As cartas de amor de Guimarães Rosa para Aracy revelam o lado mais sensual do autor de Grande Sertão: Veredas
Olhe bem para a boca da bela mulher do retrato. Para esses lábios, um dos maiores nomes da literatura brasileira escreveu: “Antes e depois, beijar, longamente, a tua boquinha. Essa tua boca sensual e perversamente bonita, expressiva, quente, sabida, sabidíssima, suavíssima, ousada, ávida, requintada, ‘rafinierte’, gulosa, pecadora, especialista, perfumada, gostosa, tão gostosa como você toda inteira, meu anjo de Aracy bonita, muito minha, dona do meu coração”.
Sim, ele mesmo. João Guimarães Rosa, o autor de Grande Sertão: Veredas, entre outras obras-primas da língua portuguesa, o diplomata sempre refinado do Itamaraty, escreveu essas linhas condimentadas e centenas de outras para a grande companheira de sua vida, num estilo que em nada lembra a prosa de Riobaldo e Diadorim. Quando “Joãozinho” escrevia para “Ara” (era assim que eles chamavam um ao outro ), era direto, rasgado, explícito. Só pensava em “boquinha sabida”, “pintazinha do pé esquerdo”, “camisolinha cor-de-rosa”.
O acervo – grande parte dele inédito – é composto por 107 cartas, 44 postais, bilhetes e telegramas, escritos por Rosa para Aracy entre 24 de agosto de 1938 e 18 de agosto de 1960. A pesquisa da correspondência foi confiada a duas estudiosas da obra do escritor, Neuma Cavalcante, da Universidade Federal do Ceará, e Elza Miné, da Universidade de São Paulo. Elas se dedicam agora a escrever a biografia de Aracy Moebius de Carvalho Guimarães Rosa, uma personagem extraordinária por motivos que vão muito além da condição de mulher de grande homem.
O livro será lançado ainda no ano do centenário de Aracy, que se encerra em 20 de abril. “Quando comecei a ler as cartas, fiquei muito tímida, como sempre acontece quando lemos a correspondência de alguém”, diz Neuma. “Fiquei muito emocionada com a vida deles. Aos poucos, senti como se fossem da família.”
A pesquisa foi iniciada no fim da década de 90. Em 2006, Neuma e Elza publicaram um artigo analisando a correspondência amorosa, nos Anais do Seminário Internacional em comemoração aos 50 anos de Grande Sertão: Veredas. Na biografia que preparam, as cartas serão reveladas e ganharão sentido no contexto da vida e da época de Aracy.
Aos 100 anos, Aracy vive em São Paulo com a família de seu único filho, Eduardo Tess. Sofre de mal de Alzheimer e esqueceu-se de quem é. Rosa a conheceu ao desembarcar na Alemanha, em 1938, para assumir o posto de cônsul-adjunto em Hamburgo. No Brasil, ele deixara a primeira mulher e as duas filhas. Aracy, desquitada e com um filho pequeno, era funcionária do consulado. Já era notável por três características: a estampa de atriz, a língua afiada e uma determinação capaz de meter medo nos SS de Hitler. Apaixonaram-se.
Aracy fez sua própria lenda ao ajudar judeus a conseguir vistos para fugir da Alemanha nazista. Ao fazê-lo, ela desobedecia à diplomacia de Getúlio Vargas. Pelas vidas que salvou, recebeu o título de “Justa entre as Nações”, conferido pelo Museu do Holocausto, em Jerusalém.
Rosa morreu praticamente em seus braços, em 1967. Nas três décadas de sua história de amor, ele publicou os livros que o tornaram imortal. A Aracy dedicou sua obra-prima, Grande Sertão: Veredas. Dedicou, não. “Deu”, como explicou ao tradutor do livro para o francês.
A correspondência revela o alcance desse romance da vida real. Aracy era a amante cujo perfume – Femme – ele sentia mesmo quando havia um oceano entre eles. E era a crítica exigente de sua obra: “Melhor ficaria se a minha mulherzinha estivesse ao meu lado, (…) revendo os meus escritos e dando a sua acertada opinião. Digo isso, porque introduzi todas aquelas alterações propostas por você”.
As cartas iluminam o lugar de Aracy nas várias dimensões da vida de Rosa. E algumas são belas. Mas a delícia dessa correspondência, como de boa parte das cartas de amor de grandes literatos, são os trechos de absoluto desatino. As frases derramadas os aproximam da carne imperfeita dos leitores. Cada excesso, uma fragilidade exposta. Como apaixonado, o gênio é um homem comum. Até mesmo Fernando Pessoa – Todas as cartas de amor são ridículas/Não fossem ridículas não seriam cartas de amor – provou a agudeza de sua poesia ao cometer algumas bem estapafúrdias. Do amor ninguém escapa: nem os príncipes de Gales, nem os gênios.
