Clínica de Cuidado: precisamos do seu apoio

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Escuta, tratamento e documentação do sofrimento dos refugiados produzidos por Belo Monte

 

Belo Monte é vista por muitos como fato consumado, mais um trágico capítulo da história do Brasil que ficou para trás. Mas e o sofrimento vivido agora, neste exato momento, pelos atingidos, por aqueles cuja vida virou água? Não importa? Que tipo de gente somos nós se o sofrimento do outro não nos comove nem nos move? Se não for por ética, que seja por gratidão: se ainda existe floresta amazônica em pé, é a estas populações que devemos.

Belo Monte foi construída em nome de todos os brasileiros. A questão é: o que vamos fazer por quem paga a conta da destruição do Xingu com a vida?

https://www.catarse.me/refugiadosdebelomonte

 

Amigos,

Escrevo para pedir a sua ajuda para um projeto ao qual tenho me dedicado há pelo menos um ano. Acompanho Belo Monte desde muito tempo, mas quando as pessoas começaram a ser expulsas de suas casas, ilhas, beiradões etc pelo processo perverso da construção da hidrelétrica, o sofrimento tomou outras palavras e formas.

João e Raimunda (Foto: Lilo Clareto/Arquivo Pessoal)

João da Silva e Raimunda (Foto: Lilo Clareto/Arquivo Pessoal)

Ficou muito claro para mim que eu poderia seguir contando as histórias, como sigo e seguirei, mas havia algo que precisava acontecer lá e que não estava acontecendo. Parte das pessoas está em grande sofrimento psíquico. Muitas adoecem. Como João da Silva, que teve dois AVCs, o primeiro deles no escritório da Norte Energia, quando soube que seria expulso e receberia um valor insuficiente para recompor a vida.

O sofrimento aparece de várias maneiras e também em doenças como AVC, diabetes, hipertensão etc. Em geral, como é comum nesta época de vida patologizada, as doenças que surgem são tratadas como desconectadas do processo violento da implantação da hidrelétrica. E, assim, Estado e Empreendedor são desresponsabilizados. Historicamente, a dimensão da saúde mental é esquecida em processos como este. Se questões explícitas são encobertas, esta então…

Comecei a bater em algumas portas e fui escutada por algumas pessoas da área da saúde mental que respeito muito. Entre elas, os profissionais deste grupo com o qual trabalho neste dispositivo. Estamos construindo um projeto de saúde mental junto aos atingidos pela hidrelétrica, coordenado por Christian Dunker, Ilana Katz e por mim, que chamamos de Clínica de Cuidado (escuta, tratamento e documentação do sofrimento dos refugiados produzidos por Belo Monte).

Até agora, nas incursões prévias, pagamos do próprio bolso. Nestas primeiras pequenas expedições, escutamos os movimentos sociais e ambientais que atuam na região, assim como homens e mulheres atingidos, e aprendemos com eles. Também foram contatados e ouvidos os profissionais que atuam na rede de saúde mental do SUS.

Agora, na nova etapa, a empreitada é maior. Precisamos de apoio. Assim, lançamos um projeto de crowdfunding: Refugiados de Belo Monte.

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Foto: Lilo Clareto /Arquivo Pessoal

É nossa primeira tentativa de financiamento (pelo) público. Então, estamos aprendendo. Para mim, também, é uma nova inserção. E vem do sentimento de que estamos num momento tão grave da história do Brasil e do mundo que fazer o que a gente sabe já não é suficiente. É preciso inventar outros jeitos de ser e de estar no mundo — e também outras formas de fazer o que a gente sabe.

Pra muita gente Belo Monte já é “fato consumado”, como se as pessoas que hoje lá sofrem pudessem simplesmente ser deixadas para trás. Se Belo Monte vai virando fato consumado, em parte isso acontece por conta da omissão da população do centro-sul do país.

Assim, me parece também que temos um compromisso ético no movimento de reparação. Ainda que a reparação total seja impossível, como bem sabemos, o movimento de reparar tem efeitos profundos tanto para a comunidade quanto para o indivíduo, além de ser um ato político efetivo.

A meta do financiamento do projeto no Catarse é alta e é no tudo ou nada.

Aqui está o link: https://www.catarse.me/refugiadosdebelomonte

Se fizer sentido para você, seria muito importante seu apoio e a divulgação nas suas redes e nos seus espaços.

