Matando por terras

Pouco antes de morrer, o cineasta Adrian Cowell liberou um documentário com cenas brutais da guerra travada na Amazônia brasileira. Filmada nos anos 80, a obra manteve-se inédita no Brasil por mais de duas décadas para proteger as testemunhas de assassinatos. Nesta semana, o filme será exibido pela primeira vez – e poderemos constatar que o passado continua dolorosamente presente

Cena 1 – Os homens andam pela floresta. Eles têm pés de andar, machucados pelas raízes, pelo sol, pela chuva, pelo caminho. E velhas espingardas nas mãos. No rosto, a expressão dos que foram lançados uma curva além. São homens desesperados – e homens desesperados não têm nada a perder. Exceto a vida, mas esta eles vão perder de qualquer jeito. Em busca de terra, já não há para onde ir. Exceto mais e mais para dentro. “A gente vai ficar. Se for, a gente só morre mais depressa”, diz um. Ali, eles já morrem depressa demais. É o corpo de um companheiro que vão buscar. Raimundo Piauí, posseiro como eles, sem-terra em busca de terra, apodrece há sete dias na mata. Assassinado por pistoleiros a mando de fazendeiros na guerra cotidiana travada na Amazônia.

Cena 2 – Ele é só um velho caçador, com uma espingarda de caça quase tão velha quanto ele. Os pistoleiros sabem disso. Mas não importa. Ele está ali, fácil e frágil. E é preciso dar um aviso aos posseiros que lutam pela terra. Os pistoleiros exigem a espingarda. Ele não entrega. Não entrega porque não pode entregar. Sem ela, morrerá de fome no meio da mata. É morrer de um jeito – ou de outro. Ele se vira. Os pistoleiros o abatem pelas costas. Um tiro atinge a sua boca, os dentes se espalham. Ele cai. João Ventinho era o seu nome. Mais um, só mais um ninguém cuja vida jamais será paga na Justiça.

Cena 3 – O homem corre. Os pistoleiros o perseguem atirando. O homem carrega uma criança nas costas. O menino grita primeiro. As últimas palavras do homem são: “Ô malvadeza”. Os dois corpos tombados na terra. O do posseiro Sebastião Pereira, liderança rural. E o de Clésio, de três anos. Um corpo de menino na mesa do necrotério, vítima de uma guerra que o matou antes que pudesse entendê-la. Uma guerra onde as crianças recebem balas de chumbo.

Estas cenas reais fazem parte do documentário Matando por terras (52 minutos), que será exibido pela primeira vez no Brasil nesta quinta-feira (5/7), no CineSesc, em São Paulo. Filmado nos anos 80, ele não pôde ser mostrado aqui por mais de duas décadas para não expor as testemunhas dos crimes – e condená-las também à morte.

A guerra da Amazônia: Depois de ter suas casas queimadas, um grupo de sem-terra se arma para se proteger dos pistoleiros, nesta imagem do filme Matando por terras (Foto: Divulgação)

A guerra da Amazônia: Depois de ter suas casas queimadas, um grupo de sem-terra se arma para se proteger dos pistoleiros, nesta imagem do filme Matando por terras (Foto: Divulgação)

O filme revela, de forma crua e persistente, como possivelmente nenhum outro documentário sobre o tema, a guerra travada na Amazônia. Uma guerra que, antes como agora, a maioria finge desconhecer. Rodado ao longo da rodovia Belém-Brasília, documenta o conflito entre fazendeiros – temerosos de perder os privilégios garantidos pela ditadura militar – e sem-terra. Mais de 100 pessoas foram mortas na região neste período.

A versão brasileira de Matando por terras foi o último trabalho do cineasta britânico Adrian Cowell. Ele se preparava para viajar ao Brasil para concluí-la quando morreu de ataque cardíaco, em Londres, no último 10 de outubro. Tinha 77 anos – 50 deles filmando a Amazônia. É pelo olhar de Adrian, um homem nascido na China e criado na Inglaterra, que uma parte da memória brasileira foi preservada. Não tivesse ele desembarcado no Brasil em 1957, aos 23 anos, para filmar o Monte Roraima, e uma parte crucial da saga amazônica teria permanecido invisível, sepultada em sangue e silêncio. Este testemunho único será exibido de 5 a 12 de julho, numa mostra em sua homenagem, promovida pelo CineSesc.

