Acompanhamos uma UTI neonatal que trabalha com cuidados paliativos. Nela, a medicina faz diferença mesmo quando não há cura
A fotografia acima mostra Cristiane Nascimento minutos depois de saber que não há cura para seu filho. Lucas tem câncer. O tumor no cérebro nasceu com ele. Na cirurgia, não foi possível arrancá-lo por completo. No dia desta foto, 22 de janeiro, Lucas completava 2 meses. As imagens eternizam sua história. Não a história com que Cristiane sonhou. Mas a história possível.
Ao dar à luz, mulheres como ela precisam se desprender do filho sonhado para alcançar o filho real. Com a ajuda da equipe de cuidados paliativos, Cristiane aprende a valorizar cada detalhe da vida de seu bebê, não importa o tamanho que ela tenha. Como neste momento, ao aconchegar o filho no colo e sussurrar que o ama. O aparelho da UTI mostra que, mesmo em coma, ao ouvir a voz da mãe o coração do filho bate mais rápido.
Lucas está numa UTI diferente. A Divisão de Neonatologia do Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher (Caism), da Universidade de Campinas (Unicamp), pratica os cuidados paliativos no tratamento de bebês malformados ou com doenças graves. Todos os esforços são empreendidos para curar. Quando não é possível, a equipe suspende tratamentos invasivos e dolorosos – e amplia os cuidados com a família e com o luto. Cada bebê tem uma história. E é preciso cuidar bem dela.
Nesta semana, entra em vigor no Brasil o novo Código de Ética Médica. Pela primeira vez, a prática dos cuidados paliativos foi incluída entre as normas que os médicos devem seguir na profissão. Se é novidade no tratamento de doentes terminais adultos, nas unidades neonatais a prática dos cuidados paliativos é uma raridade ainda maior. A experiência da Unicamp tem derrubado preconceitos – e alterado destinos.
A cada ano, 45 mil brasileiras perdem seus filhos antes que eles completem 365 dias de vida. A essas mulheres, os profissionais de saúde costumam afirmar, com a força das verdades absolutas: “Você é jovem, vai ter outro filho”. Ou: “Você nem teve tempo de se apegar, vai superar”. Parentes e amigos repetem a toda hora essas frases. Omitem- se de escutar a dor. E calam o luto de quem precisa vivê-lo para seguir adiante.
A morte nos assombra a todos. Mas a perda de um bebê é o avesso da lógica. Ninguém espera que quem acabou de nascer possa morrer. Um filho não é apenas uma combinação única dos genes dos pais, mas a soma de seus melhores desejos de continuidade. Isso faz com que essa morte seja a menos aceita – e a mais silenciada.
Até 2001, a neonatologia do Caism era mais uma das unidades do país a acreditar que a função de profissionais de saúde limitava-se a curar doenças. Centro de referência para 42 municípios paulistas, ele acolhe os casos mais graves de malformação fetal e bebês prematuros. A morte, portanto, não é uma estrangeira em seus corredores. Mas só por descuido da recepcionista os médicos encontravam-se com os pais após a perda dos filhos. Era no setor de óbito que a família recebia a notícia, da boca de desconhecidos.
Quem mudou essa prática e transformou a unidade em algo novo no Brasil foi um bebê. Ele parava de respirar dezenas de vezes por dia. A cada uma, era preciso reanimá-lo. A equipe passou a conviver com a iminência de sua morte – e com o medo do plantonista de não conseguir revivê-lo. Não havia cura. Mas ninguém queria que ele morresse em seus braços.
Como cuidar desse bebê? Deveriam parar de reanimá-lo ou continuar prolongando seu sofrimento? A quem caberia decidir? E como conversar com os pais? As perguntas infiltraram-se no cotidiano da enfermaria. Tanto que exigiram respostas que ninguém ali tinha, apesar dos muitos diplomas e das décadas de experiência.
Sem poder conviver com tantos pontos de interrogação, a equipe buscou ajuda. Convidou a psicóloga Elisa Perina para dar uma palestra sobre a morte. Elisa trabalha há quase 30 anos no Centro Infantil Boldrini, em Campinas, uma referência no tratamento de crianças e adolescentes com câncer. É uma das precursoras da prática dos cuidados paliativos no Brasil.
