Dois Josés e um Amarildo

Em seu gesto e na sua reivindicação, José Genoino e José Dirceu demonstraram não compreender o Brasil dos protestos: desde que as manifestações tomaram as ruas, presos políticos são os comuns

 

Havia algo de melancólico no braço erguido dos dois Josés, Genoino e Dirceu, ao serem presos por corrupção. E na afirmação: “Sou preso político”. O punho cerrado é o gesto de resistência de uma geração que lutou contra a ditadura, pegou em armas, foi presa, torturada e assumiu o poder na redemocratização do país. É também o gesto que não mais encontra destinatário para além de seus pares e de parte da militância do PT. É, principalmente, o gesto que não ecoa na juventude que se tornou protagonista dos protestos que mudaram o país. No Brasil que reconheceu Amarildo, o pedreiro, como mártir da democracia, a evocação vinda de José Genoino e de José Dirceu para ocupar esse lugar não encontra ressonância. Desde as manifestações de junho, os presos políticos são os comuns. Para um partido tão hábil em esgrimir simbologias, não compreender o Brasil forjado no ano que não terminou é uma tragédia talvez maior do que a prisão por corrupção de duas de suas estrelas históricas.

Mártir político é Amarildo de Souza. Favelado, negro, analfabeto, 43 anos, o ajudante de pedreiro conhecido como “boi” pela sua capacidade de carregar sacas de cimento desapareceu em 14 de julho ao ser levado a uma UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) da Rocinha, no Rio de Janeiro. Amarildo, o homem comum vítima da política de criminalizar, torturar e executar os pobres. Uma política que atravessa a história do Brasil, persiste na redemocratização e se manteve nos governos de Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma. Não era o primeiro a desaparecer depois de entrar num posto policial, não foi o último. Mas, pela primeira vez, um homem comum, carregando em si todas as marcas da abissal desigualdade do Brasil, foi reconhecido como um desaparecido político da democracia, lugar destinado a ele pela convulsão das ruas. Esta pode ter sido a maior transformação colocada em curso pelos protestos.

Preso político é Rafael Braga Vieira, 26 anos, catador de latas, morador de rua, negro. Ele foi preso em 20 de junho, durante uma manifestação na Avenida Presidente Vargas, no Rio. Já tinha sido preso por roubo em duas outras ocasiões e cumprido as penas completas. Desta vez, está encarcerado, sem julgamento, há cinco meses no presídio de Japeri. Seu crime: carregar uma garrafa de Pinho Sol e outra de água sanitária. E uma vassoura, mas esta não foi considerada suspeita. Seu caso foi relatado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) e ao Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos.

Desaparecido político é Antônio Pereira, 32 anos, auxiliar de serviços gerais, negro. Sumiu em 26 de maio, em Planaltina, no Distrito Federal. Há suspeita do envolvimento de policiais militares no seu desaparecimento. Manifestantes marcharam até o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios para protestar pelo seu sumiço. A Comissão de Direitos Humanos do Senado passou a investigar o caso.

Morto político é Douglas Rodrigues, 17 anos, estudante do terceiro ano do ensino médio e atendente de lanchonete. Levou um tiro no peito de um policial numa tarde de domingo, 27 de outubro, quando estava diante de um bar com o irmão de 13 anos, na Vila Medeiros, em São Paulo. Só teve tempo de dizer uma frase, que se transformou num símbolo contra o genocídio de gerações de jovens negros e pobres das periferias do Brasil. Douglas fez sua última pergunta, um conjunto de vogais e consoantes onde cabia uma vida inteira, antes de cair morto: “Por que o senhor atirou em mim?”. Em protesto pela sua morte a população incendiou ônibus, carros e caminhões e depredou agências bancárias.

Estes – e muitos outros – tornaram-se os presos políticos, os desaparecidos políticos e os mortos políticos da democracia desde que os brasileiros redescobriram as ruas e deslocaram a política para fora dos partidos e das instituições. Por isso o braço erguido, o punho cerrado, dos dois Josés, Genoino e Dirceu, é tão melancólico. É o gesto que não se completa ao não encontrar o presente. Lula, o PT e a cúpula do governo concentram sua preocupação e seus esforços para reduzir o impacto das prisões de figuras históricas na eleição de 2014, na qual Dilma Rousseff é a favorita para um segundo mandato. Talvez devessem se dedicar mais a escutar as novas simbologias forjadas nos protestos.

Foi justamente Lula, com a enorme força simbólica de ser o primeiro homem comum a chegar ao poder no Brasil, que em 2009 compactuou com a desigualdade histórica e a política arcaica, em uma frase: “Sarney tem história no Brasil suficiente para que não seja tratado como se fosse uma pessoa comum”. Ao pronunciá-la, protegeu o político oligarca que há décadas colabora para promover a miséria de milhões de homens, mulheres e crianças comuns no Maranhão, um dos estados mais pobres do país, e mostrou, como na frase famosa do clássico de George Orwell, hoje um clichê, que, quando convém, compartilha da ideia de que existem aqueles que são mais iguais que outros, tão iguais que merecem tratamento diferenciado.

A reivindicação de “preso político” por Genoino e Dirceu aponta para um cálculo que visa à biografia pessoal de cada um e à do próprio PT, assim como à disputa na construção da memória do país e do imaginário imediato. É também um apartar-se, na linguagem, do preso comum, uma impossibilidade de igualar-se a todos os outros detentos, que também declaram-se, em sua maioria, “inocentes”. Nos dias que antecederam à prisão, José Dirceu, aquele que anunciaria ser um “preso político da democracia por pressão das elites”, descansava num resort de luxo na Bahia que só as elites têm dinheiro para frequentar. Na primeira semana de prisão, foi citado, como exemplo de maus tratos, que Genoino estava tomando “água da torneira”. Isso num país em que “água da torneira”, mesmo depois de dois mandatos de FHC, dois de Lula e três anos do governo de Dilma Roussef, é sonho distante para muitos, uma realidade que o sertanejo Genoino conhece bem. Familiares de presos – estes comuns –, condenados sem crime e sem pena a noites de espera e humilhações para conseguir visitar pais, maridos e filhos na prisão da Papuda, em Brasília, revoltarem-se com o que definiram como “privilégio” daqueles que reivindicam o status de “presos políticos”.

Na prisão, a estrela do PT, que simbolizou – e ainda simboliza para muitos – tanta esperança de igualdade, foi reduzida ao sentido original do jargão publicitário: os presos do “mensalão” ganharam na prática e no imaginário da população o status de gente diferenciada. Esta é uma perda importante para o patrimônio simbólico construído pelo partido a qual seus líderes parecem estar dando pouco valor. O espetáculo promovido pelo ministro Joaquim Barbosa, ao levar os presos algemados para Brasília no feriado da Proclamação da República, foi um excesso em um momento histórico que exigia serenidade e contenção. Deixar presos de regime semiaberto em regime fechado foi um abuso, a que milhares são submetidos por falta de vagas no cotidiano do sistema prisional. A saúde e a vida de José Genoino devem ser protegidas. Não por conta de sua história, mas porque é dever do Estado proteger todos os presos sob sua tutela.

Defender a proteção da vida em nome da “dignidade da biografia” é uma distorção. Só colabora para justificar atrocidades cometidas fora e dentro do sistema prisional contra aqueles cuja história é reduzida ao termo encobridor de “bandido”. Os mesmos que, com frequência escandalosa, são executados sem julgamento num país que não tem pena de morte. Crimes cometidos, por exemplo, por polícias como a Rota, a brutal tropa de elite da PM paulista, há quase duas décadas sob o comando dos sucessivos governos do PSDB. Mas é preciso lembrar que também faz parte da biografia de Genoino tê-la defendido em 2002, ao se candidatar ao governo de São Paulo, numa frase que obedecia ao pragmatismo eleitoreiro: “Uma política de direitos humanos não deve impedir a Rota de agir com energia e com força”.

O fato é que Genoino só teve seu direito assegurado por ser um preso privilegiado. Mas a distorção não é a de ele ter recebido assistência, mas a de que todos os outros presos continuem sem ela, a de que é preciso ser um preso “diferenciado” para ter seus direitos básicos garantidos pelo Estado. As vozes que se ergueram para denunciar os maus tratos a que ele era submetido jamais foram tão fortes para defender os presos comuns que adoecem de tuberculose e Aids no cárcere e morrem sem tratamento. É um passo atrás no processo civilizatório quando as pessoas gozam com o sofrimento de Genoino, como ficou explícito nos comentários das redes sociais, alguns torcendo até mesmo pela sua morte, como se não fosse de um ser humano que se tratasse. Mas é preciso escutar também os “bárbaros” para compreender que os mais pobres, sem nenhum problema com a lei, com frequência criminosa não encontram tratamento digno – ou mesmo tratamento algum – no Sistema Único de Saúde (SUS). E que cada vez mais é claro para todos que o dinheiro que se esvai na corrupção é também o que falta na saúde.