Muita gente me pergunta, depois de ler minhas reportagens sobre os refugiados de Belo Monte: “O que eu posso fazer?”. Bem, estamos tentando nos responsabilizar e construir uma resposta. E precisamos do seu apoio.

Muito obrigada.

grande abraço, Eliane

Assista ao vídeo com a proposta do nosso projeto:

https://www.catarse.me/refugiadosdebelomonte

 

 

Para conhecer um pouco mais sobre o sofrimento dos refugiados de Belo Monte, leia também:

João e Raimunda (Foto: Lilo Clareto/Arquivo Pessoal)

João e Raimunda (Foto: Lilo Clareto/Arquivo Pessoal)

22/09/2015
Vítimas de uma guerra amazônica
Expulsos por Belo Monte, Raimunda e João tornam-se refugiados em seu próprio país

09/05/2016
Dilma compôs seu réquiem em Belo Monte
O julgamento mais rigoroso da presidente e do PT, no tempo da História, será feito por brasileiros como João da Silva

Otávio das Chagas (Foto: Lilo Clareto/Acervo Pessoal)

Otávio das Chagas (Foto: Lilo Clareto/Arquivo Pessoal)

16/02/2015
O pescador sem rio e sem letras
À beira de Belo Monte, uma história pequena numa obra gigante. Que tamanho tem uma vida humana?

18/07/2016
Casa é onde não tem fome
A história da família de ribeirinhos que, depois de expulsa por Belo Monte, nunca consegue chegar

Glossolalia: livro conta história de refugiados de Belo Monte

Gostaria de coglossolalia capampartilhar o lançamento de Glossolalia, uma coletânea do PEN America lindamente editada por Diane Mehta, Eric Becker e Mirna Queiroz. Sou uma das escritoras brasileiras convidadas. Na semana passada tivemos a notícia de que Glossolalia, cujo lançamento aconteceu há pouco, já teria uma reimpressão devido ao grande interesse das livrarias americanas.

Participo com uma reportagem sobre João e Raimunda, refugiados de Belo Monte, na bela tradução de Diane Grosklaus Whitty.

GLOSSOLALIA

 

Confira um trecho da reportagem em inglês:

 

João asks Raimunda to die with him in sacrifice

João e Raimunda. Lilo Clareto

João e Raimunda. Fotos: Lilo Clareto/Arquivo Pessoal

The saga of João and Raimunda comes to a head against the backdrop of a massacre acknowledged neither by the Brazilian government nor by most Brazilians. As their two-act drama unfolds, it is in the forest that they search for a way out, swept along by the current of the Xingu, one of the Amazon’s most biodiversified rivers. And there they find their futures, like the river, dammed up. A man and a woman, just two among the thousands forced out by the construction of Belo Monte, announced as the world’s third-largest hydroelectric project.

João e Raimunda (Foto: Lilo Clareto)

Today, it is as refugees from their own country that João and Raimunda wander a territory they no longer recognize and where they do not recognize themselves. Their bodies bear the imprint of a historic crossroads, of a country that has reached the present after belonging to the future for so very long, only to find itself mired in the past. Their story is the epilogue of a political party elected to power on the promise that it would deliver dignity to the poorest and most vulnerable, but which betrayed them, here in the region lying farthest from the center of Brazil’s political and economic power. Their story also reveals the anatomy of a distortion: that of living in a formal democracy while subject to powers above the law. When victims suffer violence that goes unacknowledged, it inflicts even greater pain on them, and they are violated all over again by a feeling of unreality. When their world convulsed, Raimunda and João chose different destinies.

Raimunda (Foto: Lilo Clareto)

Raimunda opted to live, even though she was shattered to pieces. João doesn’t know how to live. For him, meaning lies solely in sacrifice through death.

João and Raimunda have arrived at this impasse.

Leia AQUI o artigo completo sobre João e Raimunda em inglês.

E AQUI a versão original, em português. 

 

A edição digital do livro está disponível para venda AQUI.

glossolalia digitalParticipam da coletânea “Women writing Brazil” (Mulheres escrevendo o Brasil), da Glossolalia: Eric M. B. Becker, Eliane Brum, Alison Entrekin, Orides Fontela, Marília Garcia, Daniel Hahn, Noemi Jeffe, Hilary Kaplan, Maurinete Lima, Adriana Lisbosa, Maria Ester Maciel, Ana Martins Marques, Betty Mindlin, Julia Moraes, Zoë Perry, Flávia Rocha, Alice Sant’Anna, Lygia Fagundes Telles, Elvira Vigna, Diane Grosklaus Whitty

Confira outros textos do livro:

Three Poems
Marília Garcia, Tradução. Hilary Kaplan

mouthwatering / now a bit emotional / now i’m a professional / now it’s your turn

 

Seminar on the Extermination of Rats
Lygia Fagundes Telles, Tradução: Eric M. B. Becker

A thick wall as though a bag of rubbery rocks had been emptied from the roof now rolled in from every side in a rumble of tiny legs, squeaking, and hundreds of black
eyes aglow.