Com Elisa, a equipe descobriu que a questão era mais difícil do que poderiam supor. Os profissionais não poderiam lidar com a morte de um bebê se antes não lidassem com a perspectiva da própria morte. “Antes de abrir espaço externo, é preciso abrir o interno”, diz Elisa. Foi um longo caminho até a equipe estar preparada para cuidar de bebês como Lucas para além da perspectiva da cura.
A conversa de Cristiane
Cristiane torce as mãos, nervosa. Na sala a esperam duas pediatras, psicóloga e assistente social. Estão ali para explicar a Cristiane que o câncer de Lucas não tem cura – e que a família pode contar com elas para garantir conforto. Não apenas emocional, mas prático.
A primeira preocupação da equipe é iluminar as dúvidas da mãe, para que a dor não seja agravada por incertezas de diagnóstico. É importante que a família esteja segura de que todos os recursos da medicina foram usados na tentativa de curar o bebê. A certeza de ter feito tudo o que era possível é essencial para a saúde dessa família no presente – e no futuro.
Cristiane faz muitas perguntas. Todas são respondidas com informação – e com afeto. “Se não tiver jeito de curar, eu e meu marido preferíamos que nosso bebê não fizesse outras cirurgias”, diz ela. E engole soluços.
Ela conta que não consegue cuidar de seu filho mais velho. Que tem poupado os familiares das informações mais duras e sente que pode implodir de dor. Que o marido tem vindo pouco ao hospital porque estava desempregado e só tinha conseguido trabalho fazia duas semanas. Que a vida está muito, muito difícil.
A pediatra Jussara de Lima e Souza, coordenadora do grupo, diz: “Você precisa deixar os outros cuidarem de você. Você está cuidando de todo mundo, e eles não sabem quanto você está sofrendo. Sem saber, não podem ajudar. Nós podemos cuidar para que o Lucas não sinta dor, mas não podemos fazer com que sobreviva. O que podemos é ajudar você e sua família a passar por isso”.
A conversa dura duas horas. Cristiane decide levar o filho mais velho ao hospital, para que ele possa conhecer o bebê e entender aonde a mãe vai todos os dias. Até então, o menino pensa que a mãe o abandona para se divertir com um irmão desconhecido. A assistente social coloca-se à disposição para conversar com o patrão do marido e encontrar uma forma de liberá-lo por algumas horas. A mãe pode passar a noite num dos alojamentos quando quiser ficar mais com Lucas. Cristiane é estimulada a pensar sobre tudo o que lhe daria conforto. Médicos, enfermeiras, assistentes sociais e psicóloga podem ser contatados a qualquer momento.
É uma conversa entre uma equipe de saúde e a mãe de um bebê com câncer. É uma conversa entre pessoas dispostas a alcançar a dor do outro. A informação mais importante para Cristiane é que ela não está sozinha. “Você está cuidando do Lucas da melhor maneira possível”, diz a assistente social Elaine Salcedo. “Vocês têm uma história, que vai ficar com você, seja o que for que aconteça.”
Quando a conversa termina, Cristiane decide almoçar. Nos últimos dias, só comia quando passava mal. A equipe mostra a ela que precisa comer para ser capaz de cuidar de Lucas. E que é importante – e não errado – cuidar de si mesma.
Cristiane coloca Lucas no colo. É a foto que abre esta reportagem. Lucas morreu em 15 de março. Esta foto é, para Cristiane, a lembrança de que ele viveu.