Do partido que diz falar em nome do homem comum esperava-se a grandeza de declarar que mártires são todos os outros. E que direitos de todos não podem ser privilégios de um. Ao demonstrar preocupação por Genoino, Dilma Rousseff demonstrou também omissão por todos os outros presos que vivem uma rotina de ilegalidades e desrespeitos aos direitos humanos mais básicos nas prisões do país que o PT governa há mais de uma década e que tem a quarta maior população carcerária do mundo. Sem esquecer que é dos estados o encargo de construir e administrar os presídios, assim como proteger os presos, obrigação em que todos, de diferentes partidos, falham. A responsabilidade ao perpetuar o que o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Cezar Peluso chamou de “masmorras medievais” é compartilhada. São mais de meio milhão de presos encarcerados em situação tão brutal que o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, chegou a dizer que preferiria morrer a cumprir pena.

Assumir-se como preso comum teria sido um gesto simbólico mais forte para quem estreou na vida pública como preso político de uma ditadura, daquela vez sim sem julgamento. Aqueles forjados na luta armada contra um regime de exceção, ao assumirem o poder, lutaram menos do que deveriam pelos presos comuns que continuaram e continuam sendo torturados e mortos nas delegacias, cadeias e prisões do país. Ainda hoje a tortura dos presos políticos na ditadura, a maioria deles de classe média, recebe muito mais atenção do que a tortura sistemática dos presos comuns que perdura na democracia. Sem esquecer que a maioria dos presos torturados e confinados no sistema carcerário brasileiro é composta por negros e pobres.

É também de classe social que se trata. Não é um acaso que Manoel Fiel Filho, o operário assassinado pela ditadura, tenha muito menos ressonância na democracia do que Vladimir Herzog, o jornalista assassinado pela ditadura, embora a morte de ambos tenha impulsionado o movimento da sociedade pelo fim do regime militar. Quando Dirceu e Genoino levantam o braço e cerram o punho, declarando-se “presos políticos”, não estão denunciando apenas o que consideram um “julgamento de exceção”, mas colocando-se diante de todos os outros presos como “exceção”. É como dizer: “Eu estou aqui, mas sou melhor do que vocês”.

O espetáculo promovido por Joaquim Barbosa para o que chegou a ser interpretado, com um tanto de exagero, como uma “refundação da República” revelou mais do que estava programado. Mostrou esse lapso, esse corte no tempo, em que o braço erguido, o punho cerrado, se alienou das ruas. Quando as manifestações de junho começaram, a classe média conheceu a truculência da polícia sem perceber que estava diante de seu espelho. Nas quebradas de São Paulo, o poeta Sérgio Vaz ironizou: “Aqui na periferia as balas continuam sendo de chumbo. Estamos reivindicando umupgrade para balas de borracha”. E logo as balas de chumbo acertaram dez (nove moradores e um policial), no complexo de favelas da Maré, no Rio, na sequência de um protesto. E então, em 14 de julho, ao desaparecer, Amarildo de Souza apareceu diante do Brasil.

Para a juventude que protestou – e em vários momentos expulsou das ruas os militantes de partidos, incluindo os do PT –, os presos políticos passaram a ser os manifestantes levados para a cadeia pela polícia do Estado democrático. Nesta apropriação simbólica – que se inicia antes, mas se consolida a partir dos protestos –, ao mesmo tempo retoma-se o conceito de preso político da geração de Genoino e Dirceu, forjado nos atos contra a ditadura, mas com um sentido próprio, na medida em que a democracia traz uma nova complexidade para as questões que envolvem o termo. No mesmo movimento, assume-se o nome e o rosto das vítimas anônimas e despolitizadas da violência racial e de classe e se dá a elas um conteúdo político. Como aconteceu com Amarildo – mas não só. Vale a pena lembrar que o estopim dos protestos foram 20 centavos – que muitos, em especial a classe média, acharam pouco para tamanha comoção, mas que se tratava da dor de milhões de invisíveis cuja vida é mastigada dia após dia em horas perdidas dentro de ônibus superlotados. Era uma escolha pelo homem comum – incorporando-o em cada um.

É importante perceber ainda que, para uma parte significativa dos manifestantes, os presos políticos são aqueles que a maioria dos partidos, assim como grande parte da imprensa, chamam de “vândalos”. Se os Black Blocs têm vários motivos para cobrir a face, há neste ato também uma escolha pelo anonimato, um fundir-se na multidão. Apoiando ou não suas ações, é preciso reconhecer que escolher se mostrar “sem rosto” é um gesto político de grande significado.

A cara desses movimentos sem líderes anunciados e com causas múltiplas é a da multidão. Mas, a cada momento, a multidão pode assumir a face de um anônimo, para lhe dar coletivamente um nome e uma história. Na hashtag do Twitter, #SomosTodosAmarildo. Ou somos todos aquele que é torturado, violado, morto. #SomosTodosUm. Esta é uma mudança profunda que os homens que levantaram o braço e cerraram o punho parecem não ter compreendido. Se ela parte dos protestos nas ruas, também os transcende para ocupar outros redutos. Enquanto a pequena saga de Genoino se desenrolava, na semana passada, Caetano Veloso e Marisa Monte cantavam no Circo Voador, no Rio, para levantar fundos para a família de Amarildo. A certa altura, a cantora pediu à plateia que vestissem a máscara de Amarildo que haviam recebido na entrada: “Vamos deixar registrado para a posteridade esse momento onde a gente incorpora o Amarildo e graças a isso consegue transformar tantas coisas. É assim que a gente consegue mudar esse país”. A máscara é a possibilidade de ser um e, ao mesmo tempo, todos os outros.

A mudança é um momento agudo de um processo histórico no qual Lula e o PT tiveram, mais do que qualquer outro político e partido, uma contribuição decisiva, no concreto e no simbólico de sua ascensão ao poder. Apartaram-se, porém, e parecem estar bem menos preocupados do que deveriam com seu divórcio com as ruas. O braço erguido, o punho cerrado, é um capítulo melancólico de um partido que parou de escutar. Em parte porque acredita conseguir manter o voto dos homens e mulheres comuns que recebem o Bolsa Família e ainda se contentam com o que, se por um lado é enorme, ao reduzir a miséria e a fome, também é pouco para a potência contida numa vida humana.

A tragédia dos dois Josés do PT não é apenas terem sido presos por corrupção, mas a impossibilidade de dizer #SomosTodosOsPresos.

(Publicado no El País em 26/11/2013)

O aborto e a má fé

A falsa polêmica em torno da lei que protege as vítimas de violência sexual mostrou que o nível da campanha de 2014 poderá ser ainda mais baixo do que na disputa de 2010

Em 1º de agosto, a presidente Dilma Rousseff (PT) sancionou sem vetos a lei que obriga os hospitais a prestarem atendimento integral e multidisciplinar às vítimas de violência sexual. Nas semanas anteriores, a presidente foi pressionada e até ameaçada por religiosos para que não sancionasse o texto, aprovado na Câmara e no Senado. Dilma aprovou. Na semana passada, deputados da bancada religiosa do Congresso apresentaram vários projetos com o objetivo de anular a lei e católicos ligados ao grupo Pró-Vida e Pró-Família anunciaram uma vigília de protesto diante do Palácio do Planalto, segundo a Folha de S.Paulo. A polêmica se apega ao direito de acesso das vítimas à pílula do dia seguinte (pílula anticoncepcional com uma dosagem maior de hormônios), que as impediria de engravidar do estuprador. Com isso, alguns representantes evangélicos e católicos dizem que, na prática, a lei estaria legalizando o aborto no Brasil. É preciso se espantar – e muito – antes que a má fé se naturalize, carregando com ela avanços históricos no campo dos direitos humanos. A entrada do tema do aborto como instrumento de chantagem na campanha presidencial de 2010 iniciou um ciclo de retrocessos que marcou o governo Dilma. E, como ficou claro na polêmica que envolveu a lei do atendimento às vítimas de violência sexual, tem potencial para levar o debate político para as catacumbas em 2014.

A polêmica, para começar, é falsa. Militantes e representantes religiosos sabem muito bem disso. O aborto em caso de violência sexual é permitido no Brasil desde 1940. Qualquer mulher, ao descobrir-se grávida do estuprador, tem o direito legal de abortar. Não é melhor que, em vez de enfrentar o aborto do filho do estuprador, a mulher violentada tome a pílula do dia seguinte e evite uma gestação? Que tipo de gente é capaz de protestar contra isso e por quê?

O mais curioso, nesta lei, o que poderia revoltar pessoas de boa fé, é o fato de, em pleno século 21, ser preciso fazer uma lei para obrigar hospitais a dar assistência emergencial a vítimas de violência sexual. Então os hospitais se recusam, apesar de ser um direito legal e uma questão básica da mais primária compaixão humana? Não seria este o escândalo?

Deveria ser, mas não é. Espertamente estabelece-se uma falsa polêmica para enganar incautos e mal informados, com objetivo de aumentar o apoio popular para pressionar por retrocessos na legislação que protege os direitos da mulher e o acesso à saúde pública. Assim como para aumentar o poder de barganha nas eleições presidenciais de 2014, anunciando o início – ou a continuação – de uma campanha suja, que se vale de ameaças e difamação.