 

 

 

Casa é onde não tem fome

O que é uma casa é uma das principais questões que atravessam a construção da hidrelétrica de Belo Monte. Acompanho Otávio das Chagas, o pescador sem rio e sem letras, pelos seus descaminhos depois de ser expulso da ilha com sua família. Ele já está na terceira não-casa. Em todas elas, ele e sua família passam fome. A fome eu não escrevo. É irredutível às palavras.

Quem determina quem é aquele que é?

A resposta desenhará o futuro dos ribeirinhos do Xingu. A história não acaba aqui.

Minha coluna no El País:

Foto: Lilo Clareto?Acervo Pessoal

Foto: Lilo Clareto/Acervo Pessoal

A história da família de ribeirinhos que, depois de expulsa por Belo Monte, nunca consegue chegar

Otávio das Chagas, o pescador sem rio e sem letras, não consegue chegar em casa. Desde que ele e sua família foram expulsos de sua ilha pela hidrelétrica de Belo Monte, Otávio já está na terceira casa. Mas não consegue chegar. Porque para ele aquela terceira ainda não é uma casa. Como não era a primeira nem era a segunda. Sem casa, Otávio não tem mundo. Sem mundo, um homem não tem onde pisar. Os conhecidos avisam: você já viu, seu Otávio está encolhendo. E ele está, porque é isso o que acontece com os homens sem mundo.

O que é uma casa é a pergunta que atravessa a construção da hidrelétrica de Belo Monte, no Xingu, no Estado do Pará. A pergunta que não foi feita no cadastro nem em momento algum. É a pergunta que diz quem aquela pessoa é. E onde ela precisa viver para ser o que é. Quando é o empreendedor, o novo nome do colonizador na Amazônia, que determina o que é uma casa, com base no seu mundo e nas suas referências, em geral forjadas na realidade bem diversa do centro-sul do Brasil, a violência se instala. E vidas são aniquiladas.

Acompanho Otávio das Chagas desde 2014. Naquele momento, ele, sua mulher Maria e os nove filhos estavam na primeira casa que não podia ser casa. Uma casa de madeira alugada numa periferia violenta de Altamira. Em 2015, mudaram-se para uma “unidade” de Reassentamento Urbano Coletivo (RUC), nome dos conjuntos habitacionais padronizados que a Norte Energia construiu para abrigar as vítimas de “remoção compulsória”. Em 2016, dividiram-se: os dois filhos mais velhos permaneceram na casa padronizada, um deles já com sua própria família; Otávio, Maria e os filhos mais jovens transferiram-se para uma casa doada por um grupo de austríacos que se comoveu com as tribulações do pescador sem rio e sem letras.

A primeira não-casa: a família de Otávio das Chagas na casa alugada na periferia de Altamira, em novembro de 2014. Foto: Lilo Clareto/Acervo Pessoal

A primeira não-casa: a família de Otávio das Chagas na casa alugada na periferia de Altamira, em novembro de 2014. Foto: Lilo Clareto/Acervo Pessoal

Todas as vezes em que bati em cada uma das três portas, eles passavam fome. Tinham teto, mas passavam fome. Era oficialmente uma casa, mas passavam fome. Em todas as vezes, só havia água na geladeira. Na semana passada, havia também uma cebola pequena. Fome é algo que fracasso em descrever. A fome não se escreve. Carolina Maria de Jesus (1914-1977), a escritora brasileira que conhecia a fome, escreveu: “A fome é amarela”.