Duas histórias de vida
No Caism, os pais podem ficar o tempo que quiserem com seus bebês, dia e noite. Aprendem a cuidar deles, a ministrar os medicamentos. O toque e a voz são estimulados. Os bebês ouvem, sentem, às vezes melhoram com esse contato tão próximo. “É importante que as mães possam se sentir mães – e não visitas. Os bebês estão doentes, mas não são nossos. São dos pais, da família”, diz Jussara. “Quando têm pouca chance de cura, não há nenhuma razão nem para procedimentos invasivos e dolorosos nem para não permitir que a família fique com eles no colo pelo tempo que quiser. Permitimos que os irmãos visitem, para que possam entender o que está acontecendo e também construir suas lembranças. É uma história de vida, não importa o tamanho que essa vida tenha. Nosso trabalho é cuidar bem dessa história. Da vida.”
Em 2004, Janaína Bueno de Moraes teve duas Vitórias. Perdeu ambas. Hoje, aos 27 anos, ela tem um bebê de 1 ano, Gabriel. “Só consegui seguir adiante por causa do cuidado que tiveram comigo”, diz. “Foi uma experiência muito dolorosa. Ao mesmo tempo, eu me sentia amparada, respeitada, ouvida. Pude cuidar das minhas gêmeas. E ensinar outras mães a cuidar de seus filhos.”
Júlia Vitória e Jaíne Vitória nasceram com 25 semanas de gestação. Janaína já tinha perdido, ainda na gravidez, outros dois bebês. Na cesariana, o médico disse: “A chance de gêmeas nascerem vivas com esse tempo de gestação é de uma em 1 milhão”. A primeira Vitória, com 580 gramas, morreu com 29 dias. A segunda, com 640 gramas, resistiu até os 8 meses.
Janaína viveu as mortes das gêmeas em mundos distintos. Testemunhou as duas formas de tratar a perda de um bebê no sistema de saúde. A primeira Vitória morreu na Unicamp. A segunda permaneceu lá por oito meses, mas morreu seis dias depois de ser transferida para outro hospital de referência. Janaína viveu dois lutos, duas lembranças. Esta é a primeira delas:
– Quando cheguei à UTI, o médico disse que minha filha estava morrendo. Outra médica perguntou se eu queria pegá-la. No meu colo, a Júlia abriu aquele olho pequeno e me olhou. Eu disse que ela fosse em paz, que tudo o que tinha de fazer na vida da mamãe e do papai já tinha feito. Fiquei segurando a mão dela. Depois, desci para um culto. Quando voltei, ela estava morta. Eles puseram roupinha nela, a botaram num bercinho e a deixaram numa sala, para que a gente pudesse se despedir. Parecia que estava dormindo. Precisei contar para a Jaíne que sua irmã tinha morrido, porque ela começou a ter uma parada cardíaca atrás da outra. Eu disse: “Você está sentindo falta de sua irmãzinha, né, fia? Sabe o que é? Lá no céu precisavam de mais uma florzinha. Jesus veio buscar a Júlia porque lá não tinha uma tão bonita. Só deixou você porque, se levasse as duas, a mamãe ficaria muito triste”.
A segunda lembrança de Janaína é de quase oito meses mais tarde:
– A Jaíne foi transferida para um hospital de Ribeirão Preto, mais perto da minha cidade. Ela não enxergava, mas, quando ouvia a minha voz, mexia a mãozinha. Acho que não tinha morrido ainda porque eu não a entregava. Eu falava assim: “Você vai ficar bem, você é a Vitória da mamãe”. Quando chegamos ao outro hospital, não me deixaram cuidar dela. Eu tinha sido treinada para cuidar dela. Então fui explicando os medicamentos para a médica, os procedimentos todos. Mas só me deixavam ficar uma hora com a minha filha. O resto do dia eu passava lá fora, angustiada. Só nos chamaram quando ela estava morrendo. Botei a mão sobre ela e entreguei minha filha a Deus, disse que ela fosse em paz. Quando acabei, uma lágrima rolou do olho dela. Eu disse a meu marido: “Você está vendo, ela estava se segurando aqui por nossa causa”. Então nos mandaram sair. Quinze minutos depois, ela morreu. Quando meu marido foi buscar nossa filha, ela estava no necrotério. Nua, com etiqueta e código de barras. Como se fosse mercadoria. Meu marido tirou a camiseta do corpo e enrolou a filha nela.
Quando foi buscar o atestado de óbito, Janaína exigiu falar com o responsável.