Se o embate em torno do aborto atravessa a história, talvez tenha sido a campanha de 2010 o momento de mais baixo nível desde a redemocratização do país. A campanha de 2010 abriu a porta para todas as leviandades e recuos que se seguiram. E, nisso, José Serra (PSDB), primeiro, e Dilma Rousseff, depois, tem e terão para sempre responsabilidade.

Devemos lembrar que, no final do primeiro turno de 2010, a internet e as ruas foram tomadas por uma campanha na qual se afirmava que Dilma era “abortista” e “assassina de fetos”. Dilma começou a perder votos entre os evangélicos e alguns bispos e padres católicos exortaram os fiéis a não votarem nela. Serra empenhou-se de corpo e alma em tirar proveito da baixaria, determinando o rumo da campanha dali em diante. E Dilma correu a buscar o apoio de religiosos, no qual teve papel central o deputado Gabriel Chalita (PMDB). Acabou por escrever uma carta declarando-se “pessoalmente contra o aborto”, na qual se comprometia, em caso de vencer a eleição, a não propor nenhuma medida para alterar a legislação sobre o tema.

Logo, tanto Serra quanto Dilma despontaram no espetáculo eleitoreiro como devotos tomados por um fervor religioso até então desconhecido de quem acompanhava a sua trajetória. Serra apregoou que tinha “Deus no peito”, Dilma que agradecia “a Deus pela dupla graça”, repetindo que fazia “uma campanha, antes de tudo, em defesa da vida”. No programa de Serra mulheres grávidas desfilavam pela tela porque o candidato prometia cuidar dos bebês mesmo antes de nascerem. (Escrevi sobre isso aqui.) Na campanha de 2012 à prefeitura de São Paulo, na tentativa de obter o apoio de setores religiosos conservadores e melhorar o desempenho nas pesquisas, Serra, como devemos lembrar, escolheu outro alvo para atacar seu principal adversário, Fernando Haddad (PT): o “kit gay” (cartilha anti-homofobia produzida para trabalhar nas escolas conceitos como tolerância e respeito às diferenças).

Ao longo do seu governo, Dilma tem capitulado diante da bancada religiosa em quase todas os embates ligados aos direitos de mulheres e de homossexuais. Como ao suspender a distribuição do kit anti-homofobia produzido na gestão de Fernando Haddad como ministro da Educação, abrindo espaço para os ataques que vieram depois. A lista de recuos é longa, sendo um dos mais recentes o cancelamento do vídeo de uma campanha de prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, nos quais uma prostituta dizia ser feliz. Dilma capitulou tanto, desde que assumiu o cargo, que houve até uma certa surpresa quando ela aprovou integralmente a lei que obriga os hospitais a prestar atendimento a vítimas de violência sexual. Afinal, tornara-se difícil ter certeza se Dilma ainda seria capaz de não capitular diante de uma queda de braço.

A presidente capitulou o suficiente para, poucos dias antes de o prazo para a lei ser sancionada ou vetada se esgotar, ter sido ameaçada por membros do movimento Pró-Vida, como está contado nessa matéria de O Globo, comentada depois por Drauzio Varella, em sua coluna na Folha de S.Paulo. Em audiência com o ministro Gilberto Carvalho, da Secretaria Geral da Presidência da República, como conta o repórter Evandro Éboli, um dos representantes do movimento católico Pró-Vida afirmou que, se não houvesse veto ao projeto, a campanha anti-Dilma voltaria em 2014. A ameaça está explícita no documento entregue ao ministro e protocolado na presidência da República: “As consequências (da sanção do projeto) chegarão à militância pró-vida, causando grande atrito e desgaste para Vossa Excelência, senhora presidente, que prometeu em sua campanha eleitoral nada fazer para instaurar o aborto em nosso país”. Em 2010, a Polícia Federal apreendeu mais de 19 milhões de panfletos associando a liberação do aborto a então candidata Dilma Rousseff. Em julho, circulou na internet a seguinte campanha: “Dilma, não sancione. Não quero sangue inocente em minhas mãos!”. A frase era acompanhada pela imagem de uma mulher com as mão sujas de sangue.

Nas frentes evangélicas conservadoras, Marco Feliciano (PSC), o pastor que ganhou fama – e provavelmente mais eleitores – ao ser alçado à presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara sob intenso protesto, também ameaçou o PT por diversas vezes, acenando com retaliações na campanha de 2014. Depois da sanção da lei que protege as vítimas de violência sexual, exortou os fiéis a não votar em Dilma.

A má fé é evidente. Ao garantir o atendimento emergencial das vítimas de violência sexual, com acesso à pílula do dia seguinte, o número de abortos cai, na medida em que a gravidez não se concretiza. Mesmo tendo direito legal a um aborto em caso de estupro, as mulheres não teriam de passar por mais esse sofrimento. O que acontecia era que muitos hospitais não asseguravam assistência às vítimas, deixando-as desamparadas. É importante sublinhar que a violência sexual no Brasil é um problema de saúde pública: estima-se que a cada 12 segundos uma mulher é estuprada, com todas as consequências físicas e psicológicas resultantes desse crime. Entre 2005 e 2010, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o número de estupros registrados aumentou em 168%. Entre 2009 e 2012, conforme dados do Ministério da Saúde, os estupros notificados cresceram 157%. Vale a pena lembrar que a violência sexual é um crime marcado pela sub-notificação, já que parte das vítimas tem vergonha e medo de registrar a ocorrência, inclusive porque não são raros os casos em que elas são humilhadas nos postos policiais e mesmo nas delegacias de mulheres. A lei aprovada obriga os hospitais a prestar atendimento multidisciplinar: além de anticoncepção de emergência, o direito a diagnóstico e tratamento das lesões no aparelho genital; amparo médico, psicológico e social; prevenção e combate de doenças sexualmente transmissíveis; realização de exame de HIV; acesso a informações sobre direitos legais e serviços disponíveis na rede pública.

Que tipo de gente pode ser contra uma lei que ampara vítimas de violência sexual, lançando uma falsa polêmica e manipulando o tema do aborto para fins eleitorais?

A mais recente ofensiva do lobby religioso conservador dá uma ideia do que espera o país no ano que vem. O debate político foi rebaixado na campanha de 2010, primeiro e principalmente por Serra, depois por Dilma – e seguiu rebaixado nos últimos anos, como constata qualquer um que acompanhe minimamente o noticiário. Se o aborto, a quinta causa de morte materna no Brasil, fosse de fato discutido com seriedade não só, mas também no curso do processo eleitoral, seria um grande avanço. O atual governo já foi inclusive cobrado por peritos da ONU por não enfrentar a questão e permitir a morte de brasileiras. O SUS gasta cerca de R$ 30 milhões anuais em curetagens, a maioria delas resultante de abortos mal feitos em clínicas clandestinas, sem nenhuma condição sanitária, ou mesmo no banheiro de casa, por brasileiras pobres e desesperadas (leia aqui). Um número, como se vê, que deveria merecer a atenção do Estado. Mas enfrentar a questão com a seriedade necessária nenhum dos candidatos costuma querer, o que faz com que o tema seja reduzido a instrumento de chantagem a cada eleição.

Quando se abre mão dos princípios e se rasga a biografia para angariar votos e aliados de ocasião, é preciso saber que a chantagem nunca mais vai parar. Pelo contrário, depois que o flanco é aberto e o sangue aflora, a sanha aumenta. Basta ver o que corre nos sites e blogs dos “militantes pró-vida” para se ter uma ideia do nível da campanha que nunca parou. Uma pequena amostra são as miniaturas de fetos – e até terços de fetos – distribuídas durante a visita do Papa. Que, pelo menos desta vez, Dilma Rousseff tenha resistido e aprovado integralmente uma lei que assegura o cumprimento da Constituição é uma boa notícia. Mas o fato de que uma mera questão de bom senso e de garantia dos direitos humanos mais básicos, como assegurar assistência a vítimas de violência sexual, tenha sido saudada como um avanço – e, em alguns setores, até como “coragem” – mostra o nível a que despencou o debate.

A campanha de 2014, que obviamente já começou, vai mostrar até onde a chantagem chegará – e como cada candidato lidará com ela. E também como cada eleitor vai olhar para religiosos que transformam Deus em moeda eleitoral.

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P.S. – Neste Dia dos Pais, os seis filhos de Amarildo de Souza acordaram sem saber onde estava o pai deles. O ajudante de pedreiro, conhecido como “Boi”, desapareceu em 14 de julho, depois de ser levado a uma unidade da UPP, na favela da Rocinha, no Rio. “Onde está Amarildo?” é talvez a pergunta mais importante no Brasil, hoje. Pela vida de Amarildo, o indivíduo, único e insubstituível; pelo que sua possível morte significa ao revelar a violência recorrente do país; pelos milhares que desaparecem e são mortos por serem pobres e frágeis; porque é a primeira vez que um número tão expressivo de brasileiros protesta pelo sumiço de um homem que até então era anônimo, sinalizando que a sociedade brasileira pode estar mudando para melhor. É importante repetir e persistir: onde está Amarildo?

