Em defesa da desesperança

Diante da atual conjuntura e de um ano que não acabará, é hora de superar a esperança

A esperança é consenso. Ao mesmo tempo amálgama, exortação e virtude. Aquele que acusa o outro de causar desesperança apresenta-se, ele mesmo, como um portador de esperança. Jamais, sob hipótese alguma, um desesperançado. O desesperançado é um pária político, é um pária social, é até mesmo um pária doméstico. O desesperançado não teria nada a oferecer a si mesmo, ao outro ou ao país. Só encontra alguma compaixão se, em vez de desesperançado, acatar o diagnóstico de “depressivo” e passar a consumir drogas lícitas para se “curar”. Aí, já não é mais desesperançado, mas “doente”. Para o doente, há perdão.

A esperança é a crença que une todos os credos, inclusive a falta de credo. Exige fé e, portanto, adesão. Se você a nega, torna-se um risco para todos os crentes.

Quero aqui fazer uma defesa da desesperança, neste momento tão agudo do Brasil.
Antes, algumas considerações sobre o abismo.

1. A falsa polarização

O ato contra o impedimento de Dilma Rousseff (PT) colocou mais gente nas ruas do Brasil que o ato a favor do impedimento. Nesse enfrentamento pontual, os “contra o golpe” venceram os “a favor do impeachment”. Entre “a favor do impeachment” e “contra o golpe”, onde estamos? No reino da falsa polarização, que só serve para reduzir a política e encobrir o buraco maior, aquele que continuará bem aqui, com ou sem o impedimento da presidente. É aí que reside a obscenidade.

O país parece condenado a reencenar a polarização, como uma espécie de encantamento macabro, um looping maldito. De certo modo, o que acontece agora, com o tema do impedimento, é um revival da campanha eleitoral de 2014. Dilma ganhou de Aécio Neves (PSDB) por uma margem pequena. Possivelmente teria perdido, não fosse o voto útil ou o voto crítico de parte da esquerda que, apesar de não ter nenhum respeito pelo seu primeiro mandato, acreditou que ela era a opção menos ruim. Ou acreditou na famosa “guinada à esquerda”.

Naquele momento, as redes sociais tinham se transformado numa carnificina, voava pedaços de esquerda para todos os lados. Quem não apoiava Dilma era considerado “traidor”. Amigos romperam, casamentos balançaram, tornara-se difícil andar por qualquer rua, virtual ou concreta, sem sair com a alma ou com o corpo esfolado. Há quem chegue ao Natal do ano seguinte sem ter se reconciliado. Ainda assim, Dilma ganhou. E ainda assim 37 milhões – a soma dos votos nulos e brancos e das abstenções – não votaram nem em Dilma nem em Aécio. A tese da polarização oculta diferenças e complexidades, torna homogêneo o que não é. Falsifica a conjuntura do país. Escrevi sobre isso no artigo intitulado “A mais maldita das heranças do PT“, publicado após a primeira manifestação contra Dilma Rousseff e o partido, em março de 2015.

Hoje, há gente no próprio PT que lamenta a vitória, convicta de que o melhor seria ter mentido menos na campanha, mesmo à custa de uma derrota, e se recompor na oposição para 2018. Há quem acredite que teria sido melhor para o PT e melhor para o país, que poderia se beneficiar mais com o partido na oposição do que no poder. Mas, como se sabe, o “e se” não serve para nada.

Ao final do primeiro ano do segundo mandato de Dilma Rousseff, o pior primeiro ano de qualquer governo, pelo menos desde a redemocratização do país, a falsa polarização é reeditada em torno do “a favor do impeachment” versus “contra o golpe”. Tem acontecido algumas escaramuças nas redes sociais, tanto à direita quanto à esquerda. À direita, porque parte não aderiu à tese do impedimento por conta de vários fatores, entre eles o fato de que o comandante do processo é Eduardo Cunha, nossa versão particular de um vilão do Batman. À esquerda, porque muitos consideram impossível defender o governo de Dilma Rousseff. Ensaiou-se um “traidor” aqui, outro lá, aos que se recusaram a engrossar as fileiras do “a favor do impeachment” ou do “contra o golpe”, mas com muito menos convicção do que na campanha eleitoral. Uma frase que circula nas redes talvez resuma o impasse da parcela da sociedade que desafia a polarização: “Há hoje duas coisas indefensáveis: o impeachment e o governo de Dilma Rousseff”.

Ainda assim, parte dos movimentos sociais foi às ruas defender a bandeira de que o impedimento é um golpe disfarçado, para que a presidente compreendesse, finalmente, “quem estava com ela”. A tal “guinada à esquerda”. A queda de Joaquim Levy do Ministério da Fazenda é comemorada por alguns setores como um primeiro resultado desse apoio. Mas o histórico de Dilma Rousseff não é bom neste quesito. A cada vez que a coisa aperta, seja quando corria o risco de perder a eleição, ou agora, quando corre o risco de ser tirada do poder por impedimento, dá para ouvir o grito: “Chama os movimentos sociais pra defender o governo!”.

Com eles, torna-se possível apresentar a narrativa como uma luta entre forças conservadoras contra progressistas. Se valerem as experiências anteriores, em seguida a presidente esquece-se de que precisa conversar com as bases. Dilma é tão explícita na sua falta de paciência que, no discurso de vitória, em 2014, irritou-se com aqueles que, depois de terem dado o sangue na eleição (em alguns casos literalmente), interrompiam sua fala com aplausos e gritos de comemoração.

A realidade, porém, não se reduz ao pastiche que querem fazer dela.

2. Restou governo para ser defendido?

A pergunta mais difícil para quem não adere à tese do impeachment é: há governo a ser defendido? O que se perde, de fato, sem Dilma Rousseff na presidência?

A questão da legalidade, convém deixar explícito, não é pequena. Dilma venceu a eleição, e quem não está gostando vai ter de esperar a próxima para mudar o governante. Essa é uma lição importante da democracia: mesmo descobrindo que seu voto foi um desastre é preciso se responsabilizar por ele como gente grande. Mesmo perdendo, é preciso respeitar o voto da maioria. Respeitar essa regra básica é fundamental, mais ainda para uma democracia tão frágil como a brasileira. Há dúvidas consideráveis sobre a legitimidade das razões alegadas para um impedimento, do ponto de vista legal. E, ainda que se saiba que um impedimento é um rito muito mais político do que legal, vale a pena repetir que isso não é pouco nem é menor. O impedimento de um presidente é algo sério demais para não haver um consenso mínimo sobre a legitimidade do pleito, como havia no caso de Fernando Collor de Mello. Ao ampliar-se ainda mais as fissuras, em lugar do enfrentamento honesto de nossos conflitos históricos, pode se tornar mais difícil para o país seguir adiante.

Dito isso, vale a pena se deter sobre a pergunta: o que restou desse governo e dessa presidente? Para se manter no poder, Dilma Rousseff e o PT fizeram concessões além de qualquer limite, romperam a barreira da decência. Não entregaram tudo, mas quase. Dá para escrever vários livros sobre o balcão de chantagens em que foi negociado o inegociável, temas cruciais para o país comercializados como se fossem salsichas. No vale-tudo ao qual o PT se atirou diante da possibilidade concreta de perder o poder, o PT perdeu o governo. Não todo, mas é possível que tenha chegado ao ponto do não retorno. Assim, o final de 2015 desvela um cenário trágico: defender o quê, afinal? Como defender o governo se já não há governo para ser defendido?

Este é um dilema que tem tirado o sono e a razão mesmo de militantes fiéis. Talvez o exemplo mais emblemático seja a entrega do Ministério da Saúde ao PMDB na última reforma ministerial, feita sob medida para ter apoio num Congresso hostil, em que mesmo os bagrinhos viraram tubarões diante do cheiro do sangue. Não só o ministério de maior orçamento, como um ministério estratégico para políticas públicas essenciais e para o Sistema Único de Saúde (SUS), do qual dependem dezenas de milhões de brasileiros para viver em vez de morrer. Um ministério estratégico para causas muito caras ao PT, aquelas de identidade, as que foram a própria razão de existir do partido.

Os efeitos do desmantelamento do ministério e das políticas públicas em curso na área da saúde, para ficar apenas neste caso entre tantos, só começam a aparecer. Em 10 de dezembro, o novo ministro da Saúde, o psiquiatra Marcelo Castro (PMDB), nomeou para a Coordenação de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas um nome que muitos acreditavam enterrado num passado sombrio: Valencius Wurch Duarte Filho. Sem deixar de reconhecer os limites da reforma psiquiátrica, que até hoje não foi concluída, a escolha de Wurch é um escárnio. Por si só já configura, simbolicamente, um retrocesso de pelo menos duas décadas. Wurch foi diretor nos anos 90 da Casa de Saúde Dr. Eiras, em Paracambi, no Rio de Janeiro, apontada como o maior manicômio privado da América Latina. Depois de várias denúncias de violações de direitos humanos ao longo dos anos, no contexto da luta antimanicomial e da reforma psiquiátrica, o hospício finalmente foi fechado, em 2012. As cenas encontradas lá evocavam um campo de concentração.

Mas eis que o passado é esquecido – ou lembrado? – e Valencius Wurch reaparece em 2015 não mais no comando de um manicômio, mas de algo muito maior, ao ser nomeado para comandar a pasta que determina a política de saúde mental do país. Diante dos protestos em vários estados e capitais do Brasil e também de figuras de referência internacional na área, o ministro Marcelo Castro invocou a “Ciência”. A Ciência é como Deus. Na falta de argumento, há sempre quem chame uma ou outro.

No campo minado – e altamente lucrativo, tanto para quem ganha dinheiro com internações psiquiátricas como para a indústria farmacêutica –, é comum uma parcela dos psiquiatras lançarem mão da “Ciência” para defender seu feudo diante do avanço de outras abordagens sobre o sofrimento psíquico. Desta vez, invocar a “Ciência” ou uma escolha “técnica” não funcionou, já que o desempenho “científico” de Wurch é pífio e o de seu antecessor destituído, Roberto Tykanori Kinoshita, bastante vistoso. Funcionários, pacientes e familiares ocuparam as salas da saúde mental no ministério como ato de resistência.

A escolha de um ex-diretor de manicômio para o maior cargo da área da saúde mental revela que hoje, em Brasília, quando todos os limites já foram superados, impera a certeza de que é possível dizer e fazer qualquer coisa e seguir incólume. Mas há um aspecto interessante nesta escolha do ministro que levou o ministério no balcão das chantagens: diante da perversão de sua própria nomeação, nada mais lógico do que chamar um diretor de hospício. Afinal, a escolha de Valencius Wurch pode ter sido apenas um ato-falho do psiquiatra.

Há exemplos como este em várias áreas caras à história do PT, e hoje os focos de resistência onde ainda restam alguns princípios de base são cada vez mais escassos. Mesmo que o impedimento não se concretize, e mesmo que Dilma Rousseff termine o mandato para o qual foi eleita, parece uma possibilidade remota na atual conjuntura que ela recupere o poder de fato. E também não se sabe o que restou do PT, no sentido daquilo que fez o PT representar o projeto político de pelo menos duas gerações de esquerda.

Políticas públicas como as que eram levadas adiante na área de saúde mental, para ficar no mesmo exemplo, era no que muitos se agarravam para dizer que ainda fazia diferença um governo do PT. Se até isso foi vendido no balcão de salsichas, o que sobra? Qual é o porquê? Se em nome da “governabilidade” perdeu-se o governo, a pergunta é séria e também honesta: restou algo para defender?

3) Quando havia um governo, ele era defensável?

Esta é uma questão ainda mais espinhosa. E não há uma resposta fácil – nem de “sim” ou “não”. Acredito que o Brasil, em muitos aspectos, é melhor depois do PT. Mas é possível dizer que, em vez de enfrentar conflitos históricos, estruturais, do país, a opção do PT no poder, com algumas exceções, foi por acomodá-los. E a acomodação é sempre temporária. Pode-se simplificar (espero que não demais), dizendo que a questão central no Brasil hoje continua a ser a de que, para diminuir a desigualdade, será necessário tocar nos privilégios. Não só econômicos e sociais, mas também culturais. As elites terão de perder – bem mais do que o “direito” de não ter um pobre e preto ao seu lado no avião.

Lula, o conciliador, tentou fazer uma mágica, aquela que todos ganham sem que ninguém tenha de perder. Financiou essa mágica com as commodities e um irrecuperável custo-natureza. A mágica se esgotou, o encanto se desfez. E o Brasil, mais violento hoje, também porque mais gente tem o que perder – e está correndo o risco de perder –, encontra-se diante de sua chaga histórica, que pode ser resumida por um frase que virou quase um mantra: “Se a paz não for para todos, ela não será para ninguém”.

O PT não fez reforma agrária nem tocou na renda dos mais ricos. O desempenho na demarcação de terras indígenas foi vergonhoso, em especial com Dilma Rousseff. O PT também recuou ao enfrentar temas como aborto, homofobia e drogas. E avançou muito pouco no flagelo nacional, fator fundamental de desigualdade, a educação. O slogan “Pátria Educadora”, deste mandato, já nasceu morto pelas mãos dos marqueteiros. A própria ascensão do que se convencionou chamar de “nova classe média” ou “classe C”, na medida de uma inclusão não só, mas principalmente pelo consumo, começa a ficar comprometida pela crise econômica. E o Bolsa Família, obrigatório diante da indigência criminosa de parte da população brasileira, avançou pouco para além da política compensatória.

Isso não significa deixar de reconhecer os avanços de um governo petista, no tempo em que o PT governou. É possível pensar que a ampliação do debate fundamental sobre o racismo, hoje colocado em outros termos, se deve muito ao protagonismo da primeira geração de negros que alcançou a universidade pelas cotas raciais. Parte dos movimentos políticos que hoje emergem, inclusive confrontando a política partidária, podem ser pensados (também) a partir da experiência de inclusão assegurada por ações afirmativas. Não há dúvida de que hoje uma parte da população que tinha pouco a perder tem mais a perder – e quer mais.

