Denunciados pela linguagem

Fabiane era inocente. Nós, ao exaltarmos a sua inocência como principal razão para que ela não fosse assassinada, somos culpados

 

O linchamento de Fabiane Maria de Jesus nos denuncia pela palavra. Há um horror, o linchamento. E há o horror por trás do horror, que é a exacerbação da inocência da vítima. É preciso que este também nos espante, porque ainda mais entranhado, suas unhas cravadas fundo numa forma de pensar como indivíduos e de funcionar como sociedade. Nem todos são capazes de pegar um pedaço de pau para bater na cabeça de uma mulher até a morte por considerá-la culpada de um crime, mas é grande o número daqueles que, ao contarem o caso na última semana, enfatizaram: “Ela era inocente”. Não como uma informação a mais no horror, mas como a mais importante. Essa também foi a frase escolhida para ilustrar as camisetas dos que protestavam contra a sua morte: “A dor da inocência”. Mas talvez seja na exaltação da inocência que nossa violência se revele em sua face mais odiosa. O que pensamos ser luz, prova de nossa boa índole, é feito da matéria de nossas trevas mais íntimas. É a exacerbação da inocência que mostra o quanto nós – mesmo os que não lincham pessoas na rua – somos perigosos.

E se ela fosse culpada?, como provoca o título da matéria de Marina Rossi, aqui no El País Brasil. E se ela fosse uma mulher que praticasse magia negra com crianças? Seu assassinato por um bando de pessoas na rua estaria justificado? Então alguém poderia agarrá-la, outro arrastá-la e um terceiro passar com a roda da bicicleta sobre a sua cabeça? É isso o que estamos dizendo quando nos espantamos mais com a inocência de Fabiane do que com o seu assassinato?

O linchamento de Fabiane produziu uma narrativa fragmentada, que revela mais sobre os autores do discurso do que sobre a vítima. O suspeito V. B., eletricista, 48 anos, justificou-se, ao ser preso: teria golpeado Fabiane com um pedaço de madeira porque achou que o boato era “verdade”. O suspeito L.L., ajudante de pedreiro, 19 anos, que teria passado com a bicicleta sobre a cabeça de Fabiane, explicou: “Diante da gritaria das pessoas que tinham reconhecido a mulher, não tive dúvidas de participar do tumulto”. O suspeito C.J., pintor de paredes, 22 anos, teria puxado Fabiane pelos cabelos para se certificar de que era ela mesma, antes de ajudar a matá-la.

Em nenhum momento apareceu o choque por ter espancado uma pessoa com um pedaço de pau, passado sobre a cabeça de alguém com a bicicleta, agarrado uma mulher pelos cabelos. Passada a explosão da hora, a questão que motivou até um pedido de desculpas à família, por parte de um dos suspeitos, era o erro. Mas o erro não seria assassinar – e sim assassinar a pessoa errada. Se havia razões para o arrependimento era a inocência de Fabiane – não o ato de matar. “Não é ela, não é ela”, teria avisado alguém em um dos vídeos de sua morte. Não arrebente porque não é ela. E se fosse?

Se a exaltação da inocência estivesse restrita aos assassinos – e a quem assistiu ao assassinato sem nada fazer para impedi-lo – seria mais fácil. Mas foi a inocência de Fabiane que motivou, nos mais variados espaços, perguntas retóricas como: “onde estamos?” ou “que país é este?”. Entre os tantos comentários sobre o caso, lamentando a morte de Fabiane, talvez o do governador do estado de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), seja o mais revelador.

Fabiane foi linchada no sábado (3/5), no bairro de Morrinhos, na periferia do Guarujá, no litoral paulista, e morreu, no hospital, na segunda-feira (5/5). Tinha 33 anos. Na quarta-feira (7/5), o governador, que pretende tentar a reeleição, foi ao Guarujá para, entre outros compromissos, reinaugurar a maternidade do Hospital Santo Amaro – o mesmo onde, segundo o jornal O Estado de S. Paulo, Fabiane teve de esperar um dia para conseguir vaga na Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Durante a cerimônia, Alckmin manifestou-se sobre a morte de Fabiane, nos seguintes termos: “É inadmissível um ato de barbaridade como esse, tirando a vida de uma pessoa que não tinha nada a ver com a desconfiança da população, até porque tudo não passou de um boato”.