Morrendo por terras: Posseiros enterram um companheiro assassinado por pistoleiros, em uma cena filmada por Adrian Cowell (Foto: Divulgação)

Morrendo por terras: Posseiros enterram um companheiro assassinado por pistoleiros, em uma cena filmada por Adrian Cowell (Foto: Divulgação)

Adrian Cowell produziu o maior registro audiovisual da Amazônia. Todo o seu acervo foi doado à PUC de Goiás e está disponível para ser acessado: quase 900 mil metros de filme, sete toneladas que se transformaram em 30 documentários. Neste percurso, Adrian conviveu com Orlando Villas-Boas antes mesmo da criação do Parque Indígena do Xingu. Trabalhou também com Apoena Meireles, outro grande sertanista, assassinado em 2004 durante um assalto em Porto Velho (Rondônia). Em meio século, ele filmou um Chico Mendes ainda desconhecido do próprio Brasil – e o seu trabalho ajudou a projetar o líder seringueiro no mundo.

Adrian filmou tribos isoladas e filmou a destruição. Enquanto ele capturava a vida em um embate de morte, seus personagens tombavam junto com a floresta. Às vezes, antes mesmo do final do filme. Adrian começou a filmar Chico Mendes porque o personagem cuja história planejara contar, Padre Josimo, um religioso negro da Comissão Pastoral da Terra, foi assassinado no Tocantins pouco antes do início das filmagens. E Chico Mendes foi executado ao longo das gravações da série mais famosa de Adrian, A década da destruição, que será exibida na mostra.

O cineasta acreditava que um dia documentaria “A década do meio ambiente”, com o fim da devastação da Amazônia. Morreu com seu sonho – mas sua obra teve uma importância crucial para que a preservação da floresta e dos povos da floresta deixasse de ser uma questão de ecologistas para se tornar um problema do mundo.

Em 1980, Adrian conheceu o cinegrafista brasileiro Vicente Rios e, juntos, filmaram pelos 30 anos seguintes. “Rios e Cowell formaram uma poderosa dupla, como aquelas de pistoleiros do Velho Oeste, retratadas pelos filmes de Sergio Leone”, escreveu o jornalista Felipe Milanez, idealizador e curador da mostra. “Por vezes, andaram literalmente armados de revólver, para o caso de precisarem se defender, como em Serra Pelada, ou então portando uma arma muito mais poderosa: a câmera.”

Quem quiser conhecer as aventuras vividas pela dupla poderá ouvir da boca do próprio Vicente, na abertura da mostra e em algumas sessões apresentadas por ele. Vicente Rios também exibirá um documentário inédito – Visões da Amazônia. A obra apresenta cenas de bastidores das filmagens e coloca Adrian diante das câmeras, fazendo uma reflexão sobre suas memórias e sua paixão pela floresta.

Adrian apaixonou-se tanto pela Amazônia e pelo seu povo que deu ao filho um nome que junta mundos: Xingu Cowell. O menino morreu em um acidente de caiaque, aos 18 anos, no mesmo ano em que Adrian começou a filmar Matando por terras, no sul do Pará. O próprio Adrian participaria da mostra de cinema em homenagem à sua obra, mas tombou no meio do gesto. Até o fim, ele acreditou que a floresta poderia ser salva. E lutou por isso.

Em 6 de junho de 2011, Adrian escreveu para o jornalista Felipe Milanez. O cineasta acabara de saber do assassinato de José Cláudio Ribeiro e Maria do Espírito Santo. O casal foi executado a tiros nas proximidades do assentamento onde viviam, em Nova Ipixuna, no sul do Pará. Adrian dizia, com o português que aprendeu enquanto se embrenhava na selva, que o filme Matando por terras, ainda inédito, mostraria que os assassinatos registrados por ele, 25 anos atrás, continuavam se repetindo no Brasil de hoje. Foi assim, porque o filme é presente tanto quanto passado, que a versão brasileira foi feita.

Na Amazônia, o século 20 invadiu o século 21, a violência tolerada (e muitas vezes patrocinada) pela ditadura persistiu na democracia. E os mesmos de sempre seguem tombando a tiros. Adrian Cowell poderia ter filmado cada uma das cenas a seguir. Todas elas – e muitas outras – aconteceram há pouco. E continuam se desenrolando neste exato momento.

Cena 1 – Zé Cláudio e Maria, lideranças que vivem da extração de castanha, estão perto do assentamento onde vivem. Zé dirige, Maria se agarra a ele na garupa. Assim que Zé diminui a velocidade da moto para passar sobre a ponte que cobre um igarapé, são atacados pela dupla de pistoleiros. O primeiro tiro de escopeta atravessa a mão direita de Maria e atinge o lado esquerdo do abdômen de Zé. Em seguida, mais tiros de escopeta e de um revólver calibre 38. Um dos assassinos puxa a faca, caminha até Zé Cláudio e corta um pedaço de sua orelha direita. Uma prova do serviço feito para entregar ao mandante. É 24 de maio de 2011. Hoje, é Laísa Santos Sampaio, irmã de Maria, que vive sob ameaça de morte. (Assista aqui ao depoimento de Zé Cláudio.)