– Para mim, não adianta mais. Mas vocês precisam ter cuidado para lidar com a morte. Minha filha estava nua, no necrotério, com etiqueta e código de barras.
O médico respondeu:
– Calma, mãe, você é jovem, vai ter outro filho.
– Não é essa a questão – disse ela. – A questão é que eu tenho sentimentos. Minha outra filha também morreu. Mas, na Unicamp, puseram roupinha nela, botaram num bercinho. Nós nos despedimos.
– Mas lá é um hospital escola…
– É escola para que vocês possam aprender. Como você acha que vou me lembrar de minhas filhas? Da que morreu lá, eu me lembro dela dormindo, em meu colo. Da que morreu aqui, lembro com uma etiqueta e um código de barras. Como vou viver com essa imagem?
Os pais nascem antes
A cada bebê que nasce, nasce também uma família. Poucos percebem, porém, que homens e mulheres se tornam pais e mães bem antes do nascimento do filho. “É preciso entender o que significa a perda de um bebê para ser capaz de cuidar da família. Aquela criança não viveu apenas aquelas horas, dias ou meses”, diz a psicóloga Elisa. “Para os pais, no momento em que conceberam a possibilidade de um filho, ele passou a existir. Já contém nele a continuidade de um projeto de vida. É uma história mais longa que parece. Quando é rompida por uma morte, a perda é enorme.”
Ao compreender a dimensão dessa perda, o grupo de cuidados paliativos criou um espaço para a despedida. Ali, a família começa a viver seu luto com privacidade. Só depois o corpo segue para o necrotério.
A equipe procura mostrar às mães e aos pais que eles estão construindo uma história com seus bebês. Com momentos de dor e de alegria, como são todas as vidas, curtas ou longas. As mães são estimuladas a prestar atenção também a outras dimensões do cotidiano. Ir ao cinema, jantar com o marido, arrumar o cabelo, passear com os outros filhos. A perda é elaborada para transformar-se naquilo que é: numa história, parte da travessia daquela família.
Aos 34 anos, Luciana Roberto recorda o dia mais feliz de sua vida: “Foi quando eu trouxe o Lucas para casa pela primeira vez”. O menino era fruto de sua quinta gestação. Nas outras quatro, perdera os bebês na gravidez. “Eu queria muito ser mãe”, diz ela. Ao saber que o bebê nasceria com o intestino exposto e que ela entraria em coma no parto, desejou-o mesmo assim. “Pelo menos, eu saberia o que é ser mãe.”
Luciana viveu mais de um ano no hospital. Lucas passou por dez cirurgias. Um dia a equipe fez uma surpresa. Pagou uma enfermeira para que ela pudesse passar o Dia das Mães em casa, em Itu, no Estado de São Paulo. “Era um dia tão ensolarado, eu pude mostrar tudo a ele: ‘Olha, filho, este é o céu. Olha, filho, isto é uma árvore. Olha, filho, estamos chegando a Itu’”, diz ela. “Era a primeira vez que meu filho sentia o sol. Mostrei a ele o bairro onde nasci, a cidade que amo. Minha família nos esperava. Foi muito grande isso para mim.”
Lucas morreu nos braços de Luciana, com 1 ano e 4 meses. Na pequena casa onde vive com a filha de 3 anos, nascida depois do luto, ela guarda sua história com o filho em fotografias. “Olha, aqui fizeram uma festinha para ele no hospital, com bexiga e tudo”, diz. “Ele colocou um cateter, muito difícil de conseguir, que vinha lá dos Estados Unidos. Pôde então tomar nutrição parenteral. Todo mundo comemorou.”
A trajetória narrada por Luciana não é uma vida em suspenso, à espera da cura ou do fim. É um dia de cada vez, uma história em movimento. É importante que a vida de Lucas tenha se transformado em lembranças, guardadas num álbum de fotos, para que sua mãe possa viver no presente.