(Publicado na Revista Época em 12/08/2013)

 

Ser doutor é mais fácil do que se tornar médico

A resistência ao projeto que obrigará os estudantes de medicina a trabalhar dois anos no SUS expõe a fratura social do Brasil

O programa “Mais Médicos”, lançado pela presidente Dilma Rousseff, não vai resolver o problema do Sistema Único de Saúde (SUS). Mas pode, sim, ser parte da solução. Ou alguém realmente acredita que colocar mais médicos nos lugares carentes do Brasil pode fazer mal para a população? Sério que, de boa fé, alguém acredita nisso? A veemência dos protestos contra o projeto de ampliar o curso de medicina de seis para oito anos e tornar esses dois últimos anos um trabalho remunerado para o SUS revela muito. Especialmente o quanto é abissal a fratura social no Brasil. E o quanto a parte mais rica é cega para a possibilidade de fazer a sua parte para diminuir uma desigualdade que deveria nos envergonhar todos os dias – e que, no caso da saúde, mata os mais frágeis e os mais pobres.

Para resolver o problema do SUS é preciso assumir, de fato, o compromisso com a saúde pública gratuita e universal. O que significa investir muito mais recursos. Em 2011, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil gastou US$ 477 per capita em saúde. Menos do que vizinhos como Uruguai (US$ 817,8) e Argentina (US$ 869,4), por exemplo. E quase seis vezes menos do que o Reino Unido (US$ 2.747), cujo sistema de saúde tem sido apresentado como referência do projeto do governo. Hoje, falta dinheiro e falta gestão eficiente. Sem dinheiro e sem eficiência, duas obviedades, não se constrói um sistema decente. Mas, para investir mais dinheiro no SUS, é preciso tocar também em questões sensíveis, como o financiamento da saúde privada. Falta dinheiro no SUS também – mas não só – porque o Estado tem subsidiado a saúde dos mais ricos via renúncia fiscal.

Um recente estudo do IPEA (leia aqui) mostrou que, em 2011, último ano avaliado, quase R$ 16 bilhões de reais deixaram de ser arrecadados pelo governo, por dedução no imposto de renda de pessoas físicas e jurídicas e desoneração fiscal da indústria farmacêutica e de hospitais filantrópicos. O que é, de fato, renúncia fiscal? Um pagamento feito pelo Estado: ele não desembolsa, mas paga, ao deixar de receber. Assim, quase R$ 16 bilhões, o equivalente a 22,5% do gasto público federal em saúde, deixaram de ser investidos no SUS para serem transferidos para o setor privado, numa espécie de distribuição de renda para o topo da pirâmide. Para ter uma ideia do impacto, é mais do que os R$ 13 bilhões que o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, afirma que o governo está investindo em unidades básicas de saúde, pronto-atendimento e hospitais. Não é a toa que, entre 2003 e 2011, o faturamento do mercado dos planos de saúde quase dobrou e o lucro líquido cresceu mais de duas vezes e meia acima da inflação.

O governo tem estimulado a população – e também os empregadores – a investir em saúde privada. Um plano de saúde privado tornou-se uma marca de ascensão social. A “classe C” ou “nova classe média” tem sido vítima de planos de saúde mequetrefes que, na hora de maior necessidade, deixam as pessoas desprotegidas. Como muitos já sentiram na pele, quando a coisa realmente aperta, quando a doença é séria e requer recursos e intervenções de ponta, quem vai resolver não é a rede privada, mas o SUS, porque uma parte significativa dos planos não cobre os exames e tratamentos mais caros.

Para que a solução seja estrutural – e não cosmética – é preciso acabar com as distorções e fortalecer o SUS. Sem dinheiro, o SUS vai sendo sucateado e se torna o destino apenas dos mais pobres e com menos instrumentos para reivindicar seus direitos. Assustada com a precarização do SUS, a classe média se sacrifica para pagar um plano privado, que tem sempre muitas letras miúdas. Os trabalhadores organizados incluem saúde privada na pauta sindical, afastando-se da luta do SUS. Quem tem mais poder de pressão para pressionar o Estado por saúde pública de qualidade, portanto, encontra saídas individuais – que muitas vezes vão se mostrar pífias na hora da urgência – ou saídas coletivas, mas para grupos específicos, no caso dos empregados com planos empresariais.

Enquanto sobrar distorções e faltar dinheiro, o SUS não vai melhorar. Não vai mesmo. Neste sentido, tem razão quem afirma que o programa “Mais Médicos” é demagogia. Mas apenas em parte.

Acrescentar dois anos ao curso de medicina e tornar esses dois últimos anos um trabalho remunerado no SUS, uma das mudanças previstas para iniciar em 2015, pode ser um aprendizado. E rico. Não só da prática médica como da realidade do país e da sua população, o que não pode fazer mal a alguém que pretenda ser um bom médico. Para que isso funcione, tanto como formação quanto como atendimento de qualidade à população, é preciso que exista de fato a supervisão dos professores e das faculdades. E essa é uma boa causa para as entidades corporativas e para as escolas de medicina.

Hoje, um dos problemas do SUS é a fragilidade da atenção básica: o que poderia ser resolvido nos postos de saúde ou pelo médico de família e que consiste em cerca de 90% dos casos acaba indo sobrecarregar os hospitais, que deveriam ser acionados apenas para os casos mais graves. A distorção provoca problemas de atendimento de uma ponta a outra do sistema. Por outro lado, entre os avanços mais significativos do SUS está o Programa Saúde da Família (PSF), um dos principais responsáveis, junto com o Bolsa Família, pela redução da mortalidade infantil no país. Mas faltam médicos para esse programa. A atuação dos estudantes de medicina poderá fazer uma enorme diferença. E isso não é pouco num país em que os filhos dos pobres ainda morrem de diarreia e de doenças já erradicadas nos países desenvolvidos.

A obrigatoriedade de trabalhar dois anos no SUS tem sido considerada por alguns setores, como as entidades corporativas, uma violação dos direitos individuais do estudante de medicina. Será que não poderia ser vista, além de um aprendizado, também como uma contrapartida, especialmente para quem estudou em universidades públicas ou foi beneficiado com bolsas do Prouni? O Estado, o que equivale a dizer toda a população brasileira, incluindo os que hoje não têm acesso à saúde pela precariedade do SUS, financia os estudos desses estudantes. Não seria lógico e mesmo ético que, ao final do curso, os estudantes devolvessem uma mínima parte desse investimento à sociedade? Para os estudantes das escolas privadas, o projeto prevê a liberação do pagamento das mensalidades nestes dois últimos anos. Mas sempre vale a pena lembrar que também há financiamento público das particulares, na forma de uma série de mecanismos, como renúncia fiscal para as filantrópicas e para as que aderiram ao Prouni.
Os estudantes de medicina serão remunerados pelo trabalho e pelo aprendizado. O valor mensal da bolsa ainda não está definido, mas a imprensa divulgou que será algo entre R$ 3 mil e R$ 8 mil. Ainda que seja o menor valor, que outra categoria no Brasil pode sonhar em ganhar isso antes mesmo de se formar? E mesmo depois de formado? Por que, então, uma resistência tão grande?

Por causa do abismo. A maioria dos estudantes de medicina vem das classes mais abastadas, como mostrou a Folha de S. Paulo de 13/7: na Unesp (Universidade Estadual Paulista), apenas 2% cursaram colégio público, contra 40% no geral; na USP (Universidade de São Paulo), 20% dos estudantes têm renda familiar superior a R$ 20 mil, não há negros na turma que ingressou em 2013. Historicamente, a elite brasileira não se vê como parte da construção de um país mais igualitário. Pelos motivos óbvios – e porque está acostumada a receber, não a dar. Assim, ter seus estudos financiados pelo conjunto da população brasileira é interpretado como parte dos seus direitos – não como algo que pressupõe também um dever ou uma contrapartida. Dever e contrapartida, como se sabe, são para os outros.

Não fosse esse olhar sobre si e sobre seu lugar no país, seria plausível que trabalhar os dois últimos anos do curso no SUS pudesse ser uma boa notícia para quem escolheu ser médico. Fosse até desejável. Primeiro, porque está ajudando a levar saúde a uma população que não tem. E, neste sentido, pode fazer a diferença, algumas vezes entre viver e morrer. Segundo, por participar da construção de um país mais justo, o que implica deveres ainda maiores a quem recebeu mais. Receber mais – melhores escolas, melhor saúde, melhores oportunidades – não significa que tenha de continuar recebendo mais, mas que precisa dar mais, já que a responsabilidade com quem recebeu menos se torna ainda maior. Terceiro, porque é inestimável a oportunidade de conhecer as dores, as necessidades e as aspirações das porções mais carentes do Brasil, não só pelo aprendizado médico em si, mas pelo que essa população pode ensinar sobre um outro viver.

Tornar-se médico – e não apenas um técnico em medicina – não passa pela capacidade de escutar o outro como alguém que tem algo a dizer não apenas sobre seus sintomas, mas sobre uma visão de mundo singular e uma interpretação complexa da vida?