A percepção destes avanços, porém, tem sido corroída pela crise política e econômica. Isso fica claro, por exemplo, numa recente pesquisa do Datafolha, ao mostrar que, concretamente, a renda de todos os brasileiros melhorou consideravelmente nos 13 anos do PT. Todos ganharam, mas os mais pobres ganharam mais (129%). Ainda assim, apenas 31% dos brasileiros reconhecem que sua vida melhorou. Essa é a tragédia do partido. Ou uma delas. Perderam, pelo menos temporariamente, a batalha da memória.

A corrupção, por sua vez, não é um dado menor. É fato que ela atravessa a maioria dos partidos brasileiros, como o Mensalão Mineiro, do PSDB, finalmente começa a mostrar – e as investigações da Lava Jato já provaram. Mas também é fato que do PT, que se apresentava como aquele que restauraria a ética na política, se exige, com toda a justiça, muito mais.

É possível defender um partido – e o governo de um partido que se corrompeu ao ser governo –, mesmo que tenha feito avanços importantes para o país? Ou este é um limite ético? Desta pergunta, incômoda, não dá para escapar nem tergiversar.

Mas é na opção pelo tipo de desenvolvimento que o PT se torna, para parte da esquerda, mas não só, indefensável. Toda anatomia que agora se desvela tem sido denunciada por lideranças na Amazônia há muitos anos, quando Lula e depois Dilma estavam no auge da sua popularidade. E recebida com ouvidos surdos, por que quem se importa com os gritos de indígenas e ribeirinhos, afinal? Quem se importa com o que acontece lá na floresta e nas cidades corroídas da região que sempre foi vista pelo centro-sul como um corpo para exploração e exportação de matérias-primas?

O olhar histórico do centro político-econômico do Brasil sobre a Amazônia é o do colonizador, e ainda hoje não mudou. O projeto de Lula e de Dilma para a região revelou-se muito semelhante ao da ditadura militar. A política das grandes obras, na aliança com as grandes empreiteiras que ocupam Brasília desde que a construíram, tem na Usina Hidrelétrica de Belo Monte a sua síntese maior, ainda por ser inteiramente desvendada. É também lá que os mais desamparados foram jogados para fora da lei. E é lá que o processo de conversão de indígenas e ribeirinhos em pobres nas periferias urbanas levanta questões sobre a visão de mundo do partido. É lá ainda, bem longe do centro-sul, que as contradições do PT no poder se revelaram em toda a sua complexidade e muito mais cedo.

Me refiro à Amazônia, mas vale a pena olhar com atenção também para o Nordeste e mais especificamente para a transposição do Rio São Francisco, como obra-símbolo de uma visão de mundo sem nenhuma sensibilidade socioambiental, nenhuma escuta dos que lá vivem, nenhum respeito pelo conhecimento de uma população reduzida pelo poder público a objeto.

Esta é a pergunta mais complicada. Agora não mais o que o PT abriu mão com a justificativa – questionável – da “governabilidade”, uma palavra que foi se tornando mais e mais obscena. Mas a pergunta sobre o que o PT efetivamente escolheu quando tinha todo o capital político para governar.

4) Há fundo no poço sem fundo?

Tem se afirmado que 2015 foi um ano de paralisia. Antes fosse. Andar para trás ainda é andar. O ano de 2015 foi de retrocesso acelerado, e não só no aumento do desemprego e da inflação, ou na queda do PIB. basta ver todos os projetos colocados em pauta graças a Eduardo Cunha e à Bancada BBB (Boi, Bíblia e Bala), sem contar o terrorismo da lei antiterrorismo. Em 2015 se perdeu muito. Conquistas históricas dos trabalhadores foram atingidas. Chantageou-se com a legislação ambiental, ameaçou-se os direitos constitucionais dos indígenas, atacou-se a saúde reprodutiva, retomou-se um conceito de família da Bíblia. E a Licença de Operação de Belo Monte saiu sem o cumprimento de condicionantes.

O ano de 2015 foi também aquele em que as alternativas do espectro político-partidário, que já eram escassas, se arruinaram. Ao embarcar na chantagem do impeachment, compactuando com uma figura sinistra como Eduardo Cunha e fazendo declarações vergonhosas, o PSDB e seus próceres se apequenaram. Mesmo Fernando Henrique Cardoso, que sustentava um lugar simbólico de alguma respeitabilidade, manchou sua imagem. Geraldo Alckmin, Aécio Neves e José Serra perderam qualquer pudor ao escancarar que o impeachment ganhava legitimidade ou não conforme seus respectivos projetos de poder. Algo como “a medida sou eu”.

Com esse comportamento constrangedor, o PSDB, que já tinha perdido muito do respeito que chegou a ter em anos (bem) passados, quando era considerado uma alternativa de centro-esquerda, revelou que apodrece. Restou, como reserva ética, Marina Silva. Mas Marina saiu da campanha de 2014 desgastada, tanto pelos ataques abaixo da linha da cintura do PT quanto por seus próprios erros e contradições – e a Rede, partido que finalmente conseguiu viabilizar, nasceu sem o capital de novidade de quando foi lançada. Se Marina, que até hoje não conseguiu ecoar entre os mais pobres, ainda é capaz de representar uma alternativa para uma parte suficiente dos brasileiros é uma incógnita.

Se a opção imediata é um governo do PMDB de Michel Temer, o vice que entrega cartas “pedalando”, e se a alternativa à chantagem do pemedebista Eduardo Cunha é a do pemedebista Renan Calheiros, pelo menos até a Lava Jato alcançar o presidente nada probo do Senado, o Brasil não chegou ao fundo do poço porque os dias têm provado que o poço não tem fundo.

O problema é menos o agora, e mais o depois. O impasse, como já escrevi, é infinitamente maior do que o impedimento ou não de Dilma Rousseff. Se fosse disso que se trata, seria até fácil. O drama maior, porém, é aquele que não acaba nem com Dilma ficando, nem com Dilma saindo. A tragédia é que neste teatro sobram vilões e faltam virtudes. O abismo é o país que por tantas gerações se viu como um futuro que nunca chegava, acreditou ter finalmente alcançado o presente e descobre-se atolado no passado.

Qual é o projeto político, de fato político, e não meramente um projeto de poder, para o presente-futuro do Brasil? Qual é o projeto político capaz de enfrentar as velhas forças que se rearranjam para manter tudo como sempre foi?

Este é o desafio para o qual não parece haver respostas convincentes. Por isso a sensação de que 2015 não vai acabar nunca – ou pelo menos vai levar muitos anos para acabar. Não é só uma questão de resgatar a política, no seu sentido amplo e profundo, como diálogo entre diferentes no espaço público, mas de criar uma nova política.

Mas como?

Diante do tamanho do abismo, me arrisco a apenas três afirmações que dizem respeito aos temas que acompanho como jornalista. Não há projeto de fato sem enfrentá-las. A primeira é a de que este país não pode mais adiar seus conflitos históricos: entre os principais, o racismo. A segunda é que não se enfrentará nem o racismo nem a desigualdade nem a violência nem a tragédia educacional, intimamente interligados que são, sem que as elites econômicas, políticas, sociais e também culturais compreendam que vão precisar perder privilégios. E não me refiro apenas à renda, mas perder privilégios menos contabilizáveis, que talvez sejam até mais difíceis, como o de falar sozinho, por exemplo, ou o de ter razão sozinho, ou o de estabelecer os limites até onde é permitido questionar os próprios privilégios. Privilégios mais sutis, daqueles que nem mesmo se acha que são privilégios, tão assimilados estão, que têm sido colocados à prova em embates do feminismo e do próprio racismo neste último ano. Ninguém – ninguém mesmo – está fora disso. E o terceiro é que não há saída sem sensibilidade socioambiental, que passa por reconhecer o conhecimento e a riqueza das experiências dos povos tradicionais. Não apenas para deter os vários etnocídios em curso, assim como encontrar maneiras para fazer o diálogo entre os Brasis, mas também para encontrar caminhos diante dos enormes desafios representados pela mudança climática.

5) A desesperança como imperativo ético

Agora, de volta ao princípio. Ou à ideia mais dura deste artigo, também a de maior potência.

Este é um país em que se declarar sem esperança é visto como uma falha de caráter, uma traição ao coletivo e a si mesmo. Como assim, você não tem esperança? A esperança é como a felicidade na lógica capitalista: objeto de consumo que mede o sucesso de uma vida. Esperança é palavra invocada por todos os lados na atual conjuntura do Brasil. Seja de forma espontânea, seja como construção marqueteira. Conforme a posição daquele que a evoca, a esperança seria algo a ser recuperado, tanto para o partido que perdeu o país recuperar seu lugar, como para o país recuperar a si mesmo. Esse resgate de um e de outro passaria pelo resgate da esperança. Mas também desponta como palavra de acusação ao PT, o partido que teria sequestrado a esperança dessa enigmática entidade a que se dá o nome de “povo brasileiro”. A reposição da esperança, e de quem a pode repor, supondo-se que perdida está, é campo de disputa. O que une essas tantas narrativas é de que seria ela, a esperança, aquela capaz de recosturar o tecido rasgado chamado Brasil.

A esperança como conceito alcança no Brasil suas próprias particularidades, que ainda merecem ser investigadas com maior profundidade. Como invocação, ela tem um lugar estratégico nos 13 anos do PT no poder. Marca a primeira campanha vitoriosa de Lula, em 2002: “a esperança para vencer o medo”. Era uma reação à afirmação da atriz Regina Duarte, no programa do oponente, o PSDB, ao dizer que tinha medo de uma vitória do petista. No pleito de 2014, para a reeleição de Dilma Rousseff, Lula afirmou: “Agora temos de fazer uma campanha para a esperança vencer o ódio”. Em 2015, um dos programas do PT, assombrado pela presidente mais impopular desde a redemocratização e sob ameaça de impeachment, apontava a saída para a crise pelo “caminho da esperança”.

Talvez tenha chegado a hora de superar a esperança. Autorizar-se à desesperança ou pelo menos não linchar quem a ela se autoriza. Quero afirmar aqui que, para enfrentar o desafio de construir um projeto político para o país, a esperança não é tão importante. Acho mesmo que é supervalorizada. Talvez tenha chegado o momento de compreender que, diante de tal conjuntura, é preciso fazer o muito mais difícil: criar/lutar mesmo sem esperança. O que vai costurar os rasgos do Brasil não é a esperança, mas a nossa capacidade de enfrentar os conflitos mesmo quando sabemos que vamos perder. Ou lutar mesmo quando já está perdido.

Fazer sem acreditar. Fazer como imperativo ético.

(Publicado no El País em 21 de dezembro de 2015)

A lama (e a necessidade de uma Guernica)

Tenho encontrado perplexidade em viver consciente de que, enquanto respiro ou pisco, há uma lama que anda e que mata, como num filme de cinema-catástrofe. Mas é só catástrofe, excesso de real.

Tenho encontrado dificuldade em viver consciente de que o lago de Belo Monte enche, autorizado pelo órgão ambiental, arrasando o Xingu e a vida na floresta amazônica, enquanto uma parte do mundo se encontra em Paris para debater a mudança climática e a necessidade de deixarmos de ser catástrofe se quisermos ter alguma chance.

Minha coluna no El País:

Lama deixou rastro de destruição em Bento Rodrigues. / DOUGLAS MAGNO (AFP)

Lama deixou rastro de destruição em Bento Rodrigues. / DOUGLAS MAGNO (AFP)

Com o rompimento da barreira entre metáfora e concreto, a catástrofe torna o Brasil irrepresentável

Como não pensar, a cada dia, que a lama avança. Essa lama tóxica que mata gente, mata bicho, mata planta, mata histórias. Essa lama que engoliu um povoado chamado Bento Rodrigues, assassina o Rio Doce, avança pelo oceano, atravessa os estados e segue avançando. Essa lama que deixou meio milhão sem água. Essa lama venenosa que vai comendo o mundo como se fosse um organismo vivo. Essa lama morta que se move. E ao se mover, mata. Enquanto alguém toma um café, pega o ônibus, reclama do trânsito, faz um selfie, se apaixona, assiste a uma série do Netflix, se preocupa com as contas, faz sexo, se queixa do chefe, sente que o cotidiano não está à altura de suas grandes esperanças, briga no Facebook, faz planos para as festas de fim de ano, engole umas gotas de Rivotril, a lama avança. Enquanto escrevo, a lama avança. Piscamos, e a lama avança. Parece quase impossível pensar em algo além de que a lama avança. E ninguém pode afirmar até aonde a lama vai chegar.

É mais como um filme de imagens impossíveis, cada um entre seus muros, fronteiras cada vez mais enfarpadas, e a lama avançando. Dia e noite, essa lama que não dorme. Avançando. Talvez fosse necessário mais um movimento de vanguarda na arte, que desse conta do excesso de real da realidade. Da lama que avança. Concreta, espessa, tóxica. Inescapavelmente lama. Que Guernica poderá ser pintada diante da obra da Samarco, a mineradora que pertence à Vale (antes chamada “do Rio Doce”) e à anglo-australiana BHP Billiton? Precisamos de uma Guernica para representar o irrepresentável dessa lama que avança enquanto fazemos xixi.

Haveria de ter uma bienal das artes criando coletivamente representação diante da lama, em tempo real, uma bienal viva diante da lama morta que mata. Para que a lama que avança não pudesse ser esquecida para além dos que jamais poderão esquecê-la porque nela perderam quem amavam. Ou perderam um rio. Ou, no fio de voz do homem que conta para um repórter de TV que perdeu a fotografia do pai e da mãe, ele mesmo achando pouco, mas sentindo tão doído que era tanto. Não era carne, mas era história, história que dizia que ele teve um pai e uma mãe que um dia fizeram um retrato para se representar. E a lama comeu.