Uma boa questão de interpretação para a prova de língua portuguesa do próximo vestibular. O que, exatamente, o governador está dizendo ao povo do estado que governa? Qual é, para ele, a questão central no linchamento? O que é inadmissível, segundo Alckmin? Linchar uma pessoa, qualquer pessoa, ou linchar uma pessoa inocente?

A exaltação da inocência de Fabiane revela a não inocência da sociedade brasileira na série de linchamentos que vem atravessando o país. As palavras revelam o que também alimenta o espancamento e a morte de pessoas por cidadãos nas ruas. É no discurso, às vezes subliminar, às vezes explícito, que é reeditado cotidianamente o pacto histórico de que há uma categoria de brasileiros que podem ser mortos – ou que ao menos seu assassinato seria justificável. É esta mesma lógica que tolera – quando não deseja – a tortura e a morte de presos nas delegacias e nos presídios do Brasil. Encarar os linchamentos como algo que só pertence ao bárbaro, que é sempre o outro, é ocultar a nossa responsabilidade, a de cada um, com uma máscara de inocência. Fabiane era inocente. Nós, ao exaltarmos a sua inocência como principal razão para que ela não fosse assassinada, somos culpados.

A barbárie não deveria nos surpreender, como se fosse nova entre nós. A sociedade brasileira historicamente a tolera, quando não a estimula. Como já foi dito mais de uma vez, também aqui, ela está nas raízes da formação do Brasil. A barbárie chegou junto com os que se anunciavam como civilizados diante dos povos indígenas que aqui estavam – os bárbaros. E foram também os chamados civilizados que promoveram uma força de trabalho escravo, alimentada por negros trazidos da África (e também por índios). Nem a escravidão nem o extermínio indígena foram superados no Brasil – e as marcas de uma e a reedição do outro fazem parte do cotidiano do país, hoje.

Fingir que a barbárie é surpreendente não vai nos ajudar a combatê-la. No Brasil atual, indígenas, ribeirinhos e quilombolas têm sido expulsos de suas terras por atos do próprio governo federal – e muitos deles têm sido mortos por pistoleiros, a mando de fazendeiros. É assustador o número de moradores de rua assassinados no Brasil nos últimos tempos, assim como o de crimes por homofobia. A retirada de pessoas de suas casas para a construção de estádios da Copa do Mundo é conhecida – ou deveria ser – por todos. A violência nos presídios e as execuções nas favelas e periferias tornaram-se uma banalidade só interrompida por espasmos. Mesmo os linchamentos estão longe de nos ser estranhos, o que em nada diminui o seu horror e a necessidade de combatê-los.

Se há algo de novo é talvez a forma como as palavras encarnaram para tornar Fabiane uma pessoa para o linchamento. A internet não criou – nem piorou – o humano. Ela apenas o revelou como nunca antes. Ela deu-nos a conhecer. Antes não sabíamos o que pensava o vizinho ou o caixa do banco ou o sujeito que nos cumprimentava na padaria. Agora, ele grita na internet – e, mais do que grita, exibe todo o seu inferno. Passeia o time completo, com titulares e reservas, de seus ódios e preconceitos. Na internet, o humano perdeu o pudor de suas vísceras. Ao contrário, em vez de ocultá-las, passou a exibi-las como um troféu de autenticidade.

É nesse contexto que o dono do perfil no Facebook “Guarujá Alerta” postou, em 25 de abril, a seguinte “notícia” – que jamais poderia ser chamada de notícia porque sequer foi apurada antes de ser publicada: “Boatos rolam na região da praia do Pernambuco, Maré Mansa, Vila Rã e Areião, que uma mulher está raptando crianças para realizar magia negra… Se é boato ou não devemos ficar alertas”. Nenhum pudor de postar um boato. Zero pudor. Ao contrário, a internet nos mostra que há um orgulho no despudor, no “assumir” a falta de princípios, confundindo-a com o que é apresentado como “coragem de denunciar”.

Alguns dos comentários de homens e mulheres, postados na sequência, mostra a disseminação do ódio, travestida como defesa do bem: “Mata essa filha da puta. Quem achar, sem dó”/ “Se vir pro Morrinhos vai tomar só rajada essa cachorra”/ “Vamos fazer uma magia de revolta com ela, ‘botando fogo nela’”. Logo surgiu um retrato falado, que seria descrito pela imprensa como o de uma mulher “negra e gorda”, em seguida a foto de uma loira.