Ao ler a maioria das críticas sobre o programa, o que chama a atenção é a impossibilidade de seus autores se verem como parte da construção de um SUS mais forte e eficiente, o que significa ser parte da construção de um Brasil melhor para todos – e não só para uma minoria. No geral, o que se revela nitidamente é um olhar de fora, como se tudo tivesse que estar pronto, em perfeitas condições, para que só então o médico atuasse. Mas é no embate cotidiano, no reconhecimento das carências e na pressão por mudanças que o SUS será fortalecido, como tem mostrado em sua prática uma parcela dos médicos tachada – às vezes pejorativamente – como idealista. Nesse sentido, também os estudantes de medicina e seus professores farão uma enorme diferença ao estar no palco onde esse embate é travado. Ao estar presentes – promovendo saúde, denunciando distorções e pressionando por qualidade – mais do que hoje.

Acredito que a vida da maioria só muda quando os Brasis se aproximam e se misturam. Tenho esperança de que esse programa – se bem executado, o que só pode acontecer com a adesão e o compromisso de todos os envolvidos – possa ser inscrito nesse gesto. O conjunto de medidas do “Mais médicos”, que inclui também a atuação de profissionais estrangeiros em áreas carentes, já promoveu pelo menos um impacto positivo: colocou o SUS no centro da pauta nacional. Seria tão importante que os protagonistas desse debate superassem a polarização inicial entre governo e entidades médicas para fazer uma discussão séria, com a participação da população, que pudesse resultar no acesso real da maioria a um sistema de saúde com qualidade. E seria uma pena que essa oportunidade fosse perdida por interesses imediatos e menos nobres, tanto de um lado quanto de outro.

É grande o debate sobre se faltam profissionais ou se eles estão mal distribuídos. O que me parece é que não faltam doutores no Brasil – o que falta são médicos. São muitos os doutores que ainda nem sequer se formaram, mas já assumiram o título e o encarnam num sentido profundo. O SUS terá mais chance quando existirem menos doutores e mais médicos trilhando o mapa do Brasil.

(Publicado na Revista Época em 15/07/2013)

 

Protestando dúvidas

Faces e máscaras na revolta sem nome que ocupa as ruas do Brasil

Ainda não há um nome para o que aconteceu/acontece no Brasil. Só tentativas, associadas a fenômenos ocorridos em outros países, como Primavera Árabe, Occupy, Indignados. Não é algo original como “a revolta do vinagre”, como apareceu aqui e ali, também não é Passe Livre. Nenhuma tentativa de nomear os acontecimentos deu conta de sua complexidade, o que parece nos dizer alguma coisa. Talvez porque o nome ainda esteja em disputa, como tanto por esses dias. Talvez porque não seja possível nomear o que não compreendemos. Mas, sobre aquilo que permaneceu inominável, se disse muito. Na mesma proporção da ocupação das ruas por centenas de milhares de brasileiros houve uma produção de narrativas sobre o que acontecia. Fragmentadas, contraditórias, como os cartazes empunhados pelo movimento. Tento escutar algumas delas nesta coluna – não para explicá-las, porque só podemos tatear, mas em busca de pistas sobre o que essas narrativas revelam e mascaram. Se há algo que me parece claro é que máscaras ocultam faces, mas faces também ocultam máscaras.

1) Cuidado, o próximo vândalo pode ser você.

“Vândalos” e “baderneiros” foram as palavras usadas pelo governador Geraldo Alckmin (PSDB) e adotadas por muitos setores para se referir aos manifestantes, de forma generalizada, até a quinta-feira (13/6). Nesta data, a violenta repressão da polícia paulista deu uma contribuição decisiva para a expansão dos protestos, não só em São Paulo como em todo o Brasil, e para o apoio da população a um movimento que até então boa parte olhava com desconfiança ou mesmo reprovação. A partir das manifestações da segunda-feira (17/6), disseminadas por várias cidades do país, momento em que o movimento recebeu a adesão de atores com demandas bastante diversas entre si, o discurso hegemônico sobre os protestos mudou. Ao longo da semana passada as manifestações ganharam a (quase) unanimidade: aqueles que antes eram “vândalos” e “baderneiros” se tornaram protagonistas de um “despertar”, faces do “gigante que acordou”. Nesse momento, os “vândalos” – esta tornou-se a palavra mais usada, às vezes trocada por “baderneiros” ou “arruaceiros” – tornaram-se, no discurso do Estado, da imprensa e mesmo da população, uma “minoria infiltrada” contra a imensa “maioria pacífica”.

Vale a pena olhar esse discurso narrativo com mais atenção. Antes de continuar, é preciso deixar claro que sou contra depredações – foi duro assistir ao ataque contra o Itamaraty, o belo prédio de Oscar Niemeyer. Também é preciso dizer que aqueles que usam a violência contra prédios e pessoas constituem mesmo uma minoria. Feitas as ressalvas, é possível pensar que essa interpretação, que divide a população entre “manifestantes pacíficos” e “vândalos”, pode encobrir uma complexidade maior: a) Primeiro, ela isola os “vândalos” da massa de manifestantes, aceitando como unanimidade que a única forma legítima de se manifestar é não causando danos ao patrimônio, seja ele público ou privado. Logo, quem entende que atacar o patrimônio é também uma manifestação – como aconteceu muitas vezes ao longo da história do Brasil e do mundo, inclusive em acontecimentos hoje celebrados como heroicos – é automaticamente colocado fora da manifestação no discurso, como se não tivesse nada a dizer nem estivesse dizendo algo com seus atos. Me parece que, ainda que se discorde das depredações – e de novo, repito, eu discordo –, é perigoso deixar de reconhecê-la como uma forma de manifestação. É perigoso porque, ao fazê-lo, se promove um silenciamento: ao deixar de escutá-la em suas diferenças, fecha-se a porta para a compreensão de um aspecto que, querendo ou não, é uma face importante das muitas tensões produzidas pelo fenômeno. E é perigoso deixar de reconhecê-la como parte, ainda que indesejável, para todos os outros manifestantes, hoje protegidos no amplo guarda-chuva representado pela “maioria pacífica”; b) Ao dividir os manifestantes entre “pacíficos”, que seriam os legítimos, e “vândalos”, os “infiltrados”, na medida em que são aqueles que “quebram” não só a ordem e a paz, mas o patrimônio, estabeleceu-se que existe uma massa do bem, aclamada por todos, contra uma massa do mal, que deve ser isolada – ou os limpinhos contra os sujinhos. Como se sabe, os maniqueísmos nunca fazem bem para a compreensão histórica. E, afinal, quem seriam os “infiltrados”, numa manifestação de massa, heterogênea e contraditória, além de agentes do Estado (e talvez eventuais quadrilhas criminosas, presentes apenas para obter ganhos materiais?); c) Há vários riscos contidos na aceitação fácil desse discurso. Um deles é deixar de perceber que, mesmo entre os “vândalos”, há diferenças – e essas diferenças também contam desse fenômeno. Outro risco é que todo comportamento considerado indesejável poderá transformar aquele que até então era “manifestante” num “vândalo”, um conceito que tem se mostrado bastante mutável, elástico e flutuante.

É compreensível que, diante do que não se entende e não se controla, se busque classificar. Classificar é também uma forma de controle. Em especial, quando essa classificação reduz e encaixota. Pode ser esse o caso: há uma caixa para os “vândalos”, que não precisariam ser compreendidos, e há uma caixa para uma maioria pacífica, que, sim, valeria a pena compreender em sua heterogeneidade. Se poderíamos pensar os protestos como uma “terceira margem” da rua, na medida do novo que representam, do entre ruas que expressam, também se reproduz na narrativa hegemônica sobre ele um “à margem”, uma exclusão, o lugar dos que não precisam ser escutados.

Ao longo dos dias, ao ouvir as referências constantes aos “vândalos”, especialmente na TV, me veio esse estranhamento. Vândalos não me é uma palavra estranha. Como a maioria, a ouvi muitas vezes, em ocasiões as mais diversas. Mas, dessa vez, tornou-se estranha pela forma como foi dita e repetida, dando pistas de que havia ali um outro sentido. Parecia ser mesmo um “povo bárbaro”, como na sua origem. Quase esperei pelos visigodos, os ostrogodos… talvez os hunos. Em certo sentido, no discurso sobre o atual fenômeno, os “vândalos” voltaram a tornar-se um “povo” – a tribo que não deveria estar ali, saqueando Roma. Não mais “à margem” da manifestação, mas a própria margem.

É preciso aprender com a história, diz o clichê. Nesse caso, a história de uma semana atrás. Não custa lembrar que, até então, “vândalos” eram todos aqueles que atrapalhavam o tráfego, no discurso dos mesmos que hoje os aclamam como “brasileiros que despertaram”. Quem serão os próximos “vândalos”?

(Parênteses. É um fato digno de atenção que aqueles que até duas ou três semanas atrás atacavam, ridicularizavam e às vezes até criminalizavam as manifestações dos movimentos sociais organizados pelo Brasil afora estejam achando altamente cívico o atual movimento das ruas, mais ainda quando os cartazes expressam generalidades. Isso deve significar alguma coisa.)