Cena 2 – João Chupel Primo, mais conhecido como João da Gaita, trabalha na sua oficina mecânica, em Itaituba, no oeste do Pará. Um minuto depois está morto, com uma bala na cabeça. É 22 de outubro de 2011. Caçado por pistoleiros, seu amigo Júnior José Guerra começa a fugir. Os dois haviam denunciado a quatro órgãos federais e dois estaduais uma milionária operação criminosa de roubo de ipê do interior de áreas de preservação. Toda a madeira passava – e continua passando – por um assentamento do Incra, entre os municípios de Itaituba e Trairão. João e Júnior denunciaram também 15 assassinatos consumados nos últimos dois anos na região por causa da posse da terra e do controle da madeira. Denunciaram às autoridades – e não foram protegidos. (Leia aqui.)

Cena 3 – Em 2010, a líder rural Nilcilene Miguel de Lima foi espancada e teve sua casa queimada, no município de Lábrea, no Amazonas, depois de denunciar a grilagem e o roubo de madeira em seu assentamento. Em maio de 2011, fugiu enrolada em um lençol do pistoleiro atocaiado perto da sua casa. Só voltaria em outubro, protegida por uma escolta da Força Nacional. Em 30 de março de 2012, sua amiga Dinhana Nink, de 27 anos, foi a sétima pessoa assassinada na região nos últimos cinco anos por denunciar madeireiros e pistoleiros. Ela tinha fugido para Rondônia para escapar da morte, mas a alcançaram. Mataram-na com um tiro no peito diante do mais jovem de seus três filhos, Tiago, de 6 anos. Quando o pai de Dinhana encontrou o corpo, Tiago limpava o sangue do rosto da mãe. No último 19 de maio, a Força Nacional interrompeu a proteção a Nilcilene, e ela teve de deixar sua casa e a colheita para trás para se esconder mais uma vez. É nesse desamparo que se encontra agora. (Leia aqui.)

A guerra na Amazônia continua, como Adrian Cowell apontou pouco antes de morrer. Em Matando por terras, ele registra a campanha presidencial de 1989. Nela estão Lula, Fernando Collor e Ronaldo Caiado. Lula nos históricos comícios bordados de bandeiras vermelhas do PT, ao som do povo cantando “Lula-lá” com esperança e orgulho na voz. Collor fazendo promessas no tom histriônico de “caçador de marajás”, e Caiado incitando os fazendeiros a reagir contra os “invasores”. Em certo momento do filme, ainda aparece Paulo Brossard, então ministro da Justiça, reagindo com veemência às denúncias de assassinatos na Amazônia, feitas pela Anistia Internacional, com uma frase que já era popular naquela época: “É uma fantasia!”.

O Lula de 1989 diz: “A única forma de acabar com a violência é punindo. E fazendo a reforma agrária”. Collor foi eleito e depois deposto por impeachment. Fernando Henrique governaria por dois mandatos. Só então Lula se elegeria por duas vezes e ainda faria a sucessora. Mais de duas décadas depois, a realidade mostra que o mesmo filme poderia ter sido feito hoje – apenas com novos cadáveres.

Antes, os mortos eram chamados de sem-terra ou posseiros. Hoje, a maioria é “assentado”. No papel, conquistou-se assentamentos do Incra, reservas extrativistas, florestas nacionais. Mas as conquistas dos anos de democracia não alcançaram o concreto dos dias: o Estado que está no papel não está na vida. Há vastas porções da Amazônia sob o controle do crime organizado – cada vez mais sofisticado e com braços mais longos. Sem o apoio do Estado, quem denuncia o “malfeito” assina sua sentença de morte. E vive seus últimos dias na insanidade: quem morre hoje estava marcado para morrer, avisou às autoridades que morreria, documentou as ameaças e os pedidos de socorro, às vezes em vídeo – e morreu.

Adrian Cowell emprestou seus olhos e arriscou sua vida por meio século para mostrar o que muitos brasileiros não queriam ver. Conhecer sua obra é um bom começo para mudar esse filme.

(Publicado na Revista Época em 02/07/2012)

 

 

A pequenez do Brasil Grande

A ditadura acabou, mas a palavra “desenvolvimento” continua sendo torturada para confessar o que o governo deseja que o povo acredite

No início deste ano, Sheyla Juruna viajou pela Europa para levar sua voz contra a construção da hidrelétrica de Belo Monte, no Xingu. Em agosto, durante uma entrevista em Altamira, no Pará, eu perguntei a ela o que tinha achado do que viu. Ao fazer a pergunta, imaginava escutar sobre o assombro de uma indígena criada na Amazônia diante da arquitetura e da arte que povoam as ruas e os museus das principais capitais europeias. Afinal, deslumbramento é a reação habitual de quem viaja a países como a França. Ao me responder, uma sombra passou pelo rosto de Sheyla, uma bela mulher de 37 anos com os traços bem marcados de sua etnia e olhos e cabelos bem pretos. A sombra passou e não foi embora. Para meu espanto, Sheyla assim respondeu à minha pergunta:

– Eu estranhei. Fiquei triste e oprimida. Não consegui enxergar beleza. É um mundo de concreto. Terrível. Só conseguia pensar no que havia antes que foi destruído para que aquilo tudo pudesse existir. Só conseguia pensar nos povos que viviam lá antes e viraram História.

