Black Blocs, os corpos e as coisas

Minha coluna no El País:

Jovens mascarados em protesto contra o Governo Temer (Foto: Sebastião Moreira/EFE - El País)

Jovens mascarados em protesto contra o Governo Temer (Foto: Sebastião Moreira/EFE – El País)

Como os mascarados desmascaram o Brasil do “mais um direito a menos”

 

Os black blocs, que apanham tanto de tantos lados, podem ser uma chave para compreender esse momento tão complexo do Brasil. Não apenas pelo que são, muito pelos discursos sobre o que são. Ao quebrarem patrimônio material como forma de protesto e serem transformados numa espécie de inimigos públicos, aponta-se onde está o valor e também a disputa. Enquanto a destruição dos corpos de manifestantes pela Polícia Militar é naturalizada, a dos bens é criminalizada. Reafirma-se, mais um vez, que os corpos podem ser arruinados, já que o importante é manter o patrimônio, em especial o dos bancos e grandes empresas, intacto. É também os corpos que sofrerão o impacto do projeto do governo que não foi eleito. Estes, que poderão ser ainda mais exauridos pelas mudanças nas regras do trabalho e também nas da aposentadoria. São os corpos os atingidos pelas reformas anunciadas como uma necessidade para não “quebrar o país”. Ao subverter o objeto direto do verbo “quebrar”, quebrando o que não pode ser quebrado, os mascarados desmascaram o projeto que pode ser chamado de “mais um direito a menos”.

Foto: Fernando Frazão/ Agência Brasil/Fotos Públicas (28/08/2013)

Foto: Fernando Frazão/ Agência Brasil/Fotos Públicas (28/08/2013)

Quem quebra, como quebra e por que quebra é mais complexo do que se tenta fazer parecer. Os habituais quebrados acostumaram-se a ouvir, em diferentes períodos históricos, que é preciso quebrá-los mais para o país não quebrar. Nunca se fala, por exemplo, em políticas para quebrar um pouco a renda dos mais ricos e redistribuí-la de maneira que os quebrados de sempre se tornem um pouco menos quebrados. Não. A única saída é quebrar mais quem já é quebrado. Assim, um projeto que pertence ao campo da política se transforma num dogma propagado por gurus da economia no altar em que os sacrificados são sempre os mesmos. Neste caso específico, a escolha de um projeto não eleito e, portanto, sem legitimidade democrática para interferir tão profundamente na vida cotidiana dos brasileiros – sem legitimidade para impactar tão profundamente os corpos.

 

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil/Fotos Públicas (30/03/2016)

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil/Fotos Públicas (30/03/2016)

Quando os black blocs voltam ao palco de disputa, discordando ou não de sua tática, é preciso olhar para quais são as vidraças que quebram. E desconfiar de por que o rompimento destas vidraças têm causado tanto barulho e mobilizado tanta fumaça.

 

 

Leia o texto completo na minha coluna no El País

 

A merda é o ouro dos espertos

Em 2009, a questão colocada pela Olimpíada era: veja como somos capazes de construir um país. Em 2016, a questão tornou-se: veja como somos capazes de fazer uma festa. A mudança de paradigma é enorme, mas é tratada espertamente como se fosse a mesma coisa.

Minha coluna de hoje no El País fala também sobre como a mística da superação é fartamente distribuída onde a renda é concentrada.

olimpiada el pais

Menino do morro da Mangueira assiste os fogos da cerimônia de encerramento dos Jogos. CARL DE SOUZA AFP/EL PAIS

Como a “Olimpíada da Superação” é usada para forjar identidade, unidade e consenso no Brasil do impeachment

A inversão é fascinante. A Olimpíada foi idealizada, em 2009, para colocar no pódio o Brasil grande. A apoteose do eterno país do futuro que finalmente chegava a um presente grandioso. Em 2016, o “sucesso” da festa busca recolocar o Brasil não apenas como o país que – ainda – tem futuro, mas como o país da “superação”. Não se trata mais, como era em 2009, de lançar a Olimpíada como a imagem que expressa “a verdade final” sobre o país. Em 2016, a Olimpíada é disputada, pelos vários atores, como a imagem capaz de tapar os buracos de um país. E devolver uma unidade, qualquer uma, ou um consenso, qualquer um, a um Brasil partido não em dois, mas em vários pedaços.