Dias depois da publicação do boato, Fabiane, com pouca ou nenhuma semelhança com qualquer uma das imagens, foi linchada. Inclusive crianças participaram do seu espancamento. O retrato falado tinha sido feito em 2012 pela polícia carioca e referia-se a uma suspeita de ter sequestrado uma criança na zona norte do Rio. Nenhum menino ou menina desaparecera na região do Guarujá nos últimos tempos, o crime não existia. Mas as “bruxas” começaram a ser vistas em toda parte – e também em outras regiões do país, na qual o boato foi reproduzido. Fabiane foi a única morta, mas várias mulheres podem ter corrido o risco de ser assassinadas. De novo, as mulheres e a bruxaria, como nas fogueiras da Inquisição.

(Só um parêntese. Vale pensar sobre o peso da palavra escrita nessa tragédia. Sobre o quanto a palavra escrita, agora na internet, é decodificada ainda por muitos, em especial por aqueles que ao longo da história tão pouco tiveram acesso a ela, como “verdade”. A frase “está no jornal” ou “li no jornal”, usada para assegurar a veracidade de algo diante de outros, é agora também “está (ou li) na internet”. É o que mostra a quantidade de spams com boatos os mais estapafúrdios que atravancam todos os dias as caixas de e-mail e também as redes sociais, porque muitos os replicam, sem apurar a fonte ou sequer duvidar, para alertar seu circuito de conhecidos, familiares e amigos sobre ameaças terríveis. Falta muito para que a leitura crítica, tanto da imprensa tradicional quanto da mídia alternativa, como de qualquer outra produção narrativa, se estabeleça para a maioria, tão carente de educação no país.)

Quando Fabiane foi agarrada naquele sábado, carregava um livro de capa preta. Quem passava por ela, viu nele uma obra de magia negra. Quando ela ofereceu uma fruta a uma criança na rua, o gesto foi interpretado como uma tentativa de sedução. Foi só alguém gritar “é ela, é ela”, para o linchamento começar. É importante compreender como Fabiane tornou-se bruxa. Mas também é fundamental entender como ela deixou de ser bruxa.

O feitiço ao contrário é revelador. O livro de magia negra era uma Bíblia. A fruta oferecida era um gesto de generosidade. Fabiane era branca, era religiosa, era mãe de duas filhas, era dona de casa e gostava de crianças. Sua única “mácula”, para o senso comum, seria um diagnóstico de “transtorno bipolar”, relacionado nos relatos “ao parto da primeira filha”. Mas, mesmo neste caso, ela foi poupada do preconceito costumeiro, associado às doenças mentais, por depoimentos como este, de uma amiga: “(Nas crises) ela saía abraçando as pessoas, falando que amava todo mundo, nunca fez mal a ninguém”.

Fabiane, portanto, não só era inocente, como era a imagem da inocência. Era o retrato idealizado do feminino ligado à maternidade. Não tenho como aferir o quanto essa imagem, desfeito o feitiço, colaborou para a comoção do país. Mas suspeito que bastante. E isso também revela o quanto nós não somos inocentes.

E se Fabiane fosse “negra e gorda”, como descrita no retrato falado? E se Fabiane exibisse piercings e tatuagens pelo corpo? E se Fabiane fosse lésbica? E se Fabiane fosse agressiva? E se Fabiane fosse do candomblé ou do batuque ou de outra religião afro-brasileira, as quais os pastores evangélicos neopentecostais tanto relacionam nos templos e nos programas da TV com satanismo, uma atitude criminosa pouco ou nada combatida? E se Fabiane fosse bruxa? E se Fabiane fosse o oposto da idealização feminina? Será que tantos hoje chorariam por ela?

E Fabiane seria, por isso, menos inocente?

Talvez, se sua imagem não correspondesse ao estereótipo da mãe de família, ouviríamos coisas como: “Também, com aquela aparência, era fácil confundi-la”. Ou: “Essa história está mal contada, boa coisa ela não era”. Talvez então o feitiço jamais fosse desfeito e Fabiane continuasse na lista não escrita das pessoas “lincháveis”. É possível? Ou estou exagerando? Gostaria de estar exagerando, mas me arrisco a suspeitar que não.