Maria, a mãe, tenta fazer caber nas palavras o que sente quando chega a passar até dois dias sem comer: “Dá uma dor no estômago, uma tontice”. É uma pista, mas ainda não é a fome por escrito. “Eu não sei o que fazer quando as crianças ficam pedindo por comida”, ela continua. É outra pista, mas ainda não é a fome por escrito. Jamais será. A fome é algo tão avassalador que irredutível às palavras. Encaro os olhos fundos de Adriano, o menino de sete anos, e entendo sem letras. Entendo, mas sigo sem alcançar. Meu olhar não afunda nos olhos de poço, me falta a experiência. Adriano é mais uma doce criança com olhos de velho deste mundo. Quando o encontrei na segunda casa, a do RUC, em 2015, era o dia do seu aniversário. E não havia sequer um pedaço de pão para Adriano comer.

Otávio das Chagas e sua família viviam há mais de 30 anos na Ilha de Maria, uma das centenas de ilhas do Xingu. Viver talvez não seja a palavra exata. Eles pertenciam à ilha de Maria. É inversa essa questão da posse. E não apenas por questões da lei. Mas porque é a ilha que se apossa das pessoas, que lhes conforma o corpo e a existência, que lhes desenha a arquitetura do tempo. Na ilha, Otávio, Maria e seus filhos sabiam. Quando expulsos para a “rua”, nome que os ribeirinhos agroextrativistas de várias regiões amazônicas dão à “cidade”, são esvaziados de saber. Assim, essas casas, na “rua”, serão de certo modo sempre “rua” – e não casa.

Otávio das Chagas explica: “Pra roçar uma juquira, pra trabalhar de roça, pra toda coisa de mato, eu sou profissional. Peixe, eu sou profissional também. Mas pras coisas da rua, a gente não sabe. Meus menino ainda sabe ler, mas é só uma coisinha. Não tem vida pra nós aqui”. Maria completa: “Aqui na rua é tudo no dinheiro. Se não tem dinheiro, não come. Até a água é paga, todo mês 120 real”.

A segunda não-casa: Otávio das Chagas e a mulher Maria numa unidade de Reassentamento Urbano Coletivo (RUC), na periferia de Altamira, em setembro de 2015, com as plantas que restaram. Foto: Lilo Clareto/Acervo Pessoal

A segunda não-casa: Otávio das Chagas e a mulher Maria numa unidade de Reassentamento Urbano Coletivo (RUC), na periferia de Altamira, em setembro de 2015, com as plantas que restaram. Foto: Lilo Clareto/Acervo Pessoal

Quando são expulsos da ilha a qual pertencem, Otávio, Maria e seus filhos já não reconhecem nem se reconhecem, porque a ilha era também espelho. Se alguém é obrigado a deixar sua terra por conta de uma guerra, de um terremoto ou da fome, haverá sempre a terra que ficou, haverá ruínas, haverá os mortos ali enterrados para dar conta do que foram, mesmo que nunca possam voltar. Otávio, Maria e seus filhos perderam a materialidade do que viveram, a memória física do que eram, do que são. Tudo o que dizia deles virou água pela força de Belo Monte. Da ilha afogada não há sequer um retrato. Restou a eles apontar as cicatrizes que documentam uma vida no único território que lhes restou: o do próprio corpo.

Desde então, eles pisam “na rua”, mas não encontram o chão. Essa experiência desestruturante é de difícil compreensão para aqueles que sempre têm para onde voltar. É penosa de entender mesmo quando se quer entender. Mas quando os colonizadores sequer percebem que é necessário compreender, caso dos protagonistas da hidrelétrica, seja como governo, seja como empresa, resta só a violência. E ela vai matando aos poucos.

A terceira não-casa: Otávio das Chagas, Maria e os filhos menores na casa doada por uma família austríaca que se comoveu com a história do pescador sem rio e sem letras, em julho de 2016. Foto Lilo Clareto/Acervo Pessoal

A terceira não-casa: Otávio das Chagas, Maria e os filhos menores na casa doada por uma família austríaca que se comoveu com a história do pescador sem rio e sem letras, em julho de 2016. Foto Lilo Clareto/Acervo Pessoal

Leia o texto completo na minha coluna no El País

 

Leia mais artigos, entrevistas e reportagens sobre este tema, aqui:

16/02/2015
O pescador sem rio e sem letras
À beira de Belo Monte, uma história pequena numa obra gigante. Que tamanho tem uma vida humana?