A lama avança. Não apenas como metáfora, como havia sido até 5 de novembro, quando a barragem se rompeu liberando todo o recalque. A lama avança matando Emanuely, Thiago, Waldemir, Claudio, Sileno, Marcos, Marcos Aurélio, Samuel, Mateus, Edinaldo, Daniel… Mais dois mortos ainda sem nome. Pelo menos 13 corpos já foram encontrados na barriga de baleia da lama. Treze gentes, com suas histórias, seus sonhos, seus desesperos, seus amores. Treze que se multiplicam por centenas que acordarão a cada dia com a faca do luto esburacando o peito.

E pelo menos oito desaparecidos, que um dia poderão ser cuspidos pela lama. Ou não. Oito que sumiram e que também eram amados por alguém e que também sonhavam e que também suavam e que também queriam. Oito de quem ainda se espera que apareçam para dizer que escaparam dos dentes da lama e para serem abraçados com força e para virarem histórias de superação ou conto de Natal. E há os peixes que são dimensionados em toneladas, e não parece possível compreender que vidas sejam dimensionadas em toneladas, apenas porque são outras vidas ou vidas de outros. Há as tartarugas. Há espécies que poderão deixar de existir, um tipo de vida que desaparece por inteiro, a pobreza máxima, insuperável, aquela para a qual não existe nenhuma possibilidade de Bolsa Família para resgatar. Há todas as plantas que não farão mais fotossíntese, árvores que já não respiram. Flores afogadas. Há o rio assassinado. O não rio.

E a lama avança.

Não como metáfora.

Leia mais na minha coluna no El País.

Governador Valadares (MG) – Passagem da lama pelo Rio Doce, por causa do rompimento de duas barragens em Mariana, Minas Gerais, causa desastre ambiental (Leonardo Merçon/Instituto Últimos Refúgios/Divulgação)

Governador Valadares (MG) – Passagem da lama pelo Rio Doce, por causa do rompimento de duas barragens em Mariana, Minas Gerais, causa desastre ambiental (Leonardo Merçon/Instituto Últimos Refúgios/Divulgação)

Para quem quiser compreender a atual conjuntura da Amazônia, assim como mudança climática e debate socioambiental, mais artigos, entrevistas e reportagens, aqui:

REPORTAGENS

22/09/2015
Vítimas de uma guerra amazônica
Expulsos por Belo Monte, Raimunda e João tornam-se refugiados em seu próprio país

Uma das ilhas do Xingu, desmatada e queimada para o enchimento do lago de Belo Monte (FOTOS DE LILO CLARETO)

Uma das ilhas do Xingu, desmatada e queimada para o enchimento do lago de Belo Monte (FOTO DE LILO CLARETO)

14/09/2015
O dia em que a casa foi expulsa de casa
A maior liderança popular do Xingu foi arrancada do seu lugar pela hidrelétrica de Belo Monte, a obra mais brutal –e ainda impune– da redemocratização do Brasil

16/02/2015
O pescador sem rio e sem letras
À beira de Belo Monte, uma história pequena numa obra gigante. Que tamanho tem uma vida humana?

15/09/2014
A não gente que não vive no Tapajós
A extraordinária saga de Montanha e Mangabal, da escravidão nos seringais à propaganda do governo que pretende botar uma hidrelétrica na terra que habitam há quase 150 anos

28/01/2012
A Amazônia, segundo um morto e um fugitivo
Dois homens denunciaram a quatro órgãos federais e dois estaduais uma milionária operação criminosa que rouba ipê de dentro de áreas de preservação da floresta amazônica, no Pará. Depois da denúncia, um foi assassinado – e o outro foge pelo Brasil com a família, sem nenhuma proteção do governo. A partir do relato desses dois homens, é possível unir a Amazônia dos bárbaros à floresta dos nobres

25/11/2005
À espera do assassino

Como vivem os brasileiros ameaçados de morte na fronteira paraense, onde o futuro da Amazônia é decidido à bala

04/10/2004
O Povo do Meio
Esses brasileiros não votam, são analfabetos e oficialmente não existem. À margem do país, estão jurados de morte

08/04/2013
À margem do pai
Na floresta amazônica, um homem confronta sua solidão quando um filho seu é picado por uma cobra, o outro por escorpião. Como salvá-los sem nenhum acesso à saúde? O dia a dia dos protetores da Terra do Meio, onde não morrer é um golpe de sorte

ENTREVISTAS

31/10/2011
Belo Monte, nosso dinheiro e o bigode do Sarney
Um dos mais respeitados especialistas na área energética do país, o professor da USP Célio Bermann, fala sobre a “caixa preta” do setor, controlado por José Sarney, e o jogo pesado e lucrativo que domina a maior obra do PAC. Conta também sua experiência como assessor de Dilma Rousseff no Ministério de Minas e Energia

05/09/2011
Um procurador contra Belo Monte
Conheça o homem que se tornou o flagelo do governo ao lutar contra a maior e mais polêmica obra do PAC

04/06/2012
Dom Erwin Kräutler: “Lula e Dilma passarão para a História como predadores da Amazônia”
O lendário bispo do Xingu, ameaçado de morte e sob escolta policial há seis anos, afirma que o PT traiu os povos da Amazônia e a causa ambiental. Afirma também que Belo Monte causará a destruição do Xingu e o genocídio das etnias indígenas que habitam a região há séculos. Há 47 anos no epicentro da guerra cada vez menos silenciosa e invisível travada na Amazônia, Dom Erwin Kräutler encarna um capítulo da história do Brasil

29/9/2014
Diálogos sobre o fim do mundo
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A lama

Com o rompimento da barreira entre metáfora e concreto, a catástrofe torna o Brasil irrepresentável

Lama deixou rastro de destruição em Bento Rodrigues. DOUGLAS MAGNO AFP (Reprodução do El País)

Lama deixou rastro de destruição em Bento Rodrigues. DOUGLAS MAGNO AFP (Reprodução do El País)

Como não pensar, a cada dia, que a lama avança. Essa lama tóxica que mata gente, mata bicho, mata planta, mata histórias. Essa lama que engoliu um povoado chamado Bento Rodrigues, assassina o Rio Doce, avança pelo oceano, atravessa os estados e segue avançando. Essa lama que deixou meio milhão sem água. Essa lama venenosa que vai comendo o mundo como se fosse um organismo vivo. Essa lama morta que se move. E ao se mover, mata. Enquanto alguém toma um café, pega o ônibus, reclama do trânsito, faz um selfie, se apaixona, assiste a uma série do Netflix, se preocupa com as contas, faz sexo, se queixa do chefe, sente que o cotidiano não está à altura de suas grandes esperanças, briga no Facebook, faz planos para as festas de fim de ano, engole umas gotas de Rivotril, a lama avança. Enquanto escrevo, a lama avança. Piscamos, e a lama avança. Parece quase impossível pensar em algo além de que a lama avança. E ninguém pode afirmar até aonde a lama vai chegar.

É mais como um filme de imagens impossíveis, cada um entre seus muros, fronteiras cada vez mais enfarpadas, e a lama avançando. Dia e noite, essa lama que não dorme. Avançando. Talvez fosse necessário mais um movimento de vanguarda na arte, que desse conta do excesso de real da realidade. Da lama que avança. Concreta, espessa, tóxica. Inescapavelmente lama. Que Guernica poderá ser pintada diante da obra da Samarco, a mineradora que pertence à Vale (antes chamada “do Rio Doce”) e à anglo-australiana BHP Billiton? Precisamos de uma Guernica para representar o irrepresentável dessa lama que avança enquanto fazemos xixi.

Haveria de ter uma bienal das artes criando coletivamente representação diante da lama, em tempo real, uma bienal viva diante da lama morta que mata. Para que a lama que avança não pudesse ser esquecida para além dos que jamais poderão esquecê-la porque nela perderam quem amavam. Ou perderam um rio. Ou, no fio de voz do homem que conta para um repórter de TV que perdeu a fotografia do pai e da mãe, ele mesmo achando pouco, mas sentindo tão doído que era tanto. Não era carne, mas era história, história que dizia que ele teve um pai e uma mãe que um dia fizeram um retrato para se representar. E a lama comeu.

A lama avança. Não apenas como metáfora, como havia sido até 5 de novembro, quando a barragem se rompeu liberando todo o recalque. A lama avança matando Emanuely, Thiago, Waldemir, Claudio, Sileno, Marcos, Marcos Aurélio, Samuel, Mateus, Edinaldo, Daniel… Mais dois mortos ainda sem nome. Pelo menos 13 corpos já foram encontrados na barriga de baleia da lama. Treze gentes, com suas histórias, seus sonhos, seus desesperos, seus amores. Treze que se multiplicam por centenas que acordarão a cada dia com a faca do luto esburacando o peito.

E pelo menos oito desaparecidos, que um dia poderão ser cuspidos pela lama. Ou não. Oito que sumiram e que também eram amados por alguém e que também sonhavam e que também suavam e que também queriam. Oito de quem ainda se espera que apareçam para dizer que escaparam dos dentes da lama e para serem abraçados com força e para virarem histórias de superação ou conto de Natal. E há os peixes que são dimensionados em toneladas, e não parece possível compreender que vidas sejam dimensionadas em toneladas, apenas porque são outras vidas ou vidas de outros. Há as tartarugas. Há espécies que poderão deixar de existir, um tipo de vida que desaparece por inteiro, a pobreza máxima, insuperável, aquela para a qual não existe nenhuma possibilidade de Bolsa Família para resgatar. Há todas as plantas que não farão mais fotossíntese, árvores que já não respiram. Flores afogadas. Há o rio assassinado. O não rio.

E a lama avança.

Não como metáfora.

Mas também como metáfora. Enquanto a lama avança – “vai invadir o Arquipélago de Abrolhos”, “não vai invadir o Arquipélago de Abrolhos”, “alcançou o ninho das tartarugas-gigantes”, “praias são interditadas no Espírito Santo”… –, há uma lama metafórica que entra pela nossa boca e nos faz tossir. Mas a tosse não nos liberta, porque estamos intoxicados de lama. Essa lama que circula pelas veias desse corpo que chamamos de país.

A lama que nega a lama. Assim como Vale e BHP Billiton fingem que a Samarco é outra coisa que não elas mesmas. Assim como o governo federal finge que aplicar multas é uma demonstração de força, sem dizer que apenas 3% das multas são de fato pagas pelas empresas multadas, e sem dizer que não haverá dinheiro que possa dar conta da reparação. Nem mesmo os 20 bilhões de reais que o governo federal anunciou exigir na Justiça. Sem admitir, principalmente, que se uma barragem de rejeitos de mineração rompeu em Mariana é porque há algo (cor)rompido em todo o processo que permitiu que essa barragem rompesse. Algo que precisa ser corrigido já, porque há outras barragens, outras lamas, que podem avançar a qualquer momento porque há algo corrompido há muito que precede a lama que mata. E agora aquilo que era metáfora já não é.

Enquanto a lama que mata avança, outra lama que também mata, a lama que pode ser chamada de primordial, também avança. E avança rápido. Quando a lama que mata avançava havia 20 dias, a Comissão Especial do Desenvolvimento Nacional, vale a pena prestar atenção nas palavras escolhidas para nomear essa comissão do Senado, aprovou um projeto do senador Romero Jucá (PMDB-RR) para acelerar a liberação de licenças ambientais para “empreendimentos de infraestrutura estratégicos para o interesse nacional”. Devido à pressão do momento, a exploração de recursos minerais foi retirada da lista dos projetos considerados prioritários. Mas a lista dos beneficiados pelo licenciamento facilitado não é nada pequena: obras dos sistemas viário, hidroviário, ferroviário e aeroviário, portos e instalações portuárias, energia e telecomunicações.

Não um projeto para tornar os processos de licenciamento ambiental mais rígidos e eficazes, menos sujeitos a corrupção e a pressões. Não um projeto para fortalecer os órgãos responsáveis, garantir monitoramento e informações independentes e ampliar as equipes de fiscalização. Não. Vinte dias depois de a barragem romper e a lama avançar sobre o corpo do país, essa comissão do Senado aprovou um “rito sumário”, que facilita a licença para as empresas e limita o prazo entre o pedido do “empreendedor” (mais uma palavra interessante) e o licenciamento ambiental a cerca de oito meses. Se o órgão responsável pelo licenciamento não cumprir o prazo, libera-se automaticamente. Sem qualquer análise sobre a vida, sobre o planeta, sobre o futuro. Porque, como declarou o autor do projeto, Romero Jucá, o licenciamento ambiental é o “vilão” dos grandes empreendimentos. Nesta lógica do senador, tão cristalina quanto a água do Rio Doce dificilmente voltará a ser, acabará se concluindo que a catástrofe de Mariana foi causada pelo excesso de rigor no licenciamento ambiental da obra da Samarco (leia-se Vale e BHP Billiton).

E a lama avança.

A quem serve esse projeto que avança no Senado, enquanto avança a lama que mata? Ao país, é o que dizem. É parte de algo batizado de “Agenda Brasil”, um pacote de propostas “com o objetivo de estancar a crise política e estimular o crescimento da economia brasileira”. Foi apresentado em agosto pelo presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), como uma salvação para o Brasil e para a fragilizada presidente Dilma Rousseff (PT).

O Brasil precisa avançar, lembrou Renan Calheiros. Mas é a lama que avança.

O Brasil precisa avançar, lembrou Renan Calheiros com pose de estadista, certo de que nenhum cidadão brasileiro que acompanhou sua trajetória nos vários governos e parlamentos da redemocratização possa ter qualquer dúvida sobre a veracidade de sua preocupação com o país, sobre o seu amor exacerbado pela Constituição, sobre o seu compromisso maior com o interesse público. Ele, investigado pela Operação Lava Jato; ele, o homem suspeito de ter pagado a pensão de uma filha com dinheiro de uma empreiteira; ele, que usou o avião da FAB para levá-lo a Pernambuco para fazer um implante de 10 mil fios de cabelo, a Força Aérea Brasileira a serviço de sua urgência de deixar de ser careca. E a Agenda Brasil avança, facilitando o licenciamento ambiental em nome não dos interesses individuais e privados, de forma alguma. Renan Calheiros e o grupo de senadores que aprovou o projeto garantem que não se trata disso. E aquele que acredita que a lama jamais chegará a sua porta acredita.