2) Os 20 centavos: ampliação ou redução do movimento?

Há uma compreensão de parte dos que estiveram nas manifestações desde o início, de que a manutenção de uma pauta clara, no caso a anulação do aumento da passagem de ônibus, num primeiro momento, para a tarifa zero do transporte público, a médio prazo, era fundamental. Além de ser uma reivindicação objetiva, ela dava conta de uma mudança profunda: a) falava da vida dos mais pobres, na qual o péssimo e caro transporte público determina (e se relaciona com) uma série de violências cotidianas e com a aniquilação da vida; b) dizia de uma transformação estrutural do atual modelo de mobilidade urbana, que prioriza o transporte individual em detrimento do coletivo, o que implica uma série de mudanças relacionadas.

No momento em que o movimento é apropriado por outras forças e essa bandeira passa a ser ampliada com a adesão de atores muito diversos entre si, em especial da classe média tradicional, parte desses manifestantes originais entende que o que pareceu uma ampliação foi, de fato, uma redução. Afinal, é bastante fácil reivindicar o fim da corrupção ou a paz, palavras de ordem tão bonitas quanto etéreas. Alguém sairia às ruas para pedir mais corrupção e mais violência? Difícil. Alguém se pronunciaria contra reinvindicações tão unânimes? Obviamente não. Paz e fim da corrupção, para citar apenas duas bandeiras que apareceram nos cartazes e nas entrevistas dos manifestantes, estão no cardápio de todos – assim como nas promessas vagas de governantes de qualquer partido. O que os manifestantes originais pretendiam – e pretendem – era algo que mexia com estruturas e privilégios, que dava conta de um modo de ver o mundo: tarifa zero para o transporte, assim como se optou em momentos históricos anteriores pela criação do SUS e pela gratuidade da educação pública.

Em parte, me parece que os manifestantes que avaliam existir uma redução qualitativa do movimento – e não uma ampliação – têm razão. Em parte, não. Ainda que o povo tenha ido às ruas com reivindicações amplas e mesmo contraditórias entre si, foi essa adesão que levou à redução da tarifa em São Paulo e em outras cidades, o que não é pouca coisa. Como era a única demanda objetiva, era a resposta objetiva que se poderia dar na perspectiva de arrefecer as ruas. O que acabou não acontecendo (ainda).

O movimento ganhou outras formas com a ampliação da adesão – e também outra força. Se há um risco na amplitude das reivindicações – algumas delas tão vagas quanto contraditórias, outras bastante precisas –, é poderosa essa expressão de repúdio a escolhas feitas pelos governantes, ao modo de fazer política, à falta de qualidade da vida cotidiana e à carência de representatividade no espaço público/político. Quando nos perguntamos se haverá mudanças concretas a partir dessas manifestações, me parece que precisamos compreender que a mudança já aconteceu. Mesmo que as ruas voltem a se apaziguar, nesta ou nas próximas semanas, a mudança já aconteceu. Outras poderão acontecer, mas há algo profundo que já mudou. Na vida pública, coletiva, mas também na individual, existe algo que já penetrou pelas frestas da nossa subjetividade.

Há uma preocupação sobre quem se apropriou do quê, sobre os riscos de uma guinada conservadora, sobre o uso por um ou outro partido, sobre o suposto desvirtuamento do movimento, sobre manipulações as mais diversas. São preocupações importantes. Mas isso é política. Ou alguém pensou que seria um passeio na Avenida Paulista? O jogo é pesado, é de gente grande (mesmo quando jovem). E é também nas ruas que essa disputa – política – precisa ser travada.

Nesse embate, talvez exista ainda algo de pungente e mais subjetivo, para além dos interesses imediatos: o desejo de não ficar de fora de algo tão especial, tão “histórico”, como foi dito e repetido, ainda que não se entenda direito o que é.

(Parênteses. Houve um certo susto com relação ao que é o povo nas ruas – e não apenas por parte das autoridades. Quando o povo vai às ruas, é sempre incontrolável e imprevisível. É ingenuidade pensar que será apenas bonito, como se, de repente, as pessoas todas expressassem somente bons sentimentos. São humanos os que estão nas ruas, com todos os seus desvãos. São os mesmos que xingam no trânsito, cometem pequenas ou até grandes vilanias no dia a dia, vomitam discursos de ódio protegidos pelo anonimato. O Brasil é um país violento, ao contrário do que se diz, e não só por conta dos homicídios e dos arrastões, mas pela violência contida nas relações cotidianas de todos nós, do mau atendimento em toda parte à intolerância com o outro em sua mínima diferença. Se há algo que as redes sociais já nos mostraram é o quão profundos são os desvãos humanos, aqui, em todo canto. É com isso que temos de lidar, tanto dentro quanto fora. Compreendo a decepção de alguns com “o povo”, mas, lamento, o pacote é completo.)

3) “A voz das ruas deve ser ouvida e respeitada”, disse a presidente, que até então preferia não escutá-la.

É ampla e complexa a pauta de porquês que colocou mais de um milhão de brasileiros nas ruas. Mas é bastante provável que pelo menos uma parte dessa composição de insatisfações esteja relacionada à pouca disposição de Dilma Rousseff para escutar os movimentos sociais. Lula era um político imensamente mais hábil do que Dilma. Mesmo quando sua popularidade aumentou, no segundo mandato, ele pelo menos ouvia movimentos sociais – ou “fingia ouvir”, como atestam alguns. Muitas vezes fazia o oposto do que havia dito e garantido que faria, mas recebia seus representantes, cuidava para que os interlocutores se sentissem amplamente acolhidos e saíssem satisfeitos. Essa era uma entre as muitas explicação para que quase nada colasse nele, já que as pessoas acabavam atribuindo os revezes à estrutura do gove rno, a assessores mal intencionados, jamais a um presidente tão carismático. Dilma, não. Se a presidente pensa diferente, não sei, mas todos os sinais que deu, desde que tomou posse, é de que não queria nem achava importante receber os movimentos sociais – os que restaram e não foram cooptados pelo governo.

Enquanto fez amplas concessões a setores como a bancada ruralista, para garantir apoio no Congresso, e deixou áreas consideradas menos estratégicas para serem ocupadas por políticos da estirpe de um Marco Feliciano, a presidente visivelmente se irritava com os pedidos de audiência e as reivindicações dos movimentos sociais. É algo da personalidade dela, como já ficou claro, mas seria injusto acreditar que é apenas uma escolha – ou limitação – pessoal da presidente. A exiguidade crescente dos canais de interlocução com a sociedade devem-se também a uma arrogância do PT, como partido no poder.

Confiante de que a popularidade tanto de Lula quanto de Dilma seria mantida pelos beneficiários de programas de transferência de renda como o Bolsa Família, como de fato tem se demonstrado até aqui, assim como pela inclusão real e importante de uma parcela significativa da população na última década, o PT parece ter acreditado que não precisava mais nem ouvir, nem negociar com os movimentos sociais. Assim como talvez tenha se preocupado menos do que deveria com a necessidade de contratar militantes nas últimas campanhas eleitorais, justo ele que costumava botar uma massa vermelha e convicta nas ruas.

Se a população mais pobre e desorganizada, que o cientista político André Singer denomina de “subproletariado”, tinha passado a garantir as urnas, para que se esfalfar com as reivindicações dos movimentos sociais, geralmente em nome das bandeiras históricas do partido? Ao escolher com quem precisava negociar e com quem não era mais necessário negociar, o PT afastou-se de aliados fiéis, assim como de suas bases tradicionais. Ao fazer crescentes concessões a novos e inconstantes aliados, movidos por interesses muito divergentes do que o PT defendia num passado muito recente e que mudam de lado em um segundo conforme conveniências privadas, desagradou a parcela da sociedade que historicamente esteve ao seu lado. Sempre em nome da “governabilidade”, guarda-chuva que supostamente tornaria tudo não só justificável como aceitável. É verdade que a máxima de que “os fins justificam os meios” foi adotada por todos os partidos no poder desde a redemocratização, mas também é verdade que do PT se esperava mais. E de quem se espera mais, também se cobra com mais veemência.

Não sei afirmar em que medida isso influenciou o movimento das ruas, apenas dizer que é uma pista a ser levada em conta na tentativa de compreender o fenômeno, já que o partido das ruas se descobriu apartado das ruas. E suspeito que não seja apenas por conta da ignorância dos jovens sobre a história do país e do lugar do PT nessa história. Inclusive porque foi o PT que, muitas vezes antes, esqueceu-se de sua própria trajetória. E se esforçou para que a esquecêssemos.