Vários filósofos já escreveram sobre a importância essencial do espanto para alcançar o outro e construir conhecimento. E nós, jornalistas, aprendemos isso na prática. O melhor costuma nos chegar pelo espanto. Pelo menos, foi assim que me senti diante de Sheyla Juruna. Bem espantada, porque a beleza arquitetônica das capitais e cidades históricas da Europa sempre me elevaram – jamais me oprimiram. E ali estava aquela mulher, com uma sombra instalada no rosto bonito, me desvelando outro jeito de ver o mundo, nascido de uma experiência totalmente diversa. Para Sheyla, forjada na lógica da destruição, ao deparar-se com as capitais europeias o que ela vê é o que não mais está lá. Então, ela diz:

– Nós, indígenas do Xingu, não queremos virar História. Nós queremos permanecer vivos, nós queremos continuar.

O mais eloquente para Sheyla Juruna ao conhecer a Europa é a ausência. Porque a experiência de Sheyla mostra que, para que um mundo possa ser construído, outro tem de ser destruído. E o mundo destroçado, ontem como hoje, é sempre o dela. E é por conta desta nova tentativa de destruição que Sheyla fez o caminho inverso dos navegadores portugueses e desembarcou na Europa. E ali se sentiu oprimida pelo que não enxergou.

Quem é Sheyla Juruna, que nos enriquece com o olhar do avesso? Ela é uma indígena cuja cultura foi tão dilacerada que hoje, para alertar o Brasil e o mundo da devastação que Belo Monte vai causar, precisa fazer isso na língua dos dominadores, já que a sua lhe foi roubada. Quando sua bisavó tinha nove anos, seu povoado foi incendiado pelos brancos que ocuparam a Amazônia no ciclo da borracha. Para não ser morta junto com sua família, passou a noite escondida numa castanheira, na floresta. Quando amanheceu, continuou fugindo pela mata até deparar-se com um seringal. Foi então “amansada” pelo patrão. Proibida de falar a língua do seu povo, seu nome também foi apagado. E este silêncio foi sendo transmitido de geração para geração de mulheres. Até Sheyla.

Sete anos atrás, à beira do caixão da avó, filha desta primeira vítima da ocupação da Amazônia, Sheyla jurou lutar pela floresta que representa toda a possibilidade de vida para ela e sua comunidade.

– O espírito nos escuta, e nós escutamos o espírito. Então eu disse a minha avó: “Eu prometo que nunca vou deixar de lutar. Tudo o que a senhora não conseguiu conquistar, eu prometo que vou tentar conseguir. Nunca vou desistir dessa luta, nunca vou desistir de lutar por nossos direitos”.

Sheyla chora agora. E me explica que a vida não está apenas nas árvores e nas flores, no rio que corre livre e cristalino nem nas espécies de peixes, pássaros, animais e insetos, mas num modo de ver e de estar no mundo. Num modo de ser – no mundo. É isso que Sheyla nos dá ao nos espantar com seu olhar sobre a Europa.

Em setembro, contei a história dela e deste olhar para europeus, numa palestra no Festival de Literatura de Mântova, na Itália. Muitos rostos na plateia se iluminaram no início, antecipando o maravilhamento de Sheyla diante da cultura europeia, acostumados que estão a serem admirados. E foi ainda mais evidente a confusão estampada em suas faces quando contei da resposta de Sheyla. Nas horas e dias que se seguiram, aqueles que me encontravam nas ruas da cidade e nos eventos do festival comentavam sobre como foi ao mesmo tempo chocante e rico aquele olhar inusitado sobre a sua cultura. E foi aquele olhar que fez com que compreendessem o que estava em jogo naquele momento na Amazônia brasileira.

Em nossa conversa, os olhos de Sheyla escureceram ainda mais depois de seu relato de viagem. Percebi que se alagavam como acontecerá com a floresta se sua luta for em vão. Mas é de água salgada – e não da água doce do Xingu – que os olhos de Sheyla se inundam quando fala na avó e no futuro próximo. Sheyla dói. Ela é o tipo de mulher que chora também de raiva. Ela diz então:

– Eu odeio a palavra “desenvolvimento”. O Estado sempre usou esta palavra para justificar a destruição. Não deveria ser assim, né? O desenvolvimento deveria dar condições para as pessoas viverem na sua própria forma de ser, na sua cultura. Mas, na prática, o desenvolvimento é usado para nos destruir. Porque o desenvolvimento não existe para sustentar a vida, mas para o lucro das empresas e de quem faz as políticas. Em nome do desenvolvimento meus antepassados perderam até a língua que falavam. E agora poderemos perder também a vida. De novo, em nome do desenvolvimento. O que é Belo Monte? A destruição da Amazônia e da vida dos povos que vivem lá em nome do desenvolvimento. Eu detesto, detesto essa palavra.