A Agenda Brasil avança em nome do “interesse nacional”.

E a lama avança.

A comissão de nome interessante do Senado aprovou o projeto no dia 25 de novembro. No mesmo dia, o governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel (PT-MG), também aprovou o seu na Assembleia Legislativa de Minas. Sim, ele, o homem que comanda o estado em que se iniciou aquele que é considerado “o maior desastre ambiental da história do Brasil” – e que, a depender das investigações da Polícia Federal, poderá ser promovido a “maior crime ambiental da história do Brasil”. O governador propôs acelerar o licenciamento ambiental, inclusive para mineradoras, porque, como todos sabem e o acidente da Samarco (leia-se Vale e BHP Billinton) provou, a demora no licenciamento ambiental é o grande problema do Brasil.

Não as pressões, a corrupção, os interesses privados acima dos interesses públicos, a precariedade dos estudos prévios e dos estudos de acompanhamento, a fragilidade do monitoramento, a indigência da fiscalização. Não. O problema do Brasil é que o licenciamento ambiental demora, o drama do país são esses ambientalistas que ficam exigindo que barragens como a do Fundão tenham monitoramento, fiscalização e um plano em caso de acidentes. Como governador diligente e preocupado com o meio ambiente, afinado com os desafios em debate na Conferência do Clima que se inicia em Paris, Pimentel resolveu o problema, em perfeita sintonia com os elevados princípios dos deputados mineiros que aprovaram o projeto.

Com o licenciamento ambiental acelerado, obviamente barragens não vão mais se romper matando gente, bicho, planta, rio. Faz completo sentido, quem haveria de discordar dessa lógica límpida como a água do rio Doce dificilmente voltará a ser? Tanto empenho e celeridade para quê? Para priorizar as grandes empresas, como empreiteiras e mineradoras, que por coincidência são também grandes financiadoras de campanhas eleitorais? Claro que não, garantem os que fazem as leis. Isso tudo é para o bem do Brasil. E aquele que se comove com as imagens dos soterrados pela lama no noticiário da TV, mas tem certeza de que a massa tóxica jamais chegará à sua porta, muito menos ao seu nariz, acredita.

E a lama avança.

Logo no dia seguinte ao rompimento da barragem, o secretário de Desenvolvimento Econômico de Minas, Altamir Rôso, já havia se apressado em garantir, antes do início de qualquer investigação: “a Samarco (leia-se Vale e BHP Billinton) é uma das que mais se preocupam com segurança e com meio ambiente”. E, em seguida: “A Samarco (leia-se Vale e BHP Billinton) também é vítima”.

E a lama avança.

Mas ainda há quem acredite que ela jamais chegará à sua porta.

A Organização das Nações Unidas denuncia que as medidas tomadas pelo governo federal, a Vale e a BHP Billiton têm se mostrado “claramente insuficientes” para enfrentar uma catástrofe equivalente ao volume de 20 mil piscinas olímpicas contendo lama tóxica, que contamina solo, rios e sistemas de abastecimento em áreas superiores a 850 quilômetros e que não se sabe até onde vai chegar. A ONU declara que é “inaceitável” que se leve três semanas para divulgar que há risco tóxico na lama que avança. A ONU afirma que “o desastre é um trágico exemplo da falha na condução de negócios com relação aos direitos humanos e com relação à diligência para prevenir abusos”. Dilma Rousseff, a presidente que levou uma semana para sobrevoar (mais uma palavra interessante) a região daquele que é considerado o maior desastre ambiental do país que governa, nega qualquer negligência do seu governo.

Talvez o problema seja não a incompetência na prevenção e no enfrentamento da catástrofe, mas a incapacidade de a ONU compreender que o desenvolvimento é o grande “interesse nacional”. Em nome de uma causa maior, os obtusos precisam entender a necessidade de fazer sacrifícios, ainda que os sacrificados jamais sejam os que defendem a necessidade de fazer sacrifícios. Na posição de restos, os sacrificados não crescem. Submergem.

E a lama avança.

Assim como avança o novo Código de Mineração no Congresso. Uma parcela significativa dos deputados da comissão responsável pela sua criação recebeu doações de empresas ligadas à mineração. Mas, como aquele que acredita que a lama ainda não chegou à sua porta tem certeza, este é um mero detalhe que não corromperá o alto senso de dever cívico dos parlamentares. Na hora de legislar e decidir como proteger Brasil e os cidadãos brasileiros para que catástrofes como as das barragens da Samarco (leia-se Vale e BHP Billiton) não se repitam, eles não pensarão em quem financiou suas campanhas, mas apenas no “interesse nacional”.

E a lama avança.

Em 24 de novembro, o IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), outro nome para se prestar atenção, deu a licença de operação à barragem de Belo Monte, no Pará. A presidente do órgão, Marilene Ramos, afirmou durante o anúncio: “Postergar a licença de operação seria punir o Brasil”.

E a lama avança.

Três dias depois dessa frase lapidar da presidente do IBAMA, a empreiteira Andrade Gutierrez fechou acordo com a Procuradoria Geral da República, segundo informou a Folha de S.Paulo, comprometendo-se a detalhar vários esquemas de corrupção, entre eles propinas envolvendo Belo Monte, uma obra estimada hoje em mais de 30 bilhões de reais. Pagamentos de propinas na obra da hidrelétrica já foram relatados em acordos de outras delações premiadas da Operação Lava Jato por executivos de empreiteiras que formam o Consórcio Construtor Belo Monte (CCBM), contratado pela Norte Energia para executar a obra, e estão sendo investigados. Mas em Belo Monte o “interesse nacional” é tão imperativo que nem mesmo 23 ações do Ministério Público Federal denunciando violações à Constituição foram capazes de interromper a obra, que será julgada como “fato consumado”. Como escreveu o presidente da Norte Energia, Duílio Diniz de Figueiredo, após a licença de operação, “é um orgulho para o Brasil ver Belo Monte se tornando uma realidade”.

E a lama avança.

Ao anunciar a licença de operação, segundo o jornal O Estado de S. Paulo, a presidente do IBAMA afirmou que a Norte Energia tinha “atendido integralmente” às exigências, “menos 10%”. Dias antes, a FUNAI (Fundação Nacional do Índio) já havia dado o seu aval à licença de operação, apesar de mencionar uma série de pendências e descumprimentos de condicionantes. A mesma FUNAI que, em vez de ser fortalecida para que os povos indígenas afetados pela obra pudessem ter maior proteção diante da empresa, passou exatamente pelo processo contrário: teve seu quadro em Altamira reduzido de 60 para 23 funcionários, no período de construção de uma das maiores obras do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento).

E a lama avança.

A palavra “condicionante” sofreu uma intervenção original no texto da Licença de Operação, em uma das interpretações recentes da língua portuguesa de maior criatividade, expressa por essa frase que abre uma nova página na literatura brasileira: “A validade desta LO (Licença de Operação) está condicionada ao cumprimento das condicionantes constantes no verso deste documento….”. Como se sabe, a língua é viva. E, assim, o que era condição para acontecer virou condição depois do acontecido.

Mas, assim como as autoridades do IBAMA e da FUNAI acreditam, aquele que acha que a lama jamais chegará à sua porta, muito menos à sua garganta, também tem certeza de que é justamente agora, quando a Norte Energia já conseguiu tudo o que quer, que a empresa fará questão de cumprir cada uma das suas obrigações legais. Faz todo o sentido. É sempre um prazer constatar que as ações do governo estão em sintonia com o pensamento lógico.

A barragem de rejeitos de mineração da Samarco (leia-se Vale e BHP Billiton) que rompeu tinham como condicionante um plano de contingência.

E a lama avança.

Belo Monte começa a encher o lago num momento em que a região passa por uma seca histórica e a vazão do rio está perigosamente baixa. Antes, havia uma resolução da Agência Nacional de Águas (ANA) permitindo o enchimento do reservatório apenas entre janeiro e junho, fora do período de estiagem. Mas ela também foi derrubada, como denunciou o repórter André Borges, do jornal O Estado de S. Paulo. Cerca de 1.800 famílias expulsas de suas casas e ilhas procuraram a Defensoria Pública da União em busca de justiça. A população atingida só teve acesso à assistência jurídica no início deste ano de 2015, cinco anos após o leilão da obra. Também o governo não cumpriu com suas obrigações, como homologar a Terra Indígena Cachoeira Seca, a mais desmatada do Brasil: só em 2014 saiu dali uma quantidade de madeira capaz de encher 13 mil caminhões madeireiros.

Lideranças da floresta amazônica e organizações socioambientais denunciam que ninguém sabe o que acontecerá com o Rio Xingu e com todos que vivem nesse delicado ecossistema. Denunciam que ninguém consegue avaliar com a necessária precisão o tamanho do impacto da operação de Belo Monte, já que os órgãos fiscalizadores dependem das informações e análises fornecidas pela própria empresa. Como os órgãos também eram dependentes na catástrofe da bacia do Rio Doce, que já alcançou o oceano.

Mas talvez aquele que acredita que a lama jamais chegará à sua porta conclua que todas essas pessoas que alertam para o impacto de Belo Monte nada sabem do “interesse nacional”. Diante do temor e da dúvida, é preciso invocar a frase da presidente do IBAMA, para recuperar de imediato a tranquilidade e a confiança no desenvolvimento: “Postergar a licença de operação seria punir o Brasil”.

E a lama avança.

E a lama avança para muito além, derrubando as fronteiras entre o público e o privado, entre os partidos e também entre os poderes, se imiscuindo a cada dia um pouco mais, empapando os dias, emprestando ao cotidiano a sua textura tóxica. E também aí ninguém sabe até aonde a lama pode chegar. Quantos pontos ela poderá ligar não apenas nos contratos da Petrobras, mas também no setor elétrico. E talvez adiante.

E a lama avança.

A mudança climática marca o momento em que o homem não apenas teme a catástrofe, mas torna-se a catástrofe. É assim que o Brasil chega à Conferência do Clima, em Paris: levando no currículo “o maior desastre ambiental da história do país” e a Licença de Operação à Belo Monte, mais uma barragem gigantesca na Amazônia como fato consumado.

E a lama avança.

Que momento da história do Brasil, este em que há tanta lama por todos os lados e, ao mesmo tempo, essa lama concreta, que avança e que mata. Essa lama das imagens, essa lama morta que parece viva porque anda, essa que só rompeu a barragem que a segurava por conta da lama ainda mais tóxica que a precede. O momento da história em que a lama rompeu a barragem do simbólico para invadir o real em sua forma concreta.

Diante de tantas autoridades, em tantas esferas, que frente à lama dizem agir “em nome do interesse nacional”, talvez seja a hora de começar a pintar a nossa Guernica para tentarmos uma representação da catástrofe. Uma Guernica de imagens, mas também de vozes. Uma Guernica de memórias e de testemunhos. Uma Guernica que confronte “o interesse nacional” e que o denuncie. Uma Guernica que exponha a perversão das barragens e também das fronteiras.

Porque a lama avança. E aquilo que atravessa o vão da porta da casa já não é poeira.

(Publicado no El País em 30 de novembro de 2015)

Para ser escutado, João quer se matar em sacrifício

Uma das ilhas do Xingu, desmatada e queimada para o enchimento do lago de Belo Monte (FOTOS DE LILO CLARETO)

Uma das ilhas do Xingu, desmatada e queimada para o enchimento do lago de Belo Monte (FOTOS DE LILO CLARETO)

O Brasil tem vítimas de guerra, refugiados do próprio Brasil. E sua dor é maior porque não reconhecida. Nesta minha última viagem para o Xingu encontrei pessoas traumatizadas, incapazes de reinventar uma vida se não forem escutadas. “O buraco, o buraco”, diz João. É uma vítima de catástrofe.

Não é mais uma história dramática entre tantas do Brasil. É a história de um país que chegou ao presente, depois de tanto ser futuro, e se descobriu atolado no passado. O epílogo de um partido que chegou ao poder com a promessa de dar dignidade aos mais pobres e aos mais desprotegidos e os traiu na porção mais distante do centro do poder político e econômico, a Amazônia. Esta é também a anatomia de uma perversão: a de viver numa democracia formal, mas submetido a forças acima da Lei.

João e Raimunda dão sua versão da história do Brasil.

João e Raimunda (FOTOS DE LILO CLARETO)

Leia a reportagem especial no El País.

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Para quem quiser compreender a atual conjuntura da Amazônia, mais artigos, entrevistas e reportagens, aqui:

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Vítimas de uma guerra amazônica

Expulsos por Belo Monte, Raimunda e João tornam-se refugiados em seu próprio país

Uma das ilhas do Xingu, desmatada e queimada para o enchimento do lago de Belo Monte/ Fotos: Lilo Clareto

Uma das ilhas do Xingu, desmatada e queimada para o enchimento do lago de Belo Monte/ Fotos: Lilo Clareto

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A saga de João e Raimunda tem seu ápice em dois atos de uma guerra amazônica não reconhecida pelo Estado e pela maioria dos brasileiros. Ainda assim, ela está lá. Aqui. Essa história, decidida neste momento no Pará, na região de Altamira e da bacia de um dos rios mais ricos em biodiversidade da Amazônia, o Xingu, é contada por um homem e por uma mulher, apenas dois entre dezenas de milhares de expulsos pela hidrelétrica de Belo Monte, gente que hoje vaga por um território que não reconhece – e no qual não se reconhece. Mas esta não é mais uma entre tantas narrativas dramáticas em um país assinalado pela violação sistemática dos direitos de negros e de indígenas. Raimunda e João trazem inscritos no corpo uma encruzilhada histórica. A de um país que chegou ao presente, depois de tanto ser futuro, e se descobriu atolado no passado. O epílogo de um partido que chegou ao poder com a promessa de dar dignidade aos mais pobres e aos mais desprotegidos e os traiu na porção mais distante do centro do poder político e econômico, a Amazônia. Esta é também a anatomia de uma perversão: a de viver numa democracia formal, mas submetido a forças acima da Lei. O não reconhecimento da violência sofrida inflige a suas vítimas uma dor ainda maior, e uma sensação de irrealidade que as violenta uma segunda vez. É a experiência de viver não fora da lei, mas sem lei que escava a existência de Raimunda e de João – e os faz escolher destinos diferentes diante da aniquilação.