Vale a pena prestar atenção ao comentário de L., ao ser preso e pedir desculpas à família de Fabiane. “Peço desculpas à família, estou muito arrependido. Desculpa mesmo. A gente vê a nossa mãe em casa, nossa tia, e imagina que poderia ter sido com elas”. De repente, o algoz percebe que sua vítima não é mais uma “bruxa”, uma diferente, uma outra, mas sim semelhante às mulheres da sua família que ocupam um lugar materno. E, como filho, sobrinho, dessas mulheres, semelhante a ele mesmo. Pela lógica imediata, se a conversão em bruxa pela turba enlouquecida, da qual ele fez parte, aconteceu com Fabiane, por que não aconteceria com sua mãe, com sua tia? Com ele, com cada um de nós? Será também um medo novo que faz aumentar a comoção por Fabiane? E agora, que a barreira dos “lincháveis” foi rompida e uma mãe de família, uma devota, morreu a pauladas?

Um dos suspeitos disse à polícia que dois outros autores do linchamento de Fabiane foram executados pelo tráfico. A informação foi publicada na imprensa. Se queremos de fato enfrentar a barbárie, precisamos saber se essa afirmação é verídica. E, se for verídica, precisamos exigir que os assassinos dos assassinos sejam investigados, julgados e punidos, no rito da lei. Do contrário, somos só bárbaros que acreditam que linchadores devem ser mortos, no olho por olho, dente por dente. Como aqueles bárbaros que salivam em suas casas quando assistem à notícia de que estupradores foram violados na cadeia, onde estão sob proteção do Estado.

Chorar pelos inocentes é fácil. O que nos define como indivíduos e como sociedade é a nossa capacidade de exigir dignidade e legalidade no tratamento dos culpados. O compromisso com o processo civilizatório é árduo e exige o melhor de nós: respeitar a vida dos assassinos. Fora isso, é só demagogia.

Há vários apelos circulando na internet sobre as palavras “justiceiro” e “justiçamento”. Quero trazer a reflexão para cá, porque já descobrimos há muito – e também agora – que as palavras são poderosas. E andam. E encarnam. E revelam. E autorizam. Linchamento não é “justiçamento”. É crime. Linchador não é “justiceiro”. É criminoso. Seja uma pessoa ou uma turba, quem mata é assassino. Quem lincha e mata não quer justiça, quer vingança – às vezes sem nem mesmo saber do quê. Se queremos superar a barbárie, talvez seja necessário jamais confundir “justiça” e “vingança” – também nas palavras.

(Publicado no El País em 12/05/2014)

O aborto na fogueira eleitoral

Todos os perigos parecem ainda morar no corpo da mulher, inclusive, de várias maneiras, para os políticos brasileiros em campanha

Aconteceu de novo. E logo cedo. Depois de assistir à missa de Páscoa no Santuário Nacional de Aparecida, no interior de São Paulo, Eduardo Campos, pré-candidato à presidência da República pelo PSB, foi confrontado com a pergunta do aborto. Contra ou favor? Era o colarinho do cardeal Dom Raymundo Damasceno, presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), ao seu lado, que estava justo, mas foi Campos que espremeu a seguinte resposta: “Acho que a legislação brasileira é adequada e, como cidadão, minha posição é a de todos. Não conheço ninguém que seja a favor do aborto”. E acrescentou: “Como cristão, cidadão e pai de cinco filhos, minha vida já responde à pergunta”. Dias depois, Campos afirmou, durante uma coletiva de imprensa, que seu “ponto de vista é muito claro”, mas que “respeita o ponto de vista dos outros”. Disse ainda que sua posição sobre o aborto é “pública”, porque já foi candidato outras vezes, e sugeriu aos jornalistas que dessem “um Google” para buscar a resposta, o que é um tanto extraordinário.

Nos últimos anos, o tema se tornou uma moeda de barganha eleitoral. Todos os dias mulheres de todas as religiões fazem abortos no Brasil. Aos 40 anos, uma em cada cinco brasileiras já fez aborto. A cada dois dias uma mulher morre por aborto ilegal. Muitas deixam crianças órfãs, num ciclo de dor e miséria que mereceria a atenção de qualquer cidadão, mais ainda de alguém que pleiteia governar o país. Mas a questão do aborto, de fato, nenhum candidato parece querer discutir com a seriedade e a honestidade exigidas para algo com tanto impacto sobre o país. O assunto só aparece como instrumento de chantagem na busca inescrupulosa por todo o apoio possível, nesse caso o voto religioso. O ex-ministro da Saúde Alexandre Padilha, pré-candidato do PT ao governo de São Paulo, foi outro que assistiu à missa de Páscoa em Aparecida.