Sheyla Juruna tem o dom precioso do estranhamento. Ela não aceita fácil o que lhe dizem. Tampouco sai repetindo os discursos dos que defendem o mesmo que ela. Numa região em que parte das lideranças indígenas foi corrompida por cestas básicas, combustível e até isqueiros, como nos tempos em que se trocava ouro por espelhinhos, Sheyla se destaca com sua lucidez. Talvez por ter perdido o idioma, com tudo o que o idioma carrega, ela tenha um respeito profundo pelas palavras, ainda que sejam as palavras da língua de quem assassinou o seu povo.

Alguém já disse que as estatísticas oficiais costumam torturar os números até que eles confessem. Sheyla mostra que, com o discurso do desenvolvimento, se passa o mesmo. Se “bem” torturado, pode servir – e tem servido – para quase tudo. É assim que Sheyla nos ajuda a estranhar não só a Europa, mas também o Brasil. Nos ajuda a ver o que não está também aqui. E, neste momento, mais do que em qualquer outro período histórico, esperávamos que estivesse.

Nesta segunda-feira, 17/10, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), em Brasília, deverá julgar a ação civil pública que pede a interrupção de Belo Monte com base na exigência constitucional de que os índios sejam ouvidos. Segundo o artigo 231 da Constituição Federal, as comunidades indígenas deverão ser consultadas previamente no caso de aproveitamento hidrelétrico que afetem as populações. No momento em que esta coluna é publicada, o julgamento ainda não ocorreu. Sheyla Juruna é uma das que reivindica que seu povo seja escutado.

– Durante todo o processo de Belo Monte, nunca houve uma consulta específica aos indígenas. Ficamos esperando que acontecesse, mas não aconteceu. O governo federal apenas mente que nos escutou. E nós lutamos para mostrar que não fomos escutados e, sim, queremos e temos o direito de sermos ouvidos.

Eu lembro bem da ditadura militar. Era pequena, mas ela marcou a minha vida de várias maneiras. Quando cresci, li tudo o que pude sobre esse período histórico, porque queria adquirir maior conhecimento. E, quando me tornei jornalista, escutei muitas vítimas do regime. Quando criança, porém, ao folhear as revistas dos anos 70, não conseguia evitar um certo fascínio ao deparar-me com a propaganda do governo militar sobre a Amazônia, naquele tempo tão distante de mim quanto a Lua. “Uma terra sem homens para homens sem terra”, “Integrar para não entregar”, “Deserto verde”… eram alguns dos slogans e expressões que povoavam a ocupação da floresta pela ditadura. Só quando cresci eu soube que sempre tinham existido muitos homens, mulheres e crianças na Amazônia – e que parte deles havia sido vítima de genocídio na ocupação promovida pelo Estado brasileiro. E que não havia deserto, só verde. O deserto veio depois, patrocinado pelo governo e financiado por dinheiro público.

Depois de tudo, agora me espanto com a sensação de estar revivendo algo fora de época. O PAC para a Amazônia do governo Lula e agora do governo Dilma é um grande projeto de ocupação baseado em obras faraônicas, financiadas por dinheiro público, com a mesma lógica predatória e imediatista do passado. E, principalmente, com o mesmo o discurso do desenvolvimento. Não o desenvolvimento sustentável, que mobiliza o planeta, mas aquele surrado desenvolvimento dos velhos tempos. Só não se fala – muito – em “progresso”, porque esta palavra realmente até os mais obtusos teriam dificuldade de engolir na segunda década do século XXI.

Tenho virado as páginas de jornais e revistas da democracia e lido coisas que me remetem a uma época em que a imprensa vivia sob censura. Pego na porta de casa o exemplar dominical de um dos maiores jornais do país. E lá está a manchete: “Amazônia vira motor de desenvolvimento”. Tive uma sensação estranhíssima. Me lembrava de muitos títulos parecidos, mas nos anos 70. A certa altura da reportagem, leio lá: “Para acelerar a implantação dos projetos, o governo federal estuda uma série de mudanças legais. Entre elas estão a concessão expressa de licenças ambientais, a criação de leis que permitam a exploração mineral em áreas indígenas e a alteração do regime de administração de áreas de preservação ambiental”.