Raimunda decidiu viver, ainda que carregando seus pedaços. João não sabe como viver. Para ele, só há sentido na morte em sacrifício.

Neste momento, João e Raimunda vivem esse impasse.

Enquanto isso, a Norte Energia espera apenas que o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) dê a Licença de Operação da hidrelétrica, mesmo sem que a empresa tenha cumprido as medidas de redução e compensação do impacto, para começar a encher o lago de Belo Monte.

O terceiro ato ainda é uma incerteza.

Raimunda Gomes da Silva e João Pereira da Silva

Raimunda Gomes da Silva e João Pereira da Silva

Ato 1: João perde a fala e trava as pernas para não matar

Segunda-feira, 23 de março de 2015. João Pereira da Silva estava diante do preposto da Norte Energia, a empresa que venceu o leilão de Belo Monte, apresentada como uma das três maiores hidrelétricas do mundo. Ele esperava receber um valor justo pela sua casa, roça e demais benfeitorias, na ilha da qual era expulso pela barragem. Em vez disso, impuseram-lhe o valor de 23 mil reais, insuficiente para comprar uma terra onde pudesse voltar a plantar, pescar e extrair os frutos da floresta para ganhar o sustento. João percebeu ali que estava condenado à miséria, aos 63 anos. E que, para ele, a Lei não valia. Desde os oito anos de idade ele peregrinara por vários Brasis em busca de uma terra sem dono, arrancando cada dia da força dos braços. Depois de um percurso de faltas, João acreditou ter encontrado uma casa e uma existência sem fome na ilha do Xingu. E agora arrancavam-no também dali. João sentiu que era a vida que lhe roubavam, e que ele já não tinha mais juventude nem saúde para recomeçar. Para João, já não haveria uma última fronteira, a esperança de todos os brasileiros sem lugar. Acabavam de lhe tirar tudo, e também o sentido. Para ele, o passado-presente-futuro fora reduzido a um tempo só, que se repetia.

João quis matar o homem na sua frente. Matar não como uma vingança, é preciso compreender. Matar como um sacrifício.

– Se eu fizesse um dano com um grande, um grande lá de dentro, talvez melhorasse para os outros. Eu sacrificava a minha vida, mas a dos outros melhorava. Se eu pudesse, eu passaria por dentro do maior chefe dessa firma, passaria por dentro umas duzentas vezes. E não tenho medo de dizer. Eu era muito satisfeito de fazer isso, mesmo que na mesma hora minha vida se acabasse.

João não conseguiu fazer o gesto. O desejo de matar não virou movimento. João descobriu ali que matar não era um ato possível para ele. As pernas travaram, a fala travou. João imobilizou-se por inteiro para não matar aquele que encarnava a obra que acabava de matá-lo. Sacrificou a si mesmo. Teve de ser carregado pela mulher, Raimunda, e por uma das filhas, para fora do escritório da Norte Energia.

– Eu perdi… Chegou um ponto de eu perder a fala. Perdi tudo. Ficava só espumando. E o nervo travou tudo. Travar de não poder andar. Hoje eu ando um pouco, mas minhas pernas doem, e incham. Minha senhora, não é fácil, ter tanta raiva que trava o corpo.

Desde então, João é um homem traumatizado. Não no sentido banal que a palavra “trauma” ganhou ao se popularizar, mas no sentido do “trauma” como aquilo que não é possível simbolizar, do buraco que não vira marca. Sem saber para onde ir nem onde está, João só consegue andar uns poucos passos e logo precisa sentar-se num banquinho. Quando sai, perde-se porque já não reconhece o território. João tornou-se um desterrado de tudo e também de si. Dias atrás um amigo ligou para Raimunda: “Seu João está sentado no meio do nada, debaixo do sol. Vai morrer ali”. Raimunda pediu a uma das sete filhas para resgatá-lo.

E se, em vez de paralisar, João tivesse conseguido falar naquele dia, o que teria dito?

– Muié, eu teria dito muita coisa. A primeira delas é que o país brasileiro não tem justiça.

João faz uma pausa antes de esclarecer:

– Muié, você tem que entender uma coisa. Não era falar, era fazer. Eu tenho nojo desse pessoal. Que Deus me perdoe, mas eu tenho nojo.

Sem palavra e sem ato, João é uma vítima de catástrofe. E torna-se vítima duas vezes, porque essa catástrofe não é reconhecida pelo seu país. Assim, João também torna-se um sem país, na abissal condição de sentir-se dentro e fora ao mesmo tempo, atingido por uma lei não escrita, ignorado pela lei que deveria inscrevê-lo na trama da cidadania. Para referir-se ao Brasil, a expressão mais frequente de João é “o país brasileiro”. Nessa escolha de linguagem, o Brasil é um corpo ao qual ele não pertence. E, assim, João é condenado como pária.

– Cheguei a dizer e digo. Digo pra Dilma, digo pra Deus, pro Satanás e para qualquer cão que aparecer, que a justiça do país brasileiro é dinheiro. Se Jesus bater aqui, nesse país, os altos empresários catam ele e compram ele. E, se ele se abestalhar, é vendido. Entendeu?

João repete a interrogação “entendeu” muitas vezes. Depois de escutá-lo por algum tempo percebe-se que não é uma bengala de linguagem, como se poderia supor, mas sua certeza de não ser compreendido.

Ato 2: Raimunda descobre que sua casa virou cinzas

Terça-feira, 1 de setembro de 2015. Raimunda Gomes da Silva, 56 anos, chamou um conhecido, comprou dez litros de gasolina para a viagem no rio e fez “um rancho e um frito” para comer no caminho de sua ilha, a Barriguda, no lugar batizado de Furo do Pau Rolado. Partiram às 5 horas da manhã. Um dia antes, na segunda-feira, haviam ligado da Norte Energia: “Dona Raimunda, quando nós podemos tirar os seus resíduos lá da ilha?”. “Resíduos” eram as posses de cozinha e de pesca de Raimunda. Ficou combinado que ela retiraria seus pertences na terça-feira cedo. Depois de duas horas e meia de rio, Raimunda alcançou a sua ilha.

Sua casa, feita de acapu, madeira resistente, ainda queimava.

– Você sabe que, pra te falar a verdade, amiga, eu desci do barco e não senti o solo. Eu não senti o chão no pé, porque aquilo me deu um branco. Ali, na hora, eu não sei o que senti. Porque, quando eu vi de longe, eu não achei que tinha… Quando nós chegamos lá, que eu vi minha casa queimada, eu desci, subi a barreira, sentei, e me apagou, branqueou, eu não sei. Não sei nem lhe falar o que eu sei, o que eu senti, não sei, porque eu não senti nada… Eu fiquei anestesiada do que vi. Porque, como que eles ligam pra eu tirar o que é meu e queimam a casa toda um dia antes? Fiquei parada, pensando na vida, só, viu. Que mundo é esse que a gente vive?

belo monte 3

A Norte Energia não considerava a casa de Raimunda uma casa. Disseram a ela que era um tapiri. Raimunda retrucou: “Na sua linguagem ela pode ser tudo isso aí. Mas, na minha, é minha casa. E eu me sentia bem nela, viu?”. Quando encontrou a casa em cinzas, Raimunda sentou-se na beira do rio.

– Eu nunca imaginei que eles iam tocar fogo. Se eu for tocar fogo no escritório deles, fico presa pro resto da vida. Eles botam fogo na minha casa e não acontece nada. É a profecia do fim do mundo que o meu pai falava, a roda grande passando por dentro da pequena.

Raimunda fez uma Certidão de Ocorrência na Polícia Federal de Altamira. Relatou que, naquele momento, as demolições e “remoções” dos ribeirinhos estavam suspensas pelo IBAMA. A medida havia sido tomada depois que uma inspeção realizada em junho revelara uma série de violações de direitos humanos no processo de expulsão das famílias, em relatório assinado pelo Ministério Público Federal, instituições públicas, organizações não governamentais e acadêmicos do porte de Manuela Carneiro da Cunha (USP/UChicago), Mauro de Almeida (Unicamp) e Sônia Magalhães (UFPA). Mas, ainda assim, a casa de Raimunda queimava.

Ela concluiu:

– Eles têm certeza que podem fazer o que quiserem e nunca vão ser punidos.
E Raimunda, o que acha?

– Eu acho que eles tão certo. Eles têm certeza do que fazem. Talvez eu não tenha certeza do que digo. Mas eles sabem o que fazem.

A procuradora da República em Altamira, Thais Santi, comunicou ao IBAMA o descumprimento da ordem de suspensão das “remoções” e demolições no caso de Raimunda. “A violência dessa atitude de demolir e incendiar a casa dessa moradora é imensurável, pois simboliza a soberania do empreendedor, que mesmo diante de tantos pronunciamentos, das mais diversas instituições, retorna com a mesma postura. A empresa descumpre a determinação do IBAMA, com a certeza de que a consequência não advém. Talvez receba uma multa”, afirma a procuradora. “A empresa está blindada pelo Estado e tem a segurança de que, independentemente do que fizer, obterá a Licença de Operação.”

O Ministério Público Federal já entrou com 23 ações contra Belo Monte, por descumprimento das medidas obrigatórias de redução e compensação do impacto da obra sobre o meio ambiente, os povos tradicionais e a população rural e urbana. Nenhuma delas conseguiu fazer com que a lei fosse cumprida. Seis delas tiveram decisões favoráveis, que em seguida foram derrubadas pelo instrumento autoritário da Suspensão da Segurança, que autoriza a continuidade da obra em nome do “interesse nacional”. A Defensoria Pública da União acaba de entrar com uma ação no valor de R$ 3,5 bilhões contra Belo Monte, para compensar a violação de direitos dos atingidos pela barragem.

Nem o IBAMA nem a Norte Energia responderam aos pedidos de entrevista do EL PAÍS até o fechamento da reportagem.

Diante das cinzas da sua ilha, Raimunda procurou seu pé de pinhão-pajé, plantado na frente da casa.

– Esse pinhão era meu amigo principal. Porque eu acreditava assim. Se eu chegasse de manhã cedo, e ele tivesse com as folhinhas moles, bem coladinhas, naquele dia eu não saía pro rio. Porque ele tava me dizendo algo, na linguagem dele. Tava buscando me proteger de alguma coisa. Mas, se ele tava todo arregaçadinho, eu já tava sabendo que tava tudo bem comigo.

Raimunda buscou seu “amigo principal”, mas ele já era um não havia.

– Agora eu não tenho mais quem me guie.

Raimunda então canta diante das cinzas.

– É muito difícil você ver o que é seu ser queimado. A única maneira pra me expressar é cantando. Pra que a minhas plantas saibam que eu jamais queria que elas fossem queimadas, ou fossem lesionadas. Pra que elas sintam que eu tou aqui. Como elas não sabem falar, e eu não sei a linguagem das plantas, eu canto pra elas. Digo pra elas que o mundo não acaba aqui porque minha casa tá sendo queimada. O mundo ainda tá de pé. Enquanto Deus me der a vida, eu vou levar comigo isso, esperança e fé. Que um dia a Justiça seja verdadeira. Porque agora a Justiça é uma visagem, uma lenda. Dizem que existe, mas os pobres nunca veem.

O Antes: O pai ensina Raimunda a caminhar sem fazer barulho

Raimunda desfila pelo corredor com suas sandálias havaianas. “Olha, caminho com qualquer calçado sem fazer nenhum barulho”, ela diz. Eu faço uma brincadeira que só uma branca que leu muitos contos de fadas é capaz de fazer: “Andar de princesa, né, dona Raimunda?”. Ela me chicoteia na hora: “Andar de quem passou a vida na casa dos outros”.

 Ilha do Xingu queimando para dar lugar à Belo Monte


Ilha do Xingu queimando para dar lugar à Belo Monte

 

 

 

 

 

 

 

 

O pai é a raiz de Raimunda. Ela vai repetindo seu ensinamento enquanto apresenta a dissolução do seu mundo, como se um pudesse costurar o rasgo do outro. Natalino Gomes era bisneto de escravos com muita dor no falar, e uma avó índia canela para apimentar o sangue africano com tropicalidades.

– Meu bisavô passou a corrente para o meu avô, que passou para o meu pai, e assim sucessivamente. Nunca deixou de ser escravo, o meu pai, porque só sabia trabalhar pros outros. Não sabia mexer com esse negócio de dinheiro, nem sabia ler. Meu pai ensinou todos os filhos a não fazer barulho ao andar. Eu fui criada nessa cultura do sim senhor, não senhor. Mas, não, nunca me acostumei.

Talvez Raimunda tenha herdado o arrebatamento da mãe, Maria Francisca Gomes. Ela era mãe de santo do candomblé, desafiando o catolicismo do pai. A mãe era alegre, era livre, no dizer de Raimunda. Tão livre quanto a pobreza permite. Um livre de viver em outras realidades, para além das correntes. A mãe era também arretada, não deixava homem nenhum botar-lhe canga, nem mesmo o marido, muito menos o marido. Quebradeira de coco de babaçu, partia para a lida com uma saia de meninos rodopiando ao seu redor. Raimunda carrega coco desde os cinco anos, quebra-os com o facão desde os sete. Guarda na mão as cicatrizes desse ofício que mutilou tantas crianças, amputando-lhes dedos e futuros. Mas isso foi antes de trotar para a casa dos outros, com passinhos de feltro, aos 10 anos de idade. Aprendeu a ler sozinha, juntando uma letra na outra para ver no que dava. Escola, não conheceu.