Nem por um segundo acredito que o lugar desqualificado da política convencional e dos partidos no imaginário dos manifestantes nas ruas seja responsabilidade exclusiva do PT. Nenhum partido escapa de compartilhar a responsabilidade pela desqualificação da política – e alguns possivelmente tenham contas maiores a acertar com a sociedade. Não é de hoje que as ruas vêm expressando seu descontentamento, sua sensação de não ser parte das decisões tanto dos governos quanto do legislativo, já que o voto é fundamental, mas não pode ser o único instrumento de participação numa democracia. No início deste ano, 1,6 milhão de pessoas assinaram a petição “Fora, Renan!”, o homem que saiu do Congresso pela porta dos fundos, para não ser cassado por corrupção, e voltou como presidente do Senado. Esta e outras manifestações foram pouco escutadas ou mesmo ridicularizadas como “coisa de ativistas de sofá”. Esqueceram-se de perceber que as ruas virtuais são bem reais. O que era virtual, no sentido de apartado da realidade, talvez fosse a propaganda de um Brasil próspero e feliz, com desejos restritos a bens de consumo.

É triste a expulsão de manifestantes com bandeiras de partidos nos protestos de quinta-feira (20/6). Concordo que seja autoritária, violenta e estúpida. Assim como é triste o ataque aos prédios das instituições, na medida em que mesmo os anseios mais díspares expostos nos cartazes dos manifestantes só poderão se realizar com o fortalecimento das instituições – e não com a sua destruição. Mas é preciso reconhecer que quem primeiro desqualificou os partidos e as instituições foram seus próprios membros. A crise de representação expressada pelos manifestantes nas ruas há muito vem sendo exibida nas redes sociais pela frase “Fulano não me representa” ou “Beltrano me representa”.

No pronunciamento de sexta-feira (21/6), Dilma Roussef disse que era preciso “ouvir a voz das ruas”. As próximas semanas mostrarão se Dilma acredita que é preciso ouvir a voz das ruas – ou acredita apenas que é preciso dizer isso para estancar a perda de popularidade e não comprometer a reeleição. O mesmo vale para governadores e prefeitos de todos os partidos.

(Parênteses. Há uma ironia irresistível nessa história. Lula apresentou Fernando Haddad como “o novo”, na campanha para prefeito de São Paulo, e funcionou. O bom era “o novo”, era “o novo” que o povo queria, o velho não servia para nada, inclusive porque implicava responder por uma história, enquanto no novo a história estava por ser escrita e no papel em branco cabe tudo. Esse truque de marqueteiro arregimentou adeptos e há muito político rodado se lançando como “o novo” por aí. Bem, “o novo” finalmente se apresentou nas ruas da cidade. E agora?)

4) O que é Copa, o que é futebol – o que é deles, o que é nosso

Uma pequena cena da periferia de São Paulo pode dar algumas pistas sobre as manifestações contra a Copa do Mundo na “pátria de chuteiras”. Às 23h de quarta-feira (19/6), o poeta Sérgio Vaz hasteou a bandeira do Brasil no bar do Zé Batidão, na Zona Sul da capital paulista. Era o encerramento daquele que talvez seja o maior sarau de poesias do país, a Cooperifa, frequentado por moradores das quebradas e por alunos da rede pública da região. Naquela quarta-feira particular, alguns dos poetas mais jovens estavam roucos de tanto gritar nos protestos. Vaz sublinhou o que já havia dito no início do sarau: “Estamos hasteando a bandeira não por causa da Copa das Confederações, não por causa da vitória do Brasil no futebol, mas por causa da conquista do povo nas ruas”.

Era uma pequena cena compondo o painel – multifacetado e polifônico – de um grande momento. Sua força é que, horas antes, Neymar fizera um gol espetacular e dera um passe para um segundo gol contra o México, mas isso era menos importante. O que se tornara digno de comemoração foi o que havia acontecido alguns minutos depois do final do jogo: o anúncio, pelo governador Geraldo Alckmin e pelo prefeito Fernando Haddad, da redução do valor das tarifas do transporte público, para atender ao clamor do povo nas ruas.

Vale a pena reservar um parágrafo para a descrição do lugar no qual se desenrola essa cena. Aos fundos do bar, sobre uma estante de livros em que se misturam clássicos do cânone a novelas românticas de banca de revista, estão os orgulhosos troféus do “7 Velas Caveirão”, time que foi patrocinado pelo mineiro Zé Batidão, o dono do bar. Sérgio Vaz sonhava, muito antes de ser poeta, com ser craque de futebol. Boa parte dos que ali estavam são torcedores fanáticos ou quase. Entre os programas da Cooperifa está um intercâmbio com times de futebol de várzea: em troca de uniforme, os jogadores levam suas famílias para ouvir de rap a Castro Alves nas quartas-feiras. Futebol e poesia, ali, habitam a mesma palavra. Ainda assim foi preciso dizer que o gol do Neymar não estava naquela bandeira do Brasil, no momento em que o povo dela se reapropriava.

Ao negar a importância da vitória do Brasil no jogo da Copa das Confederações, o que se afirmava era exatamente a posse do futebol como algo do povo – e não do Estado, nem das empreiteiras que expulsam a população e arrebentam favelas para construir estádios. Ao recusar o custo social da Copa é o futebol que se afirma. Não o futebol dos cartolas, das quadrilhas, dos contratos milionários e dos jogadores movidos a cifrões, mas o futebol como elemento constitutivo de identidade, no momento em que essa identidade ganha fluidez e contornos indefinidos nas ruas do país.

Não acho que os protestos foram planejados para a Copa das Confederações, pelo menos na medida em que ninguém poderia prever a proporção que tomaram. Mas também não acho que o momento seja apenas uma coincidência. Ainda vamos precisar compreender melhor o lugar do futebol e da Copa nessa convulsão das ruas. Quando sonhou com a Copa do Mundo no Brasil, Lula possivelmente pensou com a cabeça da década de 70, com a simbologia da ditadura que marcou a época da juventude dele e de tantos. Mas, ao recusar o custo social da Copa, o povo talvez esteja dizendo: “A Copa do Mundo não é nossa; o futebol, sim”.

(Parênteses. Sérgio Vaz ainda lembraria, com sua ironia certeira: “Aqui na periferia as balas continuam sendo de chumbo. Estamos reivindicando a evolução para balas de borracha”.)

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Em sua crônica da semana passada, na Folha de S. Paulo, o ótimo Antonio Prata fez a síntese precisa do momento: “Sejamos francos, companheiros: ninguém tá entendendo nada. Nem a imprensa nem os políticos nem os manifestantes, muito menos este que vos escreve e vem, humilde ou pretensiosamente, expor sua perplexidade e ignorância”. Desde então, tornou-se quase um estilo começar um artigo dizendo que “ninguém está entendendo nada do que está acontecendo” – alguns com sinceridade, outros como mote para dizer que ele ou o veículo que representa, sim, está entendendo alguma coisa.

Aos que fazem essa afirmação com sinceridade, gostaria de dizer que concordo. Mas gostaria de dizer também que sempre foi assim. Toda reflexão sobre a história em movimento é um esforço para compreender o momento no qual estamos todos tateando a partir de referências do passado e investigações do presente – sempre fragmentadas, incompletas e aquém, por maior que seja o nosso empenho. O que oferecemos ao leitor são nossas melhores e mais profundas dúvidas – e é com dúvidas que vamos construindo a narrativa complexa do cotidiano. O risco seria, com medo da ruptura também em nossos padrões de pensamento, repetirmos certezas viciadas para não escutar o novo. Se existe uma potência possível, ela se dá na coragem de sustentar nossas incertezas.

Uma das melhores frases para esses dias sem nome foi postada pelo poeta Carlito Azevedo, no Facebook:

– Quem não estiver confuso, não está bem informado.

(Publicado na Revista Época em 24/06/2013)

 

Russomanno e a vulgaridade do desejo

O “patrulheiro do consumidor” lidera em São Paulo porque, se a política é de mercado, ele pode convencer como mercadoria

Como se define um povo? De várias maneiras. A principal, me parece, é pela qualidade do seu desejo. É por este viés que também podemos compreender o fenômeno Celso Russomanno (PRB). Como um homem que se tornou conhecido por bolinar mulheres na cobertura de bailes de carnaval e como “patrulheiro do consumidor” em programa da TV Record, apoiado pela Igreja Universal do Reino de Deus, torna-se líder de intenções de votos na maior cidade do Brasil?

Acredito que parte da resposta possa estar no desejo. Na vulgaridade do nosso desejo. No que consiste o desejo das diferentes camadas da população, seja o topo da pirâmide, a classe média tradicional, o que tem sido chamado de “nova classe média” ou classe C. Para além das diferenças, que são muitas, há algo que tem igualado a socialite que faz compras no Shopping Cidade Jardim, um dos mais luxuosos de São Paulo, ao jovem das periferias paulistanas carentes de serviços públicos de qualidade. E o que é? A identificação como consumidor, acima de todas as maneiras de olhar para si mesmo – e para o outro. É para consumir que boa parte da população não só de São Paulo quanto do Brasil urbano tem conduzido o movimento da vida – e se consumido neste movimento.

Dois textos recentes são especialmente reveladores para nos ajudar a compreender o Brasil atual.