Ou seja: o governo federal pretende anular as conquistas democráticas das duas últimas décadas na área socioambiental. Em nome do mesmo tipo de desenvolvimento pregado na ditadura, com consequências amplamente documentadas: devastação, genocídios, conflitos e assassinatos que seguimos testemunhando. Como se 40 anos não tivessem se passado desde a década de 70 – e como se nesse período o povo brasileiro não tivesse reconquistado a democracia e as melhores cabeças do planeta não tivessem compreendido que a grande riqueza natural e estratégica para o futuro é a água e a biodiversidade.

Sim, o “desenvolvimento” está de volta. Não que algum dia tenha abandonado as mentes ávidas de alguns, arcaicas de outros, mas o surpreendente agora é que nem mesmo existe a preocupação de disfarçar o dinossauro com um modelito mais fashion. Repetem por aí que se as obras não saírem vai faltar luz na casa dos pobres e este é todo o respeito (não) demonstrado pela inteligência do povo que os elegeu. E, o mais inusitado: as velhas ideias sobre a ocupação da Amazônia saem do papel para a floresta concreta justamente nos governos do primeiro presidente operário e da primeira mulher presidente – em cuja biografia está o combate à ditadura militar a um custo pessoal bem alto.

Não é espantoso? O Brasil segue sendo um país assinalado pelo absurdo. E, como diria Sheyla Juruna, estranhar é preciso.

(Publicado na Revista Época em 17/10/2011)

A negligência que mata

Governo brasileiro atrasa a entrega de medicamentos para Doença de Chagas e coloca em risco a vida de milhares de pessoas nos países mais pobres do continente

Tente imaginar como se fosse você, por mais distante que essa realidade possa estar da sua vida. É noite e você está deitado na cama com a sua família. Sua casa tem telhado de palha e paredes de pau a pique. Sua casa nem é uma casa, mas um casebre. E tem buracos em vez de janelas porque você não tem dinheiro para comprar os vidros. Você tem fome, mas já está acostumado com essa sensação de falta no estômago e de fraqueza no corpo todo. Você nunca teve essa experiência, então não sabe como é comer até se fartar e dormir saciado. Isso já seria dor suficiente para uma vida, mas de fato é só um coadjuvante na sua história. O vilão entra agora. Cai do teto e das paredes sobre você. Dezenas, às vezes centenas, de insetos com cerca de três centímetros de comprimento. Caem como pernilongos numa casa infestada deles. Cobrem seu corpo, entram pela sua boca, chupam seu sangue e defecam sobre sua pele. Você coça, porque é desesperador. E, ao coçar, um organismo invisível entra no seu corpo e começa a matá-lo. Ao coçar, você começa a morrer.

Tente imaginar como se fosse você, por mais distante que essa realidade possa estar da sua vida, porque esta foi a noite de milhares de pessoas nas regiões mais pobres de países vizinhos como a Bolívia e o Paraguai. Gente como você, apenas com o azar de ter nascido em nações que ainda não conseguiram se recuperar da destruição histórica a que foram submetidas, primeiro pelos colonizadores espanhóis, depois pelas elites predatórias e por governos incompetentes e/ou corruptos.

Estes homens, mulheres e crianças que acordaram hoje como acordam todos os dias, picados pelo inseto conhecido aqui como “barbeiro”, têm apenas uma chance: o tratamento com um medicamento chamado Benzonidazol. O remédio para Doença de Chagas é produzido por um único país no mundo: o Brasil. A responsabilidade foi assumida pelo governo brasileiro com a população mundial, em uma das ações estratégicas para reforçar a liderança do país no continente e sua vocação de potência emergente. Na semana passada, a organização internacional humanitária Médicos Sem Fronteiras (MSF) denunciou que, por negligência, o Ministério da Saúde do Brasil atrasou a remessa de remédios, colocando em risco a vida de milhares de pacientes e paralisando os projetos de combate à doença.

A denúncia passou quase despercebida. Ganhou muito menos destaque na imprensa do que sua relevância exigiria, numa semana em que o grande tema midiático da saúde foi a proibição dos inibidores de apetite pela Anvisa. Levanto a questão porque a invisibilidade é, de fato, o que tem matado milhões de pessoas no mundo inteiro, vítimas das chamadas “doenças negligenciadas”, como Chagas. E o que são doenças negligenciadas? São aquelas que a indústria farmacêutica não tem interesse em pesquisar a cura porque atingem a parcela mais pobre dos países mais miseráveis do mundo. Ou seja: seu tratamento não dá dinheiro. E são aquelas que parte da imprensa opta por deixar para o canto da página ou para página nenhuma porque não atingem as pessoas que compram jornais. E é assim que parte da população mundial – sempre a mesma parte – morre: porque a vida de uns vale menos que a de outros. E nós todos somos cúmplices dessa lógica quando viramos a página porque a notícia não diz respeito ao nosso umbigo. Notícia, como sabemos, não tem natureza. “O quê” e “quem é notícia” são escolhas políticas e socioeconômicas com consequências na vida de todos, mas principalmente na vida dos mesmos de sempre.