Raimunda avisa:

– Eu não levo recado, eu dou.

E então dá:

– A escravidão não acabou, ela só camuflou. A escravidão taí, nua e crua. Num outro modelo, mas tá. Porque ser escrava é isso. É não ter direitos. Olha o que aconteceu com a minha pessoa e com milhares de outros com essa Belo Monte? E cadê a Justiça? Taí, um monte de injustiças na cara da justiça. Então, sou escrava.
Em seguida, Raimunda acha que o recado ainda está curto e decide dá-lo todo:

Raimunda, no rio, com uma bandeira do Brasil na cabeça porque diz que o país também é dela

Raimunda, no rio, com uma bandeira do Brasil na cabeça porque diz que o país também é dela

 

 

 

 

 

 

 

 

– O negro sempre tá na segunda parte da história. Nunca na primeira. Ou na terceira, quem sabe? O primeiro lugar pro negro é muito difícil. É quase impossível.

Se as correntes encurtavam os passos silenciosos de Natalino, o pai de Raimunda, ainda assim ele sonhou. E foi pelo sonho, por essa esperança fininha que circula no corpo dos brasileiros que ainda hoje andam o mapa inteiro em busca de uma terra sem dono, que ele carregou a família para a Amazônia, no encalço de uma terra para quem nada tinha. Não conseguiu, e é por isso que Raimunda diz que o pai morreu escravo. Raimunda seguiu sendo babá, empregada doméstica, em casa alheia, também nas Amazônias do Pará.

Para ela, o pai legou uma série de dizeres, e também algumas profecias. Uma delas é esta, na qual Raimunda vai fazendo pontes entre o passado de escravidão e o presente de escravidão, entre o desterro de um continente ao outro e o desterro dentro do desterro.

– Meu pai dizia que um dia o mundo ia ser movido por um papel. E taí, o dinheiro. Não foi isso o que aconteceu? Belo Monte chegou impondo, derrubando, passando por cima e jogando umas migalhas de papéis que são os dinheiros que eles dão. Não veem que acabaram com aquela pessoa por dentro quando lhe tiram a sua casa. Entendeu? Tiram tudo da pessoa e jogam uns papeizinhos, daí fica assim. Entendeu?
Como João, seu marido, Raimunda também usa esse “entendeu” para concluir as frases, fazendo da interrogação quase uma faca no pescoço do interlocutor. Mas a esse “entendeu” ela dá um outro sentido. Raimunda acredita que ainda pode ser compreendida.

E assim, continua.

– Ninguém vive de dinheiro. Se perde no mato com uma sacola de dinheiro e vê o que o dinheiro vale: nada! Mas fica no mato sem uma sacola de dinheiro, perdido, que você consegue sobreviver. Você acha uma planta, você acha uma fruta, você bebe água. A mata lhe oferece tudo o que você precisa pra viver, pra sobreviver até alguém lhe encontrar. E você, com dinheiro, você morre com ele nas costas, não serve de nada.
Raimunda agarra-se ao chão que são as palavras do pai. Ela ali tem uma raiz que ninguém pode lhe arrancar. E como a catástrofe já estava prevista por aquele que arrastava as correntes, a sensação de que tudo está para além de qualquer controle é brutal, mas não a paralisa: “O papel acabou com o mundo, como meu pai dizia. Ele sabia”. O pai também dizia: “Siga as trilhas”. Raimunda, como se verá mais adiante, sempre dá jeito de encontrar uma trilha.

O Antes: abandonado pelo pai, João ganha o trecho e vira barrageiro

João também nasceu no Maranhão, mas esta não é uma terra de pertencimento para ele. João não migrou, como Raimunda, ele tornou-se um indo. Seu pai foi acometido por uma febre mais forte do que a malária, e que dura muito mais. E às vezes também mata. A do ouro. “Bamburrar”, encontrar tanto ouro que a pobreza será só uma fotografia empoeirada no passado, é o que faz bater o coração de milhares de homens Brasil afora. A cada “fofoca”, como se chama a descoberta de um novo veio de ouro, eles se lançam no território em barco, em ônibus, em pau de arara, em pés, com pouco mais do que a roupa do corpo e um sonho feroz. É a sua maneira de recusar-se a uma só sina, a da miséria, ou a de viver uma vida de aventuras e de consumição, uma vida, como um dia um garimpeiro me disse, de personagem de livro. Ao me dizer, esqueceu-se de que não sabia ler.

Como costuma acontecer no Brasil, em que os pobres são criminalizados toda vez que recusam seu destino e levantam a cabeça caçando horizonte, os garimpeiros são tratados como bandidos, enquanto as grandes mineradoras, as multinacionais, as que arrasam enormes porções de floresta e concentram o lucro, estas são purificadas pela palavra “negócio” ou “empreendimento” ou ainda “desenvolvimento”. Essa metamorfose também acontece neste momento, quando Belo Sun, a mineradora canadense, tenta se instalar bem perto de Belo Monte para explorar imensa jazida de ouro, esmagando os garimpeiros artesanais que por lá vivem há décadas. Se conseguir, terminará de arrasar com o Xingu e com os povos tradicionais, que pertencem à floresta e a preservam para o Brasil e o mundo.

O pai de João era um destes homens febris, que abandonou a família e também esse filho pequeno para consumir-se em seu eldorado íntimo. Tinha terra no chão nordestino e até um pouco de gado, mas não era homem plantado. Embrenhou-se nos garimpos de Itaituba, no Pará, lá onde hoje cresce o cerco do governo para mais duas grandes hidrelétricas: São Luiz do Tapajós e Jatobá. Como a maioria dos garimpeiros, encontrou uma mulher nova, e possivelmente várias outras. As prostitutas chegam antes dos garimpeiros nas fofocas, ou pelo menos junto com eles. Lá são chamadas de “mulher livre”, e os arranjos são variados. Podem ser mulher de um homem só em troca de uma quantidade previamente acertada de gramas de ouro, e cozinhar e lavar e namorar na “corrutela”, a vila que se forma no garimpo, como se esposa fossem. E às vezes se tornam. Quando o pai veio buscar o filho para levá-lo com ele ao garimpo, era tarde para um encontro que nunca houve. O pai tentou duas vezes, numa delas apareceu até de avião. João desacreditou das asas do pai e recusou-se a seguir com ele. Preferiu fazer-se homem quando ainda era menino.

Primeiro João trabalhou na roça de parentes, com oito anos de idade, um fiapo de gente. Aos 12, desgarrou-se. Lançou-se no “trecho”, uma das palavras mais enigmáticas na linguagem variada dos Brasis, que vai ganhando significados diferentes país afora. O trecho é o mundo, é a estrada, é a vida em movimento, é um fora prenhe de possibilidades. João viveu no trecho, trabalhando duro, carregando mais pedras do que podia, inventando músculos quando ainda não os tinha, porque a vida de menino pobre e sem letras é sustentada na força dos braços. Condenado pelo pai, que dizia que “escola de menino é cabo de enxada e cabo de facão”.

João não se filiou ao garimpo, esta era a escolha do pai, do qual ele não se considerava mais filho. Preferiu fazer sua própria filiação. Entre as sinas dos brasileiros pobres, ele escolheu a de se tornar barrageiro, um operário de barragem que vai seguindo a trilha dos grandes projetos do governo. E, quando não há nenhuma grande usina para construir, alista-se em contratos fora do país, negócios assumidos pelas gigantes do setor de construção. “Trabalhei na Mendes Júnior, trabalhei na Queiroz Galvão, trabalhei na Camargo Corrêa, trabalhei na Odebrecht, trabalhei na Andrade Gutierrez, trabalhei na Constran, trabalhei na Construpar. Trabalhei em outras firminhas sem vergonha. Eu sei que foram umas 12 firmas que eu trabalhei.”

João foi peão num jogo que tem como tabuleiro a Amazônia e o Brasil. Nos anos 50, no governo democrático de Juscelino Kubitschek, as empreiteiras construíram Brasília e nunca mais saíram do centro do poder. Cresceram e multiplicaram seus lucros logo em seguida, nos grandes projetos da ditadura civil-militar (1964-1985), com ênfase nas obras megalômanas na Amazônia, como a Transamazônica, uma entre tantas que aniquilaram floresta e vidas. Seguir o dinheiro das grandes empreiteiras é contar pelo menos 60 anos da história do Brasil, um período que vai da segunda metade do século 20 até esses primeiros 15 anos do século 21. Os empregadores de João hoje amargam a cadeia, acusados pela Operação Lava Jato, da Polícia Federal. A operação investiga a corrupção em contratos da Petrobras e, mais recentemente, também do setor elétrico. Delatores já revelaram a prática de propina em Belo Monte, paga ao PMDB e ao PT. A investigação está em curso.

No começo de sua vida de barrageiro, João foi trabalhador braçal. Depois, conquistou uma profissão e tornou-se operador de máquinas. Sua primeira grande hidrelétrica foi Itaipu, no Paraná, a obra binacional que afundou uma das maravilhas do mundo, as Sete Quedas, uma obscenidade sem reparação. Mas foi só em outra hidrelétrica, Tucuruí, que João compreendeu seu papel descartável no jogo comandado por reis e depois por uma rainha. No momento dessa descoberta, João começava o capítulo definitivo da sua vida, ao lado de Raimunda.

O casamento: João e Raimunda se encontram num “pancadão”

Raimunda tinha 16 anos quando conheceu João num baile. “Era um pancadão”, ela informa. “Eu olhei ele, ele olhonimim.” Foi assim, entre o azulado do olho de João e o negro de Raimunda, que se quiseram de imediato. Raimunda foi logo avisando que não era “da tradição de gente que se junta, se quiser me dê aliança e sobrenome e vamos fazer história”. Fizeram. Tempos depois se oficializaram num casamento coletivo. Raimunda enfeitou-se com um vestido lilás, segundo ela “a cor da mulher”. Em seguida, inauguraram uma fileira de filhas, no total de sete mulheres, todas com nome iniciado pela letra “L”. E apenas um filho homem, que morreu de meningite com um ano e cinco meses, batizado como Leodeí:

– Eu trabalhei na casa de uma senhora, e ela tinha um filho que era militar. E ele morreu numa cidade chamada Indonésia. Então eu guardei aquele nome na cabeça, Indonésia… E o sonho da mãe era conhecer essa cidade porque o filho morreu, ficou pra lá. Anos depois, trouxeram os restos mortais, mas não era mais o filho. Eu fiquei pensando comigo… Indonésia… Se a Indonésia é uma cidade que foi guerreada numa guerra inútil, e ela hoje tem paz, quero que a minha filha tenha esse nome. Aí coloquei Lindionésia. E depois vieram a Lindionisia, a Livia, a Liviane, a Leidiane, a Luciene e a Liliane.

Lindionésia é uma síntese e um desejo: depois de João e Raimunda atravessarem uma vida de guerra, a paz inscrita no corpo de letras da filha. A saga, porém, ainda não tem conclusão na concretude dos dias. A paz, na vida de Raimunda e de João, ainda não deixou de ser palavra para virar a coisa que representa. O “L” tem outro porquê:

– É de liberdade. Liberdade de expressão, né? Queria que minhas filhas fossem livres, que tivessem livre expressão de estudar, de brincar, de ser o que quisessem na vida.
Raimunda persegue a paz desde que se entende como Raimunda. Mas, sobre a paz, o pai não deu certeza.

– Meu pai colocou um ‘talvez’, talvez o mundo um dia tenha paz. Ele não deu como certo, e morreu sem encontrar a paz. E eu continuo procurando a paz.

Nesta busca, um dia João apareceu anunciando:

– Tão contratando em Tucuruí.

Foi ali que Raimunda descobriu, como ela diz, “que tem sangue doce pra barragem”. E a condição de peão revelou-se para João em toda a sua magnitude. Se antes ele andava de barragem em barragem, de obra em obra, agora ele tinha uma família. João não podia mais percorrer o trecho, ele precisava enraizar-se. Enquanto uma das barragens mais devastadoras da ditadura era construída também pelas suas mãos, no rio Tocantins, no Pará, João e Raimunda fizeram pouso e fizeram casa. Ao final, descobriram o que acontecia quando o rio é barrado, a floresta é inundada e um pedaço da Amazônia se finda. É Raimunda quem conta sobre o momento em que o círculo se fechou para João, e ele teve a revelação:

– Meu João trabalhou em Tucuruí a partir de 1976. Em 1983, ele se deu conta que tava feito pombo. Porque o pombo, ele faz o ninho, e no dia em que ele bota o ovo, ele começa a desmantelar o ninho. No dia em que termina de tirar o derradeiro fagulho do ninho, o filho já foi embora. E ele tava fazendo isso, mesmo. Porque ele trabalhou, comprou uma terra e uma casa com o dinheiro da barragem que construía, e essa mesma barragem alagou tudo nosso.

