Minha vida com Ailce

Eliane Brum

A primeira vez que eu a vi, Ailce de Oliveira Souza estava no meio da sala de sua casa, com um mal contido olhar de expectativa. Eu era a jornalista que contaria sua história até o fim, mas naquele momento ela fingia não saber que o fim era a morte. E, como cada um de nós, ao levantar da cama, muitas vezes ela também acreditava sinceramente que não morreria.

Quem era eu? Naquele momento, 26 de março de 2008, acho que eu era uma repórter que não sabia o que estava fazendo. Eu tinha decidido acompanhar alguém com uma doença incurável até o fim. Mas eu não tinha noção do que isso significava. No instante em que nossos olhares se encontraram no meio da sua sala, eu me coloquei numa situação impossível: minha vida estava amarrada à sua morte.

Eu não poderia desejar nunca que essa reportagem acabasse. E ao mesmo tempo desejava que ela acabasse o mais rápido possível. Fui ficando cada vez mais ansiosa para me libertar de um contato com a morte tão cotidiano e radical que estava impossibilitando a minha vida. Ao mesmo tempo, fingia que nunca acabaria. De certo modo, eu e ela éramos duas fingidoras. Ela, na posição de personagem de uma vida, eu como narradora de uma história cujo fim era o fim da vida dela.

Ela não tinha curiosidade de saber sobre minha própria vida. Eu era a narradora da dela. Nas poucas vezes em que deixei escapar alguma informação pessoal, ela pareceu muito surpreendida com o fato de eu ter uma vida que não se limitava a ouvir a dela. E não parecia apreciar essa idéia.

Ela se preocupava, sim, se eu comia, dava receitas para minha tosse contumaz, achava que eu trabalhava demais, mas não se interessava pelos meus afetos. Acho que entendeu melhor meu lugar do que eu mesma. Na condição de narradora de uma vida, eu era uma casa vazia. Eram suas as palavras que me preenchiam com história.

Enquanto o câncer a devorava por dentro, nos quase quatro meses em que estivemos juntas, eu, que raramente adoeço, colecionei três gripes, uma virose, uma sinusite, uma crise de bronquite alérgica e, durante dois dias, fiquei prostrada sentindo os sintomas dela.

Nas primeiras semanas tive muita raiva, meu mau-humor era notório. Eu sabia que era minha forma de expressar a impotência que sentia por estar presa aos fios da vida dela. Parecia que minha vida estava fora de controle, mas o que eu não controlava era a morte. A dela. E também a minha.

Foto: Marcelo Min

Foto: Marcelo Min

Quando comecei essa reportagem, pensava que atravessaríamos os dias em conversas profundas sobre a morte e o morrer. Eu não sabia de nada. Ailce e eu só falávamos da vida. Em geral, falávamos das coisas mais prosaicas da vida, aquelas que, como na frase atribuída a John Lennon, acontecem enquanto estamos ocupados fazendo grandes planos.

Em maio quase só conversamos sobre comida. Uma hora por dia, e um dia depois do outro, passávamos trocando receitas, salivando juntas, pelo telefone. Nesse diálogo gastronômico, que se estendia para a concretude das minhas panelas, eu engordava, e ela emagrecia. O que fazíamos, eu e Ailce, nessa relação inventada, era reafirmar a vida possível.

Ela tinha ganas de comprar roupas novas, se produzir e passear. No dia seguinte eu enfiava meu vestido mais colorido e ficava com vontade de dançar. Ela discorria sobre a importância de uma mulher andar sempre montada, bem vestida e perfumada. Imediatamente eu começava a escalar sapatos de salto alto com um entusiasmo de alpinista. Enquanto Ailce fazia o luto do seu corpo seqüestrado pelo câncer, eu sentia uma vontade doida de vestir uma minissaia no meu.

Que lugar era esse, o meu e o dela? Não sei. Acho que, ao longo dessa relação insólita, cada uma de nós deu diferentes sentidos ao nosso pacto. Lá pelo meio, descobrimos que a única coisa que fazia sentido, que tornava aquela relação possível, era o afeto. Era preciso que eu tivesse a coragem de me abrir para a possibilidade de amar alguém que perderia muito em breve.

Devagar, enquanto a escutava, eu comecei a amá-la. Com o tempo, ela começou a me chamar de filha. E nos últimos dias, horas, de sua vida, eu ajudava a dar banho no seu corpo já tão castigado, pingava gotas de água em sua boca ressecada com uma gaze molhada.

E ainda agora, dias depois de sua morte, eu surpreendo a mim mesma com a mão no telefone para ligar para ela, logo depois do almoço, no nosso horário particular. Eu a via toda semana e ligava para ela todos os dias. Durante quase quatro meses, isso era tão certo quanto almoçar, dormir, andar.

Quando ela chegou ao hospital, em 15 de julho, sabia que era o fim. Deitada, com dor, ela disse: “Acho que a história que você está escrevendo sobre mim chegou ao fim. O que você acha?” Eu deveria ter sido mais corajosa, mas fiquei aquém do que ela esperava. E merecia. “Não sei”, eu disse. Seus olhos amarelos me perfuraram: “Não sabe?” Eu menti: “Acho que não falta mais nada”. Na verdade, como ambas sabíamos, faltava a morte dela.

Só depois fui capaz de perceber a dimensão do que ela havia me dado. Ninguém confiara em mim como ela. Eu escreveria sua história, e ela estaria morta. Pela primeira vez, o personagem principal de uma reportagem – por premissa, não por acidente – não estaria vivo para lê-la. Ailce se entregara inteira nas minhas mãos de escritora.

Então, eu, que tenho o defeito de escrever muito mais do que cabe na estrutura editorial da revista, em qualquer reportagem, nesta sofri ainda mais ferozmente por cada frase cortada por falta de espaço. Cada corte era uma traição a Ailce, era um pedaço da vida dela que deixava de existir ao não se transformar em história contada.

O que eu dera a ela quando estava viva? Não tenho certeza. Fui companhia, fui ouvido, e algumas vezes, fui âncora. Eu estava ali para contar sua história. Quando tudo era desordem, minha presença lembrava que ainda havia essa história, ainda existia uma mulher chamada Ailce que havia criado dois filhos, construído uma casa grande e matado a fome de centenas de crianças.

(Publicado na Revista Época em 16/08/2008)

O fotógrafo Marcelo Min fala sobre como foi fazer as imagens da reportagem.

 

Eliane Brum conta como foi fazer uma reportagem que só terminaria com a morte de sua personagem principal.