Acredito que é responsabilidade da imprensa aproximar mundos. O leitor pode não saber o que é ter Mal de Chagas. Nós, jornalistas, temos a obrigação de investigar e de contar a ele. Por isso comecei esta coluna narrando como são as noites de uma parcela de nossos vizinhos. No primeiro semestre deste ano fiz um trabalho voluntário como jornalista para a organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) na Bolívia, o país mais atingido por Chagas no planeta. E conheci em profundidade o que é ter a patologia que leva o nome de um dos brasileiros mais geniais da História, o sanitarista Carlos Chagas: na primeira década do século XX, ele identificou o vetor e o protozoário transmissor e descreveu a epidemiologia da doença.

A Doença de Chagas, como aprendemos na escola (pelo menos no meu tempo se aprendia), é transmitida pelo inseto chamado no Brasil de “barbeiro”. O bicho se esconde nos buracos das paredes e dos telhados das casas de pau a pique ou adobe, naquelas onde há buracos para se esconder, e à noite pica suas vítimas como fazem os pernilongos. Ao chupar o sangue, quase imediatamente defeca. A pessoa coça, num gesto automático, e o Trypanosoma cruzi, o protozoário que mora nas fezes do barbeiro, entra no organismo e se instala. Metade dos homens, mulheres e crianças infectadas vão desenvolver a doença que atinge coração, esôfago, intestinos e sistema nervoso central. Sem tratamento, o Mal de Chagas leva à morte. Na América Latina, estima-se que de 10 a 15 milhões sofram de Chagas e 14 mil morrem por ano de uma patologia que poderia ser prevenida e tratada.

A doença, que tem na miséria uma poderosa aliada, atinge a parcela mais invisível de países já invisíveis no mundo – ou vistos apenas como curiosidade folclórica. A realidade do Mal de Chagas na América Latina começou a mudar a partir do final da década de 90. Entre 1999 e 2011, a organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) desenvolveu oito projetos de tratamento em Honduras, Nicarágua, Guatemala, Colômbia, Paraguai e Bolívia. Pela primeira vez a população atingida teve uma chance. Para que vocês alcancem o tamanho da tragédia, basta saber que parte das pessoas contaminadas sequer sabia que o barbeiro era o causador da doença. Achava que as mortes súbitas que acometiam uma geração após a outra eram uma doença de família. Algo que estava no sangue.

Ao iniciar o tratamento, as equipes de MSF descobriram que o Benzonidazol não causava bons resultados apenas nas fases agudas da doença de Chagas, mas também nos casos crônicos. No Brasil, por exemplo, estima-se que existam entre 2 e 3 milhões de doentes crônicos, contaminados no passado. Mas, nos últimos anos, foram descobertas ocorrências agudas em diversos estados e especialmente na Amazônia. A comprovação de que o medicamento trazia bons resultados também para pacientes crônicos aumentou a demanda pelo medicamento e significou a diferença entre viver e morrer para milhões de pessoas. Com a atuação de MSF, os países endêmicos começaram a se organizar para assumir a sua parte na prevenção e tratamento de Chagas. E todos nós sabemos como as estruturas governamentais se movem devagar – e mais ainda em países assolados por conflitos e miséria por todos os flancos.

Com muito esforço e um bocado de percalços, tudo começava a se encaminhar para a construção de políticas permanentes de prevenção e tratamento. Cabe ao governo de cada país assumir a responsabilidade pela eliminação do barbeiro e por programas de melhoria das casas, para que os insetos não possam se instalar. E cabe a MSF implantar projetos de diagnóstico e tratamento, assim como treinar multiplicadores no próprio país, para que depois da saída da organização as ações sejam assumidas pelas instâncias locais como política pública e tenham continuidade.

Começaram então a surgir indícios de que o Brasil, o único produtor mundial do Benzonidazol, não conseguiria entregar os lotes no prazo. O medicamento é, ele mesmo, um exemplo clássico das doenças negligenciadas. Foi sintetizado em 1960 para tratar outra patologia e descobriu-se que produzia bons resultados em Chagas. Apesar de causar efeitos colaterais em parte dos pacientes, ainda é a melhor droga existente porque nunca mais a indústria se interessou em pesquisar outra. A Roche, multinacional farmacêutica que produzia o medicamento, desinteressou-se de continuar fabricando-o por falta de retorno comercial e, em 2003, transferiu a patente para o Brasil.