Conflitos no limite da vida
Não se veem muitos pais entre os berços aquecidos. As mães estão por toda parte. Com as mais variadas justificativas, a maioria dos homens deixa suas mulheres lidar com o cotidiano da UTI. Eles assumem – por pressão social, mas também por vontade própria – o lugar tradicional do homem, ao cuidar da vida prática e da vida pública. Deixam a mulher lidar com a vida privada, não mais no lar, mas no hospital.
Às vezes, a dor da mãe é tão avassaladora que não deixa espaço para o sofrimento do pai. É como se, por ter gerado o filho, a mulher tivesse um lugar maior – e fosse natural que sofresse mais. Aos pais, restaria calar uma dor supostamente menor. As mães procuram ajuda para seus dilemas, a maioria dos pais não. Se o casal consegue conversar sobre suas dificuldades e amparar-se mutuamente, tem mais chance de superar o sofrimento. Mas a doença de um bebê, seguida ou não de morte, às vezes pode levar ao fim do casamento. “Se o casal já estava fragilizado antes da doença e da perda, há um risco grande de separação”, diz a psicóloga Elisa. “Se já não dava conta das dificuldades cotidianas, na hora de uma adversidade tão profunda, o laço pode se desfazer.”
Ao falar de seus sentimentos, algumas mulheres afirmam-se não mais como um ser humano inteiro, com várias dimensões na vida, mas reduzidas a “um útero defeituoso”. “Eu sentia que havia falhado como mulher. Nem conseguia mais transar com meu marido”, contou uma mãe. “Também sentia vergonha de minhas amigas que tinham filhos saudáveis. Me sentia menor.”
Na outra ponta, alguns pais tomaram a iniciativa da separação depois da doença do bebê. Em geral, com a justificativa de ter se apaixonado por outra mulher. Uma que pudesse lhes dar filhos saudáveis. Foi o que fez o marido da mulher citada no parágrafo anterior. Além de assumir uma suposta culpa pela morte do filho, ela achou que, ao deixá-la, o marido teria razão. Afinal, ela não era uma “mulher completa”.
Enquanto algumas mulheres assumem a “responsabilidade” pelos problemas congênitos do bebê ou da gestação, há homens que parecem se eximir de qualquer participação na existência de um bebê que, em vez de alegria, causa dor. Para alguns, gerar um bebê malformado põe a masculinidade em dúvida. A saída óbvia, já que lhes faltam recursos psíquicos para resolver a questão de forma mais sofisticada, é abandonar a mulher que lhes faz lembrar o assunto. E provar, por meio de outra, que são potentes.
Uma das mães descobriu no enterro do filho que, enquanto estava no hospital, o companheiro teve um caso. Outra soube, por meio de um telefonema anônimo, que o marido mantinha uma relação fora do casamento – e que a amante estava grávida. Ela o perdoou. Mais tarde, diria: “Não há nada mais triste que ver seu marido com um filho morto nos braços”.
Não se trata aqui de generalizar. Nem de julgar os homens que traíram ou se separaram depois da doença ou da perda de um bebê. É preciso, apenas, apontar a importância de um espaço para tentar lidar com os conflitos e a dor. Esse é também o papel dos profissionais quando se olha para a saúde de uma forma mais ampla.
Numa conversa entre uma mãe e a equipe, ocorreu um episódio significativo. A mãe contava que o marido queria fazer sexo, e ela não tinha vontade, massacrada pelo cotidiano na UTI. Sentia-se ofendida pelo desejo do marido. Levou a questão até para o pastor de sua igreja. “Como é que pode?”, disse ela à equipe. “Não se preocupa. Não é só seu marido, são todos. Ouvimos muito isso aqui”, afirmou a pediatra. E a assistente social esclareceu: “São só maneiras diferentes de lidar com a dor. Para você e a maioria das mulheres, é preciso estar bem para transar. Para seu marido e a maioria dos homens, é preciso transar para ficar bem”. Era um momento terrível. Quando perceberam, estavam todas, inclusive a mãe, quase chorando. Desta vez, de tanto rir.