 A Hidrelétrica de Tucuruí era um projeto da ditadura. E não se negociava na ditadura: Ilha do Xingu sendo derrubada por causa da hidrelétrica


A Hidrelétrica de Tucuruí era um projeto da ditadura. E não se negociava na ditadura:
Ilha do Xingu sendo derrubada por causa da hidrelétrica

– E lá a gente era, eu não vou dizer burra, mas desinformada. O que aconteceu? Meu lote valia dois barão. Naquele tempo, era um dinheiro muito alto. Então, a Eletronorte falou o seguinte: “Eu não posso lhe depositar esse dinheiro sem o título da terra”. Nós tinha terra legalizada. E nunca mais nós vimos esse título. E não podia provar, porque era a palavra deles contra a nossa. Então, além de perder tudo, ficamos por mentirosos, de frente pra uma Justiça que tava lá. Por isso que eu me revolto com a Justiça, por conta disso. Nunca tivemos o que fazer. Não tinha como pagar um advogado, não tinha como pagar nada. Deram outra terra pra gente, que não tinha quem aguentasse os mosquitos nem as pragas. A água subiu por causa da barragem, e apodreceu toda a vegetação. Se formou um mar de insetos. Não tinha como sobreviver ali. O que que nós fizemos? Pegamos os filhos pequenos e fomos pra Marabá (na beira da Transamazônica) no finalzinho de 1985. Não deu certo. Em 1988 fomos pra Altamira.

Em Altamira, João e Raimunda descobriram que havia um lugar para pobre ficar rico: a floresta. Mas isso foi depois.

Antes, João passou por ainda mais duas provações. Logo depois de Tucuruí, ele partiu para o Iraque, contratado pela construtora Mendes Júnior Internacional. João, que se sentia vítima de uma guerra não declarada, foi despachado para o outro lado do mundo, para construir “uma pista para tanques de guerra”. Sofreu um ano longe da família. Quis voltar lá pelo meio, mas tinha assinado contrato. De lá ditou a Francenildo, o amigo que sabia escrever, uma carta para Raimunda. Terminou dizendo: “Só o amor constrói”. A carta está plastificada, como uma prova de que o amor deles constrói pontes entre exílios.

Depois da expulsão pela Hidrelétrica de Tucuruí, Raimunda tornou-se uma documentadora. Guarda tudo, registra tudo, agarra-se aos papéis. João também mudou. Da experiência de construir em países do Oriente Médio, ele faz uma analogia com Belo Monte:

– Conheci vários países, mas só vi o que acontece aqui, no país brasileiro, em lugar com terrorismo. Aqui, a empresa escolhe o dia de matar hoje e o dia de matar amanhã. Entendeu? Justiça não existe.

Em outra ocasião, João migrou pelo “país brasileiro” em busca de trabalho. Explica com essa lembrança por que não é capaz de pedir esmola, embora não tenha mais como ganhar o pão, desde que foi expulso da ilha:

– Eu nunca pedi nada, me acho com vergonha. Eu não tenho cara pra isso. Eu tenho cara de morrer de fome, mas não tenho coragem de pedir. Entendeu? Numa ocasião eu fui pra uma firma em Imperatriz (Maranhão), lá perto de Marabá (Pará). Eu tava com 50 contos. E já tava com três dias sem comer. Não comia porque aquele dinheiro era pro transporte. De noite eu tô num banco lá na rodoviária, um cara diz pra outro: “Rapaz, lá na cidade de Balsas (Maranhão) tão fichando gente por 3 e por 4”. Eu saí e comprei a passagem com os cinquenta contos. Sobrou cinco. Cheguei lá, eram cinco horas da manhã. Já passei na frente do escritório e vi logo a placa. “Não ficho ninguém. E não insista”. Mas eu, pra tirar a dúvida, tomei um café lá na rodoviária, de cinco contos sobrou só um, e fui caçar emprego. Quando eu passava nos restaurantes, naqueles restaurantes que tavam comendo, eu pedia um copo de água e bebia. Quando foi meio dia, eu voltei lá e falei pro cara: “Rapaz, não tem emprego e eu não tenho dinheiro pra nada. Acabou a minha condição”. Ele disse: “Olha, deixa a boroca (bolsa) aí. Você trabalha de estivador?”. Eu respondi: “Trabalho de qualquer coisa”. Arrumou uma carreira com oitocentos sacos de adubo, pra descarregar na fazenda perto. Aí, o que acontece? Antes do meio da carreta, eu já não dei mais conta. Tinha uma garrafa de água assim, e eu bebi a água e fui me esmorecendo, me esmorecendo, até que eu arriei mesmo. Contei que fazia quatro dias que não comia. Quando terminaram de botar o adubo, a mesa tava lá, pronta pro pessoal jantar. Queria que a senhora visse, de tudo. E botei duas colheres de arroz assim, botei um pedacinho de carne no prato. Mexi assim, comi a metade. Aí saí pra beber um copo de água. E vomitei tudinho. Na farmácia tomei uma injeção. Aquela injeção pra fortalecer. Fiquei lá um mês e pouco trabalhando. Mas nunca perdi a resistência e nem a esperança. Mas, muié, o que faz eu perder tudo é na situação que eu tou. Com que força eu vou trabalhar, agora que tou velho e doente? Eu não tenho mais resistência pra começar tudo de novo. E não sei pedir.

Quando reencontrou o rio, agora não mais para violentá-lo, mas para colher os peixes, João encontrou-se.

Paisagem do Xingu em parte ainda não afetada pela usina

Paisagem do Xingu em parte ainda não afetada pela usina

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A virada: João e Raimunda se descobrem ricos

A virada do milênio marcou a descoberta da floresta. Não como um contra ou um fora, mas como parte. Depois de peregrinar pelo que era chamado de progresso e só encontrar tribulação, João e Raimunda foram acolhidos por uma das centenas de ilhas do Xingu. Aprenderam a extrair o alimento da floresta, a plantar sem violar a terra, a pescar e a navegar no rio. Adotaram a vida dos ribeirinhos pescadores e agroextrativistas, que vivem em dupla casa, uma na rua, uma na ilha ou na beira do rio. “Rua” é como o povo que mora na floresta chama a cidade, o que já é muito revelador de sua visão de mundo. A casa na rua é para a venda dos produtos na feira, para resolver as oficialidades da burocracia, que sempre são muitas, para buscar tratamento para doenças mais enroscadas, para o estudo dos filhos; a casa na ilha ou na beira do rio é onde se ganha a vida e se vive livre. Pela primeira vez, João e Raimunda sentiram que haviam chegado. Tinham um lugar, nada lhes faltava. A fome era um passado.

Trataram de enraizar-se fundo. A vida era assim:

– Tinha nossa casa na ilha, de onde a gente trazia o peixe, o feijão, o milho, o abacaxi, a banana, o murici, a cebolinha, o cheiro verde, a chicória. Tudo isso era fonte de renda. Tudo isso eu fazia dinheiro. Do rio, eu tirava a cédula maior. Vinha pra cidade com as coisas que plantava, e com o meu peixe, e já cheguei a fazer mil e duzentos reais na semana, em dinheiro livre. Eu mesma ficava mais na rua, porque comecei a me envolver com movimento social. Meu marido morava lá na ilha. Quando ele vinha com o peixe, no sábado, eu vendia o peixe na feira e voltava com ele. E vinha de lá na quarta-feira no barco de linha. Ficava aqui esperando ele de novo com o peixe. A nossa rotina era essa. Nas férias, final de ano, eu ficava lá, com ele. Então, a nossa vida era um vaivém. Quando você vive no rio, você entende o rio que nem ele lhe entende. Você respeita o limite dele, que ele respeita o seu. É uma parceria entre você e as águas. É assim, ó: o remo é a minha caneta e o rio é a minha lousa.
Primeiro João e Raimunda compraram uma palafita nos baixões de Altamira, depois construíram uma casa de alvenaria. Raimunda faz questão de esclarecer que mesmo na palafita ela deu jeito de ter suíte, porque gosta muito de suíte.

– O sonho de uma casa na terra firme era muito longo. Ter um casa no chão. O rio nos deu. Consegui comprar minha geladeira, consegui comprar minha televisão, meu fogão a gás, meu botijão. Consegui comprar a minha cama, o meu colchão do jeito que eu queria. Eu fui na loja, comprei, porque eu sabia que o rio ia me dar retorno, eu ia poder pagar a prestação. O rio era meu banco, era meu cartão de crédito, era meu supermercado, era a minha farmácia, a minha loja. Tudo eu tirei do rio. Tudo o que eu tenho hoje veio de dentro do Xingu. O que o rio não dava, a terra dava.

Já não eram mais migrantes, João e Raimunda haviam finalmente chegado. Raimunda então entranhou-se nas lutas de Altamira e da Amazônia. A das mulheres, a da terra, a do meio ambiente. Filiou-se ao Partido dos Trabalhadores (PT), tornou-se militante de movimentos sociais. Ela agora pertencia. Seu verbo não era mais um ir, mas um ficar. Quando Luiz Inácio Lula da Silva assumiu o poder, pela primeira vez, em 2003, os movimentos sociais de Altamira e da região acreditaram que o projeto da hidrelétrica de Belo Monte estaria sepultado de vez.

Desde os anos 70, na ditadura civil-militar, a usina no Xingu era uma ameaça que ressurgia a cada governo, mesmo na redemocratização do país. No passado, a Eletronorte a chamou de Kararaô, palavra que é um grito de guerra na língua dos Kaiapó. Em 1989, produziu-se a cena histórica: a índia Tuíra encostou um facão no pescoço do diretor da Eletronorte, José Antônio Muniz Lopes. Tuíra demonstrava no gesto a resistência à barragem de um rio mítico, que era vida, cultura, espiritualidade e sustento para os povos tradicionais. A fotografia correu mundo. A Eletronorte recuou e trocou o nome da usina para Belo Monte. Nenhum governo conseguiu tirar Belo Monte do papel. E então Lula assumiu o poder com o voto da maioria das lideranças e dos militantes dos movimentos sociais da Amazônia. Um trabalhador, um sofredor, um homem do povo que conhecia a dor do povo. A partir daquele momento, Raimunda achou que a paz tinha chegado. O talvez do pai virava certeza.

É nesse momento, e não em qualquer um, que Sofia entra na vida de Raimunda. E torna-se sua mais íntima companheira. “É uma neguinha, cabelinho ruim, amarradinho”, descreve Raimunda. Sofia é uma boneca, a primeira boneca da vida de Raimunda. Ela estava num encontro de mulheres, em Belém do Pará, quando viu um homem vendendo bonecas na rua. Sofia custou cinco reais. Raimunda achou caro. Mas já tinha se encantado. Deu a ela esse nome por conta de uma história contada por uma freira de Manaus, sobre uma alemã chamada Sofia, que havia sido uma criança pobre e, ao crescer, criou uma instituição para cuidar de crianças pobres. Sofia agora cuida de Raimunda. E já acompanhou-a na Marcha das Margaridas, das trabalhadoras rurais, extrativistas, indígenas e quilombolas, na Rio+20, por todo canto. Escondida, porque João garante que “vão bulir” com Raimunda se descobrirem que ela carrega uma boneca na bolsa, ela, uma avó de 15 netos. “A Sofia significa para mim uma paz profunda, que não tem resposta”, poetiza Raimunda.

É no momento em que encontra um lugar que Raimunda pode ter até uma boneca.

– Eu não fui criança, porque trabalhei muito. Também não tive juventude. Por isso não dou minha velhice. Não abro espaço pra ninguém. Minhas filhas dizem que tou ficando perturbada. Nada, eu tou é vivendo.

Raimundo com a boneca Sofia

Raimundo com a boneca Sofia

Demorou alguns anos para que Raimunda e tantos outros compreendessem que haviam sido traídos. Lula era um sindicalista do ABC paulista, sua visão de mundo era a da indústria, do concreto, da cidade grande. Progresso, para um operário, era ter carro, TV de tela plana, churrasco no fim de semana. Progresso, para um país, era transformar a Amazônia em soja e pasto pra boi, exploração de minérios por grandes mineradoras para exportação de commodities (matérias-primas). Lula não tinha o menor conhecimento sobre esse outro viver, o da floresta. Mudança climática não fazia parte do seu universo. Seu projeto para a Amazônia era o mesmo da ditadura, que considerava a região uma questão de segurança nacional, um deserto de gente e um corpo para espoliação. A única voz no governo federal e no PT com alguma força para se contrapor a essa visão estacionada no século 20 era Marina Silva, ambientalista que se criou nos seringais do Acre e teve como um dos mentores o líder Chico Mendes, assassinado em 1988 por sua luta pela floresta. Marina só suportou a pressão até 2008, quando deixou o Ministério do Meio Ambiente e logo depois o PT.

Raimunda e as principais lideranças do Xingu perceberam tarde demais que somente Lula poderia tirar Belo Monte do papel. Ao trair os compromissos de campanha, por um lado o PT no poder desmobilizou os movimentos sociais, por outro os cooptou. A resistência, que por décadas foi coesa, rachou. O setor elétrico atravessou governos como um feudo do coronel do Maranhão, o oligarca José Sarney (PMDB). Um exemplo: José Antônio Muniz Lopes, o homem que teve o facão de Tuíra no pescoço, em 1989, é hoje, em 2015, o presidente do Conselho de Administração da Eletronorte e o diretor de transmissão da Eletrobras, já tendo ocupado diversos outros cargos de comando, nas décadas de 90 e 2000. “A Eletronorte é a mesma antes e agora”, resume Raimunda. “Só mudou a coleira, o cachorro é o mesmo.” Mas só o PT e Lula teriam força política para minar a resistência e fazer de Belo Monte uma realidade de toneladas de concreto no meio do Xingu.

Essa é a arquitetura que se mostrou capaz de consumar uma obra gigantesca e ultrapassada, na aliança entre os grupos que atuam desde o passado e o grupo do presente, uma alquimia que talvez a Operação Lava Jato possa começar a desvendar. São também esses interesses que atravessam governos que podem explicar por que Belo Monte vai se tornando fato consumado, mesmo violando a Constituição, com um governo cada vez mais fragilizado e parte dos donos das empreiteiras que a constroem presa por corrupção. Belo Monte é o nó que, quando totalmente desfeito, revelará o Brasil.