Não dá para tratar essa mudança de paradigma, como tantos têm tratado, como se fosse a mesma coisa. O foco, aqui, são as interpretações simbólicas dessa Olimpíada num momento tão agudo do Brasil. E o papel que exercem sobre a construção da realidade.

Quando dizem orgulhosos que a Baía da Guanabara estava maravilhosa e que o Rio continua lindo, trata-se da festa. A pergunta que trata de um país é: mas a Baía da Guanabara foi despoluída? E a resposta é não. A resposta é: a Baía da Guanabara continua cheia de merda.

Quando dizem eufóricos que nenhum atleta pegou Zika vírus, a pergunta é: mas e a população do Rio? Está salva do Zika e, mais do que do Zika, da dengue? E as mulheres que tiveram e ainda terão crianças com sérios danos cerebrais, têm e terão acesso à proteção e à saúde? Estas são as perguntas que tratam do país – e não da festa.

Quando dizem esfuziantes que o Rio nunca foi tão seguro como nos 17 dias de Olimpíada e que os mais de 80.000 policiais e soldados deveriam continuar nas ruas para defender os cidadãos “de bem”, a pergunta é: e nas comunidades? Morreu gente nas favelas, e não apenas o soldado da Força Nacional Hélio Andrade. Em geral, ele é considerado a única baixa no período dos jogos, já que os demais mortos são aqueles que o país se acostumou a considerar “matáveis”. Pelo menos 31 pessoas morreram e outras 51 ficaram feridas em 95 tiroteios no Rio Olímpico, segundo a Anistia Internacional. Não interessa para a festa? Deveria interessar para o país.

Qual foi o custo financeiro dessa festa (gastos ainda à espera de transparência), para um estado que decretou situação de “calamidade pública” menos de dois meses antes do megaevento, para uma cidade falida e para um país em crise? Quem mede o sucesso ou quem diz o que é sucesso? Ou sucesso para quem? Certamente não para os milhares de “removidos” para a realização das obras.

E, importante, sucesso aos olhos de quem? Quando alguém exalta que a Baía da Guanabara estava límpida, o que se entende é que a pessoa comemora o feito de conseguir esconder por duas semanas a merda dos olhos dos “gringos”, a quem interessa mostrar que seguimos bonitos por natureza. E alegres, muito alegres.

A frase no Facebook é cristalina: “Somos um país de pés-rapados, mas arrasamos numa festa”. Diante do país sem rosto, cola-se a cara gasta de sempre, a de que somos muito bons em festa. E na festa somos cordiais, alegres e hospitaleiros. Assim, tenta-se tapar buracos que já não podem ser tapados. Conflitos que já não podem ser encobertos pela “festa da miscigenação”. Mitos em decomposição.

Foto: Roberto Castro/ Brasil2016/ Fotos Públicas (08/08/2016)

Rafaela Silva – Foto: Roberto Castro/ Brasil2016/ Fotos Públicas (08/08/2016)

(…)

Na mística da superação, quando aqueles que deveriam se superar sofrem uma derrota, são punidos como se traíssem todo um país. É neste momento que os conflitos aparecem, e o racismo, a homofobia e o machismo do povo alegre que arrasa numa festa explodem. Como tão bem compreendeu Rafaela Silva, que ao ser derrotada na Olimpíada de Londres, em 2012, foi chamada de “macaca” nas redes sociais, em tal volume e virulência que quase desistiu do judô. Em 2016, ao ganhar o ouro na sua categoria, virou heroína nacional. Ninguém dúvida que, se perdesse, seria de novo “macaca”.

A nadadora Joanna Maranhão conheceu bem a “cordialidade” do povo brasileiro ao ficar fora da semifinal dos 200m borboleta. Joanna, que anos atrás teve a coragem de denunciar que foi abusada por seu técnico quando menina, ouviu nas redes sociais que, por ter perdido, “deveria ser estuprada novamente”. O Brasil é homofóbico, machista, racista e xenófobo, denunciou Joanna, desafiando o país alegre e hospitaleiro – ou “o povo que se comportou muito bem nesta Olimpíada”. Joanna e Rafaela exibiram maturidade ao não se deixarem engolir pela máquina de entretenimento. Ao contrário, arriscaram-se a expor os conflitos quando ninguém queria saber deles.

Leia o texto completo na minha coluna no El País

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