A dor do pai
Quando a família perde o bebê, o desafio da equipe de saúde é, ao mesmo tempo, ajudar no luto e garantir acesso aos exames que podem detectar as causas dos problemas. Informação qualificada é a melhor maneira de eliminar culpas imaginárias e de garantir que a próxima gestação, se houver, sofrerá um risco menor de repetição.
O grupo de cuidados paliativos faz uma reunião com os familiares depois de três meses da perda. Nela, os exames são discutidos com os médicos, e as dúvidas são eliminadas. O espaço também é usado para que os pais possam falar sobre suas dificuldades e ser encaminhados para tratamento psicológico ou algum outro tipo de assistência cuja necessidade seja detectada.
O empresário Antonio Bastos, de 46 anos, marcou a equipe pela presença. Sua filha viveu menos de três dias. Nesse tempo tão curto, mas intenso, Antonio foi um ótimo pai. “A dor para o pai é tão grande quanto para a mãe. Ou maior”, diz. “Porque nós, pais, não geramos. Então, me parece que perdemos mais. Minha mulher sentiu nossa filha se mexer dentro dela, mas eu só podia conversar com a barriga.”
Quando a menina morreu, Antonio pegou-a no colo. E a beijou muito. Olhava para o bebezinho com um amor tão profundo que ninguém será capaz de esquecer a cena. “Foi uma alegria poder tocar em minha filha. E uma tristeza saber que ela não vai viver com a gente”, diz ele. De mãos dadas com a mulher e o filho, Antonio rezou em torno do berço da UTI até que, 15 minutos depois, sua filha cessou suavemente de respirar.
Na reunião do luto, três meses depois, Antonio e sua mulher precisavam compreender. “Como o problema era na placenta, minha mulher ficava se perguntando se tinha feito algo errado”, diz ele. “Tirar todas as dúvidas foi muito importante para nós. Por saber que fizemos tudo certo, dá para seguir vivendo. Esquecer, jamais. Superar, sim.”
A fotografia
A foto que encerra esta reportagem foi uma escolha difícil. Ela simboliza um profundo respeito pela morte – e pela vida. O retrato mostra o casal Josiane e Giovani Pereira ao se despedir da filha que acaba de morrer. É um momento triste, mas digno. A cena revela a diferença entre uma UTI neonatal com cuidados paliativos e outra sem. Se fôssemos registrar a prática tradicional, a imagem seria mesmo impublicável: um bebê nu, com uma etiqueta, numa mesa de necrotério.
A fotografia é uma prática cotidiana da neonatologia do Caism. No início, os pais ficam surpresos com a oferta de fotografar seus bebês. Depois, trazem sua própria câmera. “Incentivamos os pais a tirar fotos dos filhos. É uma forma de entender que é uma história. Alguns bebês poderão ver as fotos mais tarde, outros não”, diz a pediatra Jussara Souza. “Quando a história não continua, para os pais é uma lembrança desse filho que teve uma vida curta, mas ainda assim uma vida. Nunca tivemos nenhum pai arrependido de ter tirado uma foto. Só pais que se arrependeram por não ter essa lembrança.”
Quando as mães perdem um filho, costumam dizer: “Deus me tirou um filho”. Jussara responde: “Sim, mas antes de tirar ele deu”. Essa é a função da fotografia como registro. “As pessoas precisam lembrar que tiveram um bebê”, afirma Jussara. “Mesmo que seja por um período curto, elas foram pais e mães, cuidaram do seu filho, fizeram todo o possível. E há uma imagem desse amor.”
A foto de adeus mostra por que a morte deve ser tratada como parte da vida. “A morte de um filho é uma ferida. Ela dói. Se cuidarmos dela, vai virar uma cicatriz. Vai continuar lá, como lembrança do vivido, mas não vai mais doer”, diz Jussara. “Mas, se não tratarmos dela, vai se tornar uma ferida incurável, para sempre aberta. Quando não conseguimos curar o bebê, temos de cuidar da ferida. Não posso ser Deus, como me ensinaram na faculdade de medicina. Mas posso ser humana e cuidar.”
A fotografia é o final de uma história. Não a história sonhada, mas a possível. E o possível nunca é pouco.
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