Para Raimunda, restou uma conclusão. O PT, para ela, não significava um partido a mais no poder, mas um projeto político que se confundia com sua busca de um lugar no país – e com a crença de que esse lugar existia. O simbolismo para ela era uma literalidade. Ao sentir-se traída, desacreditou:

– Se o Lula visse esse povo que o elegeu, jamais faria Belo Monte. É difícil pra mim falar isso, mas eu votei no Lula e votei na Dilma. E eles nos traíram. Porque o Lula disse claramente que Belo Monte não ia sair. E depois a Dilma falou que Belo Monte era preciso, que não tinha como voltar atrás. Eles são traidores da humanidade. Ah, meu pai do céu! Se eu visse eles, eu não diria. Eu avançaria na cara deles tudo, pra tomar vergonha. Que presidente é esse que mente pra nação? Eu não voto é mais nunca. Se eu não precisasse do título de eleitor, eu rasgava. Como eu preciso dele, não posso rasgar. Meu plano é não botar mais meu voto na urna. Eu vou lá e justifico. Eu não sei se é certo, mas esse é o meu plano.

Belo Monte é onde o PT traiu não a classe média, mas sua razão de ser: os mais frágeis e os mais desprotegidos, os historicamente arrancados da sua terra, como os indígenas, os historicamente exilados dentro do próprio país, como Raimunda e João. É nesse ponto do mapa, a última fronteira para quem palmilhou o Brasil inteiro em busca de paz, que o discurso petista em defesa dos pobres gira em falso há muito mais tempo. Mas como a Amazônia é um longe para o centro-sul, essas vozes foram ignoradas.

Raimunda quer falar:

– Eu vou dizer mais uma coisa: o rio tá doente, os peixes tão noiados, tão tudo grogues por causa do pouco oxigênio. Ninguém tem noção do tamanho desse monstro aí no Xingu. Ninguém sabe o que vai acontecer quando começar a funcionar. Ninguém.

Barragem

Barragem

Interrupção: “Belo Monstro” barra a vida de Raimunda e de João

Depois de travar as pernas e a fala no escritório da Norte Energia, João não voltou mais a ser o mesmo homem que varou Brasis e fomes. Em maio de 2015, Raimunda o levou para a capital, Belém do Pará, em busca de tratamento. Só voltariam de lá no fim de agosto. Nesse período, as filhas trataram de fazer a mudança da casa na cidade, porque sabiam que a mãe não permitiria se estivesse em Altamira, disposta a resistir até que o valor fosse justo. Quando Raimunda e João voltaram, já não tinham mais casa “na rua”. Em troca, tinham recebido 84 mil reais, valor insuficiente para comprar uma casa do mesmo tamanho e qualidade, e em localização similar. Raimunda reciclou 3.500 tijolos das casas demolidas dos vizinhos para começar a sua num loteamento fora da cidade. A canoa São Sebastião, nome dado em homenagem ao santo injustiçado, flechado tantas e tantas vezes, tornou-se um monumento à insanidade, objeto deslocado nos fundos da casa, em terra firme e a quilômetros do rio. Raimunda planeja fazer dela um banco para visitas quando a casa ficar pronta.

Dos três cachorros que viviam com João e Raimunda na ilha, dois não suportaram viver amarrados na cidade e morreram. Barão do Triunfo, um cachorro grande, mestiço de Fila, que se instalava na proa do barco para cuidar da casa na ilha, quando os donos estavam fora, morreu primeiro. “Dei esse nome porque ele era um lorde”, explica Raimunda. Xena, uma pitbull que ganhou o nome por ser “tão autoritária quanto a princesa”, personagem de filmes e de animação, foi a segunda a amanhecer morta. “Eu não podia deixar eles soltos na rua, porque na cidade eles são violentos. Mas não sabia que iam morrer. Se soubesse, tinha deixado eles morrerem soltos, pra morrer livres. Morreram na coleira”, lamenta uma Raimunda culpada. “Eu mesma não sei se um dia vou me libertar dessa coleira que a Norte Energia me botou. Vivo errando, me perdendo, indo pra uma casa que não existe mais. Deus não deu asas pra cobra porque ela já tinha veneno. Essa Norte Energia tem os dois, asas e veneno.” O único que restou foi o vira-lata Negão, “um cachorro que não se emociona assim tão fácil”. Negão, sem nome de princesa nem de barão, é um sobrevivente. Como Raimunda.

Ela documentou em fotos e vídeos o “antes, o durante e o depois de Belo Monte”. Assim, pode provar tudo o que diz. No “durante”, duas de suas filhas chegaram a trabalhar na construção da hidrelétrica, uma na cozinha, outra na mecânica. Raimunda peleou com elas. “Isso é que nem dinheiro de jogo, vocês não podem fazer isso comigo”, esbravejou. “Demorou, mas libertei minhas filhas.” De máquina fotográfica cor de rosa em punho, registrou até a Força Nacional protegendo Belo Monte do povo: “Veja bem, eles acham que sou eu a ameaça!”.

A documentação de Raimunda é um percurso de memória, ao mesmo tempo brutal e poético. Enquanto ela mostra as imagens, vai narrando a sua travessia.

A vida antes de Belo Monte:

– Documentei toda a minha história esperando o futuro, e o futuro taí. Antes de Belo Monte, a minha história era essa. Ó, a minha casa. O meu plantio, o meu pomarzinho, tudo limpo. Tudo varridinho, direitinho. Aqui o meu velho com a roça dele, limpando o chão. Aqui é capim-de-cheiro pra remédio, pra dor de barriga, essas coisa assim. Aqui é o murici carregado, é uma outra fase. Olhe esse pé de murici! Eles queimaram. Tá tudo queimado. Aqui, amigos me visitando. Macaxeira, muito bonito de se ver. Olhe. O meu cachorro, o Negão, aqui. Então, isso aqui, pra eles, não é nada. Pra mim era tudo. O meu amigo é esse aqui que eu tou falando, que era o pé de pinhão. Chegava em casa era o primeiro que eu via. Meu pinhão pajé. Olhe a beira do rio. Aqui, ó. O meu outro cachorro, que morreu só de tristeza porque não era acostumado com coleira, e eu amarrei. Aqui a gente vai parar.

A vida durante Belo Monte:

– Agora vou lhe mostrar durante Belo Monte. Durante o processo de vaivém, vaivém, vaivém. Aqui é o meu barco. Aqui, ó. Esse aqui é o meu fogão a gás, à lenha… A sobrevivência do rio é muito gostosa. Pra quem sabe o que é isso. Pra quem não sabe, não dá valor. Meu marido roçando… Óia. Plantando macaxeira, que ia chegar a chuva, então já tava se prevenindo. O meu cachorro, que já não tenho mais…O outro cachorro, também morreu. O meu velho. São 38 anos de convivência, sempre juntos. Eu corto, e ele planta. Hoje ele tá sentado numa cadeira, esperando sair minha casa. Aqui o final de semana em que eu cerquei, por causa das galinhas, pra fazer um plantio de cebolinha, mas não deu certo, porque as galinhas são mais rápidas do que eu. Esse aqui é meu velho branco de olho azul, um gato. Que hoje tá… Eu digo pra ele que ele não tá inútil, porque eu ainda vejo ele na minha frente. Então, ele ainda é meu gato. E tem um outro ângulo da ilha, aqui, que é onde ela tá produtiva. Deixa eu lhe mostrar aqui…As plantas que foram queimadas. As que eram mais próximas da casa eles queimaram, acabaram com tudo. Aqui é no inverno. Ó, a gente planta e colhe durante a cheia, por conta que a cheia, ela vem, mas ela tem a data certa. Olhe o meu canteiro, as cebolinhas…Cheiro verde… Eu tirando o tomate, o gengibre, que é pra dor de cabeça, dor de barriga e bucho inchado. Remédio caseiro. E aqui eu, dentro d’água, que eu adoro água, também. Aqui, eu com medo de uma cobra, que ela tinha ido na minha frente, eu fui atrás dela. Mas ela foi mais rápida que eu, foi embora. A gente dorme na rede durante o inverno. O meu neto, que ia pra ficar umas férias comigo. Meu pé de capim-santo, ele também não morre na água, ó, fica um tempo submerso. Só se cobrir essas folhinhas aqui que ele morre. Mas, se ele respirar, ele não morre. Minha casa, que pra Norte Energia não era uma casa. Bananeira… ó, os cacho de banana. Tudo carregado. A macaxeira toda de pé. Olha lá o milho. Aqui, ó. O milho todo carregado. Aqui, eu com medo da cobra de novo. Ela com medo de mim, eu com medo dela. Então, isso aqui… é o fim de uma história da vida de uma ilha, que pra mim é muito importante. Porque eu não vivia na ilha. Eu vivia dela, e ela vivia de mim. Porque a gente era como amiga. Abacaxi. Mais milho verde. Ó, o milho lá atrás. Olha esse cacho de banana, o tamanho. Deixa eu pegar pra você ver. Essa aqui, olha, além de ser uma fruta pra alimentação, ela é um antídoto contra inseto. Tem o pescador que vive na ilha, e eu vivia da ilha. Cultivava ela, e ela me cultivava. A gente era amiga. Entendeu? Deixa eu lhe mostrar uma foto aqui em que o rio se despede, vai embora.

A vida depois de Belo Monte:

– Aqui sou eu, pensando… Quando será esse dia, que eu não quero sair? O meu genro dizendo que já era, não tem mais jeito pra fazer nada, é isso mesmo. E eu falando pra ele que eu ainda tinha esperança. Aqui eu dizendo pras minhas plantas que eu ia, mas eu voltava. Mas era só história, que eu não voltei. Meu véio pensando se voltava lá um dia, ou não: “Será que eu ainda volto aqui?”. Eu falei: “Não sei, Deus que sabe”. Óia eu olhando pro horizonte, pedindo a Deus que deixasse a gente ficar na ilha. Meu marido chorando. Isso aqui tá tudo queimado. A Norte Energia queimou. Olhe aí. Toda aquela beleza que eu lhe mostrei, aquele murici, aquela coisa mais linda…Tá aqui, sapecado. Eu fui lá, registrei de novo. Registrei o antes, o durante e o depois de Belo Monte. Aqui, ó. Não sobrou nada. Diz que um crime sempre deixa uma prova. Eles deixaram. Aqui, ó. A impunidade só existe porque a Justiça não se manifesta. Enquanto a Justiça tiver com aquela venda na cara, que é aquela estátua que fizeram lá em Brasília, é assim, ó. A Justiça só vê quem ela quer. Quem não quer, ela não vê.

Raimunda quer escrever um livro. Já tem o título: “História de um pescador: antes, durante e depois de Belo Monte”. Começa a acreditar que o único lugar seu será a sua cova. Já encomendou a mortalha: “de cetim, em branco da paz”.

Terceiro ato: o impasse

Raimunda desenhou a planta da casa nova com o cuidado de que ela seja bem diferente daquela que foi destruída. “Eu não quero mais porta que entre pela frente, quero uma porta que entre de lado, porque quero que meu futuro seja diferente. Então, comecei pela infraestrutura da casa”, explica. “Quando eu entrar nessa casa hoje, eu não quero chegar pensando que tou na outra.” Raimunda marcou toda a história na casa nova, ainda em construção: as paredes são verdes, “porque é a esperança no futuro”, os rodapés são marrons, para mostrar “a barreira da barragem”, as grades das janelas são pretas, “em sinal de luto”. “Tudo na minha vida tem uma história”, ela reforça. E tem.

Raimunda e João

Raimunda e João

Raimunda é uma criadora de sentidos, e por isso consegue seguir a vida. João, não. No dia em que paralisou, ele perdeu a capacidade de criar sentidos. Por dentro, ainda está travado. João viu demais, e o excesso de lucidez o cegou. Agora, não consegue voltar. “Perdi a ponta da meada. Estou dentro dessa casa hoje, mas de fato, toda hora, eu não tenho casa. Eu não tenho casa. Entendeu? Eu tou fora. Me perco. Não sei onde tou. Perdi o rumo de tudo”, inflama-se, os olhos de rio, mas um rio de amazônica tempestade. “Estou pior que a Dilma, porque ela perdeu o rumo do país, mas eu perdi o rumo de casa.”

É este hoje o impasse entre João e Raimunda.

Raimunda diz:

– Sou uma pindova, uma palmeira muito perseguida lá no Maranhão. Quanto mais casca Belo Monte arranca de mim, mais eu me renovo. Fiquei queimada por dentro, como a minha ilha, mas me renovo. A pindova é assim, ninguém mata ela com fogo nem arrancando nem com nada. Ela volta. Como eu. Já venho de uma naturalidade de pessoas muito sofridas, o sofrimento faz parte da nossa história. Não vou morrer porque peguei porrada. De jeito nenhum, sou descendente de escravos e de uma etnia indígena quase extinta. Então, venho de um povo sofrido lá da base. Sou pindova e quero viver.

João responde, e é como se os dois estivessem num diálogo de repentistas:

– Mas eu não sou assim. Quando eu perdi a ilha, eu perdi a minha vida. Eu perdi a linha. Parou ali, entendeu? Daqui pra frente eu só vejo escuridão na minha vista. Eu não vejo mais aquele mundo limpo. Eu só vejo escuridão. Fico aqui, olhando pro mundo, procurando a mim mesmo. Quem sabe me responder essa procura? Ninguém. O buraco na minha vida, o buraco na minha vida…

O impasse atingiu seu ápice em 4 de setembro de 2015. Nessa data, João “enlouqueceu” dentro de casa. Raimunda conta:

– O João chamou a família pra ir lá na ilha queimada. Pra servir de mártir. Ele quer se matar lá, como protesto. Eu disse que não ia nem deixava ele ir. Se ele se matar lá na ilha, avisei que deixo ele lá, pra ser comido pelos urubus. Por isso tirei a canoa dele. Qualquer parte do rio ele vai a remo, nadando. Mas na rua ele se perde.

João encerra seu repente brutal:

– Eu quero que o mundo saiba que Belo Monte me matou.

(Publicado no El País em 22 de setembro de 2015)

 

 

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