Mas a terceira pontada veio, e eu não morri. Eu não sabia que era a doença de Chagas, nem minha mãe. Ela dizia que, como a Vinchuca sugava nosso sangue todos os dias de nossa vida, nos tornávamos fracas.”

Maria também se sentia assim, exaurida de tudo. “Cristina”, disse ela. “Como vamos fazer para comer se não temos mais dinheiro?” Cristina não gostava de ser interrompida. “Maria, vai acontecer alguma coisa. Não te preocupa, o dinheiro vai aparecer.” Maria sabia que, se o dinheiro não brotava nos morros, onde a terra era fértil, muito menos no concreto da cidade. Mas calou-se.

“Escuta, Maria. Estou te contando uma história. E agora vou chegar na parte mais triste”, disse Cristina. “Só descobri que ia morrer aos 35 anos, quando já tinha me mudado para Aiquile com meu marido e meus filhos. No hospital me disseram que meu coração tinha se tornado grande demais e me deram um mês de vida. Não contei a ninguém, Maria. Mas comecei a me preparar para a morte. Depois, procurei outro médico. Sabe o que ele fez, Maria?” E Cristina não esperou Maria responder. “Ele me golpeou. Me deu uma bofetada no rosto e depois me deu outra. ‘Você quer morrer porque é frouxa’, ele dizia. Não há um remédio para você, não há nem mesmo uma aspirina para você. É você que precisa reagir.” Maria se ergueu na cama. “O doutor te golpeou?”

Cristina fez um silêncio de lonjuras antes de responder. E Maria pensou que podia fatiar aquele silêncio. “Me golpeou, Maria. E fiquei com muita raiva dele. Ele me batia, e eu chorava. E, depois de saber que era Chagas o mal da Vinchuca, descobri que meus pais morreram de Chagas, que nove dos meus dez irmãos têm Chagas, que meu marido tem Chagas, e minha filha mais velha tem Chagas. E talvez o mais novo também tenha. Mas quero viver, Maria. Para contar essa história.”

Maria temeu a raiva de Cristina. Mas lembrou que ela também tinha raiva. E, se Cristina podia ter raiva, então a ela, Maria, também era permitido. “Faz três anos que comecei a ouvir um zumbido na cabeça, Cristina. Quando desperto, e até agora mesmo, escuto um zumbido. Fui ao curandeiro para que enxergasse a verdade nas folhas de coca. E ele me disse que eu estava com susto de chuva ou de touro. Me deu umas ervas, e melhorou um pouco. Só soube o que tinha meses atrás, quando os Médicos Sem Fronteiras apareceram e fizeram exames em todos nós. Me disseram que eu estava muito doente e precisava colocar um relógio no coração. Fiquei com muita raiva e olhei para todos os lados, com medo que alguém estivesse ouvindo. Você sabe bem como é o costume, Cristina. Se soubessem que eu estava doente, as pessoas se alegrariam. E começariam a falar que eu morreria em breve.”

Maria sentia raiva de quem havia dado a notícia. Cristina tentou interrompê-la, mas ela não deixou. “Espera, Cristina, agora compreendo. Meses atrás eu não compreendia. E não contei a ninguém sobre meu coração. Só ao meu marido, que me aconselhou a esquecer e a seguir a vida como se aquele dia não tivesse existido. Então recebi o aviso de que tinha de ir ao cardiologista em Aiquile. Fui caminhando por quilômetros, mascando a coca com gana. Na cidade, eu tinha medo de perguntar e, quando perguntava, nem sempre me entendiam. Quando finalmente alcancei o médico do coração, ele me disse: ‘Ah, então os come-vinchucas mandaram você para cá?’. É assim que o doutor chama os Médicos Sem Fronteiras, de come-vinchucas.”

Cristina mexeu-se na cama, incomodada. “Não fui eu que chamei assim, Cristina, foi o doutor. E, depois de escutar meu coração, ele disse que o diagnóstico dos come-vinchucas estava certo. Ele disse mais, Cristina: ‘Você vai precisar de um marca-passo, mas vocês, camponeses, não têm dinheiro nem para botar uma roupa boa no corpo, imagina para um marca-passo. Custa US$ 5 mil. Você conhece dólar? Claro que não. Então vai embora, anda, vai atrás dos come-vinchucas para ver se te ajudam’. E eu fui. E por isso estou aqui. E agora entendo que meu pai e também minha mãe morreram de Chagas, e quatro dos meus sete irmãos têm Chagas. Os outros três ficaram com medo de fazer o exame, mas também devem ter o veneno porque não tinham como escapar. Meu marido disse que vai curar o Chagas com álcool. E que, se eu tomasse bastante álcool, também já estaria curada. Mas, você sabe, Cristina? Se eu não morrer nessa cirurgia, digo a você que nunca, mas nunca mesmo, ninguém da aldeia saberá que tenho um relógio dentro do peito. Porque as pessoas dizem que quem tem marca-passo não pode comer, não pode trabalhar, não presta para nada. Nunca vou contar para que não fiquem comentando que minha vida será curta.”

Maria parecia diferente. E Cristina estranhou. Sem saber o que dizer, Cristina perguntou, justo ela, que sempre foi uma mulher de pontos-finais. “Maria, será que já não é hora de andarmos?” E Maria, a mulher das interrogações, respondeu com uma exclamação: “Não! Ainda é cedo!”.

Capítulo 6
Epílogo

Na madrugada em que Maria e Cristina enfrentaram a cidade grande para alcançar o hospital, elas acharam 300 bolivianos no chão. Maria hesitou antes de juntar o dinheiro. Cristina mandou que pegasse e o escondeu no sutiã. Foi assim que se salvaram da fome. E puderam esperar pelo relógio que esticaria o tempo de sua existência.

Maria e Cristina colocaram um marca-passo e estão vivas. Na cirurgia, Cristina surpreendeu os médicos ao cantar com o peito aberto. Ela temia que, se morresse, Maria fugisse. Então cantou. Hoje, de tempos em tempos, Maria vence o medo, caminha durante horas pelos morros e alcança Cristina na pequena cidade de Aiquile. As duas se abraçam e sincronizam seus corações. Ao definir o amor que sentem uma pela outra, Maria e Cristina são uníssonas: “Nesta vida, somos irmãs”.

Se existir uma outra, me convidam para ser madrinha de seu casamento.

(Esta reportagem é a versão editada de uma das histórias do livro Dignidade! – obra comemorativa aos 40 anos de atuação dos Médicos Sem Fronteiras que chega ao Brasil nos próximos dias, pela editora LeYa. Nove escritores de diferentes partes do mundo, entre eles Mario Vargas Llosa, acompanharam o trabalho dos MSF nos lugares mais devastados e invisíveis do planeta e depois contaram sua experiência.)

(Publicado na Revista Época em 09/06/2012)