Em sua coluna de 4/9, na Folha de S. Paulo, o filósofo Vladimir Safatle faz uma análise interessantíssima do caso Russomanno. Ele parte do fato de que a ascensão econômica de larga parcela da população no lulismo se dá principalmente pela ampliação das possibilidades de consumo – e não pela ampliação do acesso a serviços sociais de qualidade. Logo, para essa camada da população, os direitos da cidadania são decodificados como direitos do consumidor. Nada mais lógico para representá-la e defender seus interesses do que um prefeito que seja um pretenso “patrulheiro do consumidor”, bancado por uma das igrejas líderes da “teologia da prosperidade”. Russomanno seria, na definição de Safatle, “o filho bastardo do lulismo com o populismo conservador”.

Na ótima reportagem intitulada “O Funk da Ostentação em São Paulo”, o repórter de Época Rafael de Pino conta como se dá a apropriação do funk carioca nas periferias de São Paulo. Preste atenção na abertura da matéria, que reproduzo aqui:

“‘Vida é ter um Hyundai e uma Hornet/10 mil pra gastar, Rolex e Juliet’, canta o paulista MC Danado no funk ‘Top do momento’. Para quem não entendeu, ele fala, na ordem, de um carro, uma moto, dinheiro, um relógio e um par de óculos – um refrão avaliado em R$ 400 mil. Na plateia do show na Zona Leste, região que concentra bairros populares de São Paulo, os versos são repetidos aos berros pelas quase 1.000 pessoas presentes, que pagaram ingressos a R$ 30. O público da sexta-feira é jovem, etnicamente diverso e poderia ser descrito em três palavras: ‘classe C emergente’.”

MC Danado, como nos conta Rafael de Pino, antes de se tornar um astro, trabalhou como office-boy e auxiliar de escritório. Ele diz o seguinte: “Gosto da ostentação, gosto de ostentar. Parte do que canto, eu tenho. Outra parte, desejo e vou conquistar com meu trabalho”. Vale a pena conferir os refrões de outros funkeiros da ostentação, como MC Guimê: “Ta-pa-ta-pa tá patrão, ta-pa-ta-pa tá patrão/Tênis Nike Shox, Bermuda da Oakley, Olha a situação”. Ou MCs BackDi e Bio-G3: “É classe A, é classe A/quando o bonde passa nas pistas geral, tá ligado que é ruim de aturar/É classe A, é classe A/Nós tem carro, tem moto e dinheiro”.

MC Menor, outra estrela ascendente, explica: “Enxergo o mundo como meu público enxerga. Nasci na comunidade, sei que lá ninguém quer cantar pobreza e miséria”. Não por acaso, é em São Paulo que o funk se torna uma expressão do desejo de consumo da juventude emergente das periferias.

Ao ascender economicamente, a “nova classe média” parece se apropriar da visão de mundo da classe média tradicional – talvez com mais pragmatismo e certamente com muito mais pressa. Em vez de lutar coletivamente por escola pública de qualidade, saúde pública de qualidade, transporte público de qualidade, o caminho é individual, via consumo: escola privada e plano de saúde privado, mesmo que sem qualidade, e carro para se livrar do ônibus, mesmo que fique parado no trânsito. O núcleo a partir do qual são eleitas as prioridades não é a comunidade, mas a família.

Se no passado recente o rap arrastou multidões nas periferias de São Paulo com um discurso fortemente ideológico contra o mercado, hoje o espaço é parcialmente ocupado pelo “funk da ostentação” e seu discurso de que uma vida só ganha sentido no consumo. As marcas de uma vida não se dão pela experiência, mas se adquirem pela compra: as marcas da vida são grifes de luxo, segundo nos informam as letras do funk paulista. Alguns dos grandes nomes do rap engajado do passado também podem ser vistos hoje anunciando produtos na TV com desembaraço – o que também quer dizer alguma coisa.

É importante observar, porém, que aquilo que eu tenho chamado aqui de vulgaridade do desejo não é uma novidade trazida pela “nova classe média”. Ao contrário, a influência tem sinal trocado. O que os emergentes da classe C tem feito é se apropriar da vulgaridade do desejo das elites. O funk da ostentação de MC Danado, ao recitar grifes e fazer uma ode ao consumo, pode estar na boca de qualquer socialite que possamos entrevistar agora no corredor de um dos shoppings de luxo.

Neste contexto, a vulgaridade do desejo tem em Russomanno sua expressão mais bem acabada na política. Assim como na religião encontra expressão em parte das igrejas evangélicas neopentecostais e sua teologia do compre agora para ganhar agora. Nesta eleição de São Paulo, testemunhamos uma aliança e uma síntese da nova configuração do Brasil – possivelmente menos transitória do que alguns acreditam ser.

Russomanno não inventou a vulgaridade do desejo – apenas a explicitou e tratou de encarná-la. Seus oponentes têm uma biografia muito mais relevante, assim como partidos mais sólidos. Mas parecem ter perdido essa vantagem junto a setores da população no momento em que se renderem à lógica do consumo e viraram também eles um produto eleitoral. Pela adesão à política de mercado, perderam a chance de representar uma alternativa, inclusive moral.

José Serra (PSDB) tem feito quase qualquer coisa para conquistar o apoio das igrejas na tentativa de vencer as disputas eleitorais. Basta lembrar como um dos exemplos mais contundentes o falso debate do aborto estimulado por ele na última eleição presidencial, na ânsia de ganhar o voto religioso. E Fernando Haddad (PT), que se pretende “novo”, antes do início oficial da campanha já tinha abraçado o velho Maluf. Para quê? Para ter mais tempo de TV – o lugar por excelência no qual os produtos são “vendidos” aos consumidores.

Quem transformou eleitores em consumidores de produtos eleitorais não foi Celso Russomanno. Ele apenas aproveitou-se da conjuntura propícia – e não perdeu a oportunidade ao perceber que os outros reduziram-se a ponto de jogar no seu campo. Afinal, de mercadoria Russomanno entende.

É bastante interessante que entre os mais perplexos diante deste novo Brasil, representado pelo fenômeno Russomanno, estejam o PT e a Igreja Católica. Ambos, porém, estão no cerne da mudança que agora se desenha com maior clareza.

A “era” Lula marcou e segue marcando sua atuação também pelo esvaziamento dos movimentos sociais – e da saída coletiva, construída e conquistada que foi decisiva para a formação do PT. Também estimulou sem qualquer prurido o personalismo populista na figura do líder/pai. Assim como na campanha que elegeu Dilma Rousseff, a sucessora de Lula no governo foi apresentada como filha do pai/mãe do povo. Em nenhum momento, nem o PT nem Lula pareceram se importar de verdade com o fato de que os numerosos militantes que no passado ocupavam os espaços públicos com suas bandeiras e seu idealismo foram gradualmente sendo substituídos por cabos eleitorais pagos, em mais uma adesão à lógica de mercado.

A cúpula da Igreja Católica no Brasil, por sua vez, atendendo às diretrizes do Vaticano, esforçou-se nas últimas décadas para esvaziar movimentos como a Teologia da Libertação, que representavam uma inserção do evangelho na política pelo caminho coletivo e pela formação de base. Esforçou-se com tanto afinco que perseguiu alguns de seus representantes mais importantes – e marginalizou outros. Mas parece que nem o PT de Lula nem a CNBB têm compreendido que o fenômeno Russomanno também foi gerado no ventre de suas guinadas conservadoras – e, no caso do PT, de suas alianças pragmáticas e da sua atuação para transformar a política num balcão de negócios. Sem esquecer, claro, que o PRB de Russomanno é da base de apoio do governo Dilma.

Quando a presidente do país dá o Ministério da Cultura para Marta Suplicy, para que ela suba no palanque do candidato do PT à prefeitura de São Paulo, por mais que os protagonistas aleguem apenas coincidência, é só política de mercado que enxergamos. E tudo piora quando Marta invoca uma trindade político-religiosa no palanque de Haddad: “O trio é capaz de alavancar (a candidatura de Haddad): a presidente Dilma, o Lula e eu. Eu, porque tenho o apelo de quem fez; eu sou a pessoa que faz. O Lula porque é um ‘deus’ e a presidente Dilma porque é bem avaliada. Então, com a entrada desse trio, vai dar certo”.

Diante do que está aí, feito e dito, por que o eleitor vai achar que Russomanno é pior? Ou que as alternativas a ele são de fato diferentes?

O mais importante não é atacar Celso Russomanno, mas compreender o que ele revela do Brasil atual. O fenômeno Russomanno pode ter algo a nos ensinar. Quem sabe sua liderança nas pesquisas eleitorais possa mostrar aos futuros candidatos que ética e coerência na política valem a pena se quiserem se tornar alternativas reais para uma parcela do eleitorado. Ou que se nivelar por baixo em nome dos fins pode ser um tiro no pé – tanto quanto se aliar com qualquer um. E talvez o fenômeno Russomanno possa ensinar aos futuros governantes que um povo se define pela qualidade do seu desejo. E desejo só se qualifica com educação.

Sempre se pode lamentar que o eleitor deseje o que deseja, mas o eleitor – em geral subestimado – sabe o que quer. Se a maioria acredita que tudo o que dá sentido a uma vida humana pode ser comprado num shopping, então São Paulo – e o Brasil – merecem Celso Russomanno.

(Publicado na Revista Época em 17/09/2012)

 

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