07/07/2015
Belo Monte, empreiteiras e espelhinhos
Como a mistura explosiva entre o público e o privado, entre o Estado brasileiro e as grandes construtoras, ergueu um monumento à violência, à beira do Xingu, na Amazônia

14/09/2015
O dia em que a casa foi expulsa de casa
A maior liderança popular do Xingu foi arrancada do seu lugar pela hidrelétrica de Belo Monte, a obra mais brutal –e ainda impune– da redemocratização do Brasil

Foto: Lilo Clareto

Foto: Lilo Clareto

22/09/2015
Vítimas de uma guerra amazônica
Expulsos por Belo Monte, Raimunda e João tornam-se refugiados em seu próprio país

João e Raimunda (Foto: Lilo Clareto)

Foto: Lilo Clareto

10/05/2016
Dilma compôs seu réquiem em Belo Monte
O julgamento mais rigoroso da presidente e do PT, no tempo da História, será feito por brasileiros como João da Silva

Foto: Carolina Reis /ISA/Divulgação

Foto: Carolina Reis /ISA/Divulgação

01/12/2014
Belo Monte: a anatomia de um etnocídio
A procuradora da República Thais Santi conta como a terceira maior hidrelétrica do mundo vai se tornando fato consumado numa operação de suspensão da ordem jurídica, misturando o público e o privado e causando uma catástrofe indígena e ambiental de proporções amazônicas

11/04/2016
O que Belo Monte delata sobre todos os lados

Quando a narrativa da propina se impõe sobre a da violação de direitos humanos, as contradições em jogo neste momento histórico são denunciadas

Foto: Lilo Clareto

Foto: Lilo Clareto

A Casa Grande de Temer tem as bênçãos de Sarney e Malafaia, o velho e o novo coronel

Temer fala em “pacificação do Brasil”, mas com paz só para os mesmos de sempre. A esta tentativa de retorno ao arcaico “Ordem e Progresso”, negros e negras levantaram cartazes diante da FIESP, a “Casa Grande Moderna”. Em um deles, a resposta: “Se a paz não for para todos, ela não será para ninguém”.

Esta coluna do El País tem três atos: o dos negros diante da FIESP, uma entrevista com Eugênio Lima sobre por que a FIESP é a Casa Grande Moderna, e minhas próprias reflexões sobre este governo que se inicia com as bênçãos de Sarney e de Malafaia.

Há tanto para entender neste momento, mas o mais urgente talvez seja investigar com muito mais profundidade o projeto político das igrejas evangélicas, assim como suas repercussões sobre a vida cotidiana. A capacidade de ocupação de poder da bancada evangélica tem se mostrado muito mais acelerada do que nossa capacidade de análise.

Protesto na avenida Paulista, no dia 13 de maio. Foto: João Luiz Guimarães

Protesto na avenida Paulista, no dia 13 de maio. Foto: João Luiz Guimarães

As elites que apoiam o impeachment ainda não compreenderam: seus privilégios continuarão a ser contestados

Primeiro ato: negros protestam contra o racismo diante da FIESP

Sexta-feira, 13 de Maio de 2016. Avenida Paulista, vão do MASP (Museu de Arte de São Paulo), 12h30. Um grupo de homens negros e de mulheres negras se organiza para marcar com um ato chamado Em Legítima Defesa o momento do Brasil e os 128 anos da abolição da escravatura no país. “O racismo é golpe”, diz o DJ e ator-MC Eugênio Lima. “Ele tira o pertencimento de toda uma população em detrimento de outra.” Eugênio lembra que os afrodescendentes são maioria no Brasil: “A população afrodescendente é 53% da população brasileira”. Negros, negras e negrex – o termo transgênero — representam a si mesmos no ato “no segundo dia do governo usurpador”. Cada um deles levanta um cartaz. Caminham em fila até o que chamam de “Casa Grande Moderna”: o prédio da FIESP, epicentro dos movimentos pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff, quartel-general dos verde-amarelos. Diante do imponente edifício da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, postam-se um ao lado do outro e erguem suas frases em absoluto silêncio.

“USP sem cotas é golpe. Rota é golpe. Meritocracia é golpe. Luana morta é golpe. Direita racista é golpe. Feminicídio e hipersexualização da mulher negra é golpe. Ausência de negros nos espaços públicos é golpe. Machismo é golpe. Eu ser suspeito é golpe. Teatro sem negro é golpe. Blackface é golpe. Mulata é golpe. Me seguir no mercado é golpe. Medo branco.” E a pergunta:

– Abolição é golpe?