Rosa reinventou a língua em sua obra, mas, como qualquer homem, ao pegar da caneta para escrever à amada, não inventou coisa alguma. Nada de “nonada”. No amor, era só “João Babão”. É um Rosa deliciosamente prosaico que emerge dessas linhas, chamando sua mulher de “m%” (“meu cem por cento”). E disposto a tomar veredas estilisticamente arriscadas para honrar os “pezinhos” de Aracy: “Meu amorzinho, podes, claro, comprar os três pares de sapatos de que gostaste. Se sobrar algo, compra outros chinelinhos, também. E… traz, depressa, os pezinhos para mim…”.
Trechos de cartas escritas por Guimarães Rosa para Aracy entre 1938 e 1960
”Mas meu amorzinho, para mim você não é só corpo, se bem que você é e será sempre a minha Vênus, a minha cocaína, o diabinho carnal que se apoderou da minha pele e penetrou em mim até a medula dos ossos.”
”Quando é que irás compreender que eu sou mais teu do que é tua aquela pintazinha que tens no pé esquerdo, ou do que aquela verrugazinha que tens no flanco?”
”Será que você está nesta hora também pensando em mim? Agora vou para a cama, para dormir com a camisolinha cor-de-rosa, depois de conversar um pouco com os chinelinhos chineses, que me falarão dos lindos pezinhos de sua dona.” (25/8/1938)
“Uso externo:
Sorriso para o amado 10,0 grs
Cara fechada para os outros 5,0 grs
Tintura de gentileza 5 gotas
Pó de bom humor 5,0 grs
Vaselina 30,0 grs (rasurado)
Uso explicado.
VI-VI-939
Dr. João Babão”
”O Ilmar mostrou-me hoje um colar de pérolas naturais, que havia comprado para ela. Gostarias? Dizem que vale a pena comprar jóias antigas, algumas com pérolas, que são bonitas e não tão caras como no Brasil. Também estou em busca de rendas de encaixe. Pretendo assistir a um desfile de modelos, em grande costureiro. O que me agradaria seria comprar um belo modelo para ti, meu amor.” (Paris, 18/8/1946)
”Sinto e tenho a necessidade tremenda de sentir o amor como cousa NÃO HUMANA, SUPER-HUMANA, sublime, acima de tudo merecendo todos os sacrifícios, mesmo os mais inauditos. Sempre precisei disto. Isto ou nada. ‘Ou a perfeição, ou a pândega!’ Não me satisfaria um amor burguês, morno, conformado, dosado, raciocinando sobre conveniências ou inconveniências. Quando conheci você, estava já descrente de encontrar a mulher que seria a MINHA, capaz de sentir como eu e amar assim.” (Bogotá, 24/3/1943)
”Os outros eu conheci por ocioso acaso. A ti vim encontrar porque era preciso.” (1946)
”Seriam duas alegrias enormes: a chegada de ARA e a chegada de SAGARANA. (Mas, em caso de perigo – TÓI! Tói! Tói! – joga fora o Sagarana e venha só a ARA, que é trezentos bilhões de vezes mais importante para mim.” (24/3/1946)
”Para mim tuas cartas são como marmelada, doce de laranja, aipim, manjar branco, artigo elogiando ‘Sagarana’ no suplemento do jornal… Oh, Ara, que feitiço é esse?” (24/9/1946)
”Serás tudo para mim: mulher, amante, amiga e companheira. Sim, querida, hás-de ajudar-me, ao escrever os nossos livros. Não só passarás à máquina o que eu escrever, como poderás auxiliar-me muito. Tu mesma não sabes o que vales. Eu sei. Sei, e sempre disse, que tens extraordinário gosto, para julgar coisas escritas. Muito bom gosto e bom senso crítico. Serás, além de inspiradora, uma colaboradora valiosa, apesar ou talvez mesmo por não teres pretensões de ‘literata pedante’. E estaremos sempre juntos, leremos juntos, passearemos juntos, nos divertiremos juntos, envelheceremos juntos, morreremos juntos.” (6/11/1942)
”Assim, querida, ‘chérie’, eu me despeço. Com um abraço tão forte que depois de abraçada você ficará ainda presa contra o meu corpo e só com dificuldade poderá se desprender. Então eu beijarei a luz dos teus olhos e o riso da tua boca. Amo-a, Ara.”
(Publicado na Revista Época em 05/09/2008)