Como a Roche deixou um bom estoque de medicamentos no mercado e matéria-prima para a produção dos primeiros lotes, até agora o governo brasileiro tinha cumprido seus compromissos. Mas o Ministério da Saúde demorou a organizar-se para dar conta da cadeia completa de produção. Para passar a produzir o Benzonidazol integralmente no país, escolheu tardiamente apenas uma única fonte para sintetizar o princípio ativo: uma empresa privada chamada Nortec Química. Com a matéria-prima, o Laboratório Farmacêutico do Estado de Pernambuco (Lafepe) fabricaria o medicamento. E aí começaram os atrasos e o tradicional jogo de empurra-empurra das responsabilidades.

No início deste ano, em reunião da Organização Pan-Americana de Saúde, realizada em Bogotá, na Colômbia, os países endêmicos já tinham manifestado a preocupação de que o Brasil não conseguisse cumprir seus compromissos no fornecimento de Benzonidazol e deveria criar mecanismos para aprimorar a produção dos medicamentos. Os temores tinham fundamento. Em agosto, o Laboratório Farmacêutico do Estado de Pernambuco (Lafepe) informou aos Médicos Sem Fronteiras que não seria capaz de atender ao pedido de 460 mil comprimidos destinados aos projetos da organização na Bolívia e de 360 mil comprimidos aos projetos no Paraguai. Segundo o Lafepe, a Nortec Química não conseguiu cumprir os prazos de entrega da matéria-prima. Sem matéria-prima, o Lafepe não pode produzir. E, sem estoque, o governo brasileiro não é capaz de cumprir seus compromissos. Enquanto um põe a culpa no outro nos gabinetes, todos nós sabemos (ou deveríamos saber) quem é que perde a vida lá na ponta.

Em documento divulgado na semana passada, a organização Médicos Sem Fronteiras afirmou: “Esta crise poderia ter sido evitada, mas o principal ator envolvido, o Ministério da Saúde no Brasil, tem fugido de suas responsabilidades e parece não destinar esforços para superar os diversos desafios. (…) MSF chegou a contatar o Ministério da Saúde do Brasil em várias ocasiões para alertá-lo sobre a escassez iminente e para exigir ações concretas. (…) O Ministério da Saúde do Brasil tomou a responsabilidade de ser o único produtor mundial de Benzonidazol. Ele deve agora mostrar uma liderança forte”.

Na manhã de sexta-feira, 7/10, entrei em contato com a assessoria de imprensa do Ministério da Saúde. Fui informada de que o responsável pela área, Carlos Gadelha, secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do MS, não poderia dar entrevista naquele dia porque estava “resolvendo problemas pessoais”. E não havia nenhuma outra pessoa que pudesse falar sobre o tema. Na nota oficial que me enviaram, o Ministério da Saúde afirma: “Não há atrasos e nem interrupções no cronograma de produção e distribuição do Benzonidazol”. Curiosamente, naquele momento, em Recife, ocorria uma audiência na Secretaria de Saúde de Pernambuco para encontrar saídas para retomar a produção e reduzir os danos causados pelo atraso no cronograma.

Entrevistei então o coordenador de vendas do Lafepe, Djalma Dantas, que admitiu que, sim, há uma “crise”, devido ao atraso no recebimento do princípio ativo para a produção do medicamento. Por isso avisaram a organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) em agosto de que não conseguiriam cumprir o cronograma. Segundo ele, a Nortec deverá entregar o primeiro lote da matéria-prima apenas no final de outubro ou início de novembro. Depois disso, o Lafepe necessita de 20 dias para preparar o medicamento. E então a Anvisa precisa de um prazo para análise e liberação. “Em geral a Anvisa precisaria de pelo menos três a quatro meses para o procedimento de validação, mas deverão colocá-lo na frente de todos os outros pedidos”, disse Dantas. Para tentar reduzir os danos causados pela crise que o Ministério da Saúde afirma não existir há uma audiência nesta segunda-feira (10/10), em Brasília.

No mundo real, onde as pessoas morrem por decisões (não) tomadas em gabinete, o descumprimento dos compromissos assumidos pelo governo brasileiro com a população mundial já causou a suspensão do diagnóstico de novos pacientes no Paraguai e a suspensão de novos projetos de prevenção e tratamento na Bolívia.

Como jornalista, minha função é encurtar a distância entre os gabinetes e as pessoas que dependem de suas decisões para viver, para que o leitor se aproxime de mundos onde eu estive – e ele não. Pensando nisso, termino esta coluna voltando ao seu início. Nos povoados bolivianos em que trabalhei como jornalista, 70% das pessoas têm Chagas: sete em cada dez. Sete em cada dez dependem que o Brasil cumpra o compromisso assumido com a comunidade mundial para terem a chance de continuarem vivas. Tomara que a audiência do Ministério da Saúde sobre a crise que não existe tenha resultados.

(Publicado na Revista Época em 10/10/2011)

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