Manifestantes protestam em frente à sede da FIESP, na avenida Paulista. Foto: João Luiz Guimarães

Manifestantes protestam em frente à sede da FIESP, na avenida Paulista. Foto: João Luiz Guimarães

Um dia antes, Michel Temer (PMDB) havia tomado posse como presidente interino, após o afastamento da presidente Dilma Rousseff (PT) pelo Senado, anunciando um “governo de salvação nacional”. Compôs um ministério inteiramente branco e colocou como ministro da Justiça e da Cidadania Alexandre de Moraes, ex-secretário de Segurança Pública do governador Geraldo Alckmin (PSDB), relacionado por grande parcela dos movimentos negros e dos ligados aos direitos humanos como o mais recente responsável pela política de extermínio da juventude negra pela polícia do Estado de São Paulo.

A cena perturba os motoristas no trânsito lento da Avenida Paulista. Nas calçadas começa a juntar gente que volta do almoço ou se dirige a algum restaurante. “Que bobagem, não tem racismo no Brasil” e “Vão trabalhar, vagabundos!” são as frases mais ouvidas na plateia espontânea. Ao meu lado, uma dupla de amigos para. Um deles diz, em tom bem alto: “Não existe nada disso! Que frescura!”. Me apresento como jornalista e pergunto: “Por quê?” Ele apresenta-se como José Batista Sobrinho, 76 anos, médico oftalmologista, eleitor do PSDB. E responde:

– Esse racismo no Brasil não existe. Quero dizer, racismo existe no mundo inteiro. Mas no Brasil não é acentuado. Agora, por exemplo: você jamais se casaria com um preto.

– Por que o senhor acha isso?, pergunto.

– Parece que é algo internamente que você, como branca, não aceita. Porque você acha que essa raça é mais feia que a sua raça. Mas não é por isso que você vai discriminá-los. É uma pessoa igual a você. Frequenta a minha casa, frequenta a minha mesa, não tem problema nenhum. É uma pessoa igual a mim. Mas eu não me casaria com uma preta.

– Por quê?

– Não gosto. Tem alguns componentes que eu não gosto, coisas íntimas. Preferia uma pessoa diferente, mais clara. Questão de afinidade, de empatia. Mas não é por isso que vou discriminá-las.

José Batista Sobrinho.  Foto: Eliane Brum

José Batista Sobrinho. Foto: Eliane Brum

– O senhor é a favor ou contra o impeachment da presidente?

– É lógico que sou a favor. Ela quebrou o país. A convulsão social taí. E quem é culpado disso é o PT. Não sou contra o Bolsa Família. Mas tinha que ser Bolsa-Escola, como era no tempo da Ruth Cardoso. Agora é Bolsa-Voto. Vou lhe dar o nome de uma cidade da Bahia que não tem ninguém trabalhando, todo mundo com Bolsa Família. No Nordeste, você não encontra uma doméstica pra trabalhar, porque tudo agora tem Bolsa Família. Mas não sou de Direita, não, não aceito isso.

– Como o senhor se define?

– Sou um liberal correto.

Três jovens mulheres, duas brancas e uma negra, observam o protesto. Os comentários são altos o suficiente para que se possa ouvi-los: “Quero ver esses negões aí na hora de casar. Se vão casar com essas negonas aí. Querem é brancas”. Risadas.

O grupo começa a repetir, alto, as frases dos cartazes. Na calçada, um homem grita para os motoristas dos carros: “Buzina! Buzina! Bu-zi-na!”. Quer que as buzinas abafem as vozes que denunciam o racismo. De repente, berra, furioso, para uma mulher num carro: “Enfia no cu, sua vaca!”.

Pergunto a ele por que disse isso. Ele apresenta-se como Fábio Andrade da Silva, 46 anos, segurança. E responde:

– Ela mostrou o dedo pra mim. É falta de elegância, é petista, é maloquera.

– E o impeachment?

– Sou a favor! Tou acampado aqui (na FIESP) há 58 dias.

– E o que acha dessa manifestação contra o racismo?

– São tudo desempregado, tudo com cargo comissionado do PT.

Fábio Andrade da Silva. Foto: Eliane Brum

Fábio Andrade da Silva. Foto: Eliane Brum

Faço uma foto dele. Ele comenta, referindo-se às mulheres negras:

– Eu não vou gastar minha bateria (do celular) pra tirar foto dumas mundrunga dessas aí.

– O que é mundrunga?

– Não sabe? Vá no dicionário que vai saber.

E sai gargalhando com um amigo.

O grupo se retira em silêncio. E volta para o MASP. Em legítima defesa.

Leia o texto completo na minha coluna no El País

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