Está aberta a temporada de beija-anel de bispo e cardeal. Logo, será a vez dos grandes pastores midiáticos. O Estado é laico, mas as últimas campanhas mostraram que parte dos candidatos impõe as mãos, rala os joelhos e rasga princípios no maior número de altares que conseguir. A transformação de vidas humanas em moeda eleitoral mostra o quanto o debate político é rebaixado no Brasil. Revela também o quanto o Estado brasileiro ainda é frágil diante da pressão das religiões. As igrejas podem defender comportamentos morais para os seus fiéis, mas não impor suas prescrições ao conjunto dos cidadãos brasileiros. Cabe ao Estado laico zelar para que os limites não sejam ultrapassados, o que se perde quando direitos fundamentais viram instrumento de chantagem.

A declaração de Campos – “não conheço ninguém que seja a favor do aborto” – provocou protestos nas redes sociais. Páginas foram criadas no Facebook nas quais pessoas se apresentam, ironicamente: “Prazer, Eduardo Campos, eu sou a favor da descriminalização do aborto e existo”. A frase usada por Campos é um conhecido truque retórico, como bem aponta a jornalista Carla Rodrigues em seu blog. Evoca a ideia de que ninguém seria a favor de eliminar embriões como método contraceptivo. Mas a questão, como Campos sabe muito bem, é ser a favor das mulheres que fazem aborto, assegurando seu direito de decidir sobre a própria maternidade e protegendo a sua saúde, para que não morram em procedimentos clandestinos. O tema que precisa ser enfrentado, como Campos sabe muito bem, é de como amparar as mulheres que têm morrido por não serem amparadas – mesmo nos casos em que o aborto já é permitido no país: risco de morte da mãe, gravidez por estupro, gestação de feto anencefálico.

A decisão sobre se pode ou não levar adiante uma gravidez é privada, pertence à cada mulher. É uma escolha íntima, em geral difícil. Essa decisão individual só assume uma dimensão pública na medida em que o Estado deixa de assegurar às mulheres os meios para ter sua escolha respeitada. Assim, a questão do aborto no Brasil, se não diz respeito apenas à saúde pública, é também de saúde pública. E uma das mais sérias, já que atinge as brasileiras mais pobres, que arriscam a vida no banheiro de casa, enquanto as mais ricas interrompem a gestação com razoável segurança em clínicas privadas. O direito ou não ao aborto no Brasil, como qualquer um que não é cínico sabe, tanto quanto o direito a sobreviver ou não a ele, é uma questão de ter ou não dinheiro para fazê-lo em condições seguras. Só é assim porque barganhar com a vida das mulheres pobres, que dependem do SUS, continua sendo um esporte lucrativo, tanto nas eleições quanto nos corredores do Congresso.

Em 2013, grupos evangélicos e também católicos, como o Pró-Vida e Pró-Família, ameaçaram Dilma Rousseff com a retirada de apoio na reeleição, alegando que ela estaria, “na prática, legalizando o aborto no Brasil”. A presidente havia acabado de sancionar sem vetos a lei, aprovada pela Câmara e pelo Senado, que obriga os hospitais a prestarem atendimento integral e multidisciplinar às vítimas de violência sexual. Entre outros direitos, a mulher que sofre estupro pode obter na rede pública a chamada pílula do dia seguinte, para não correr o risco de engravidar do estuprador. Era sobre isso que grupos religiosos radicais protestavam.

Na época, escrevi um artigo intitulado “O aborto e a má fé”, em que apontava para a possibilidade de que o nível da campanha de 2014 pudesse ser ainda mais baixo que o de 2010. É curioso, mas também triste, que a largada tenha sido dada por quem se apresenta como protagonista de uma “nova política”, e também como “socialista”. Novo, de fato, seria enfrentar a questão do aborto com a profundidade que o tema exige. E bem longe da simplificação de plebiscito, defendida na campanha anterior por Marina Silva (Rede), a anunciada vice de Eduardo Campos nas eleições presidenciais desse ano, que é evangélica.

Propor que o aborto seja matéria para um plebiscito é usar de má fé, ao tentar dar uma aparência democrática a um pensamento autoritário. Cabe à democracia respeitar a vontade da maioria, ao, por exemplo, eleger um presidente da República, governadores e legisladores, mas também cabe à democracia assegurar os direitos das minorias. Questões de ética privada, como o aborto e a união de pessoas do mesmo sexo, não são matérias de plebiscito. Referem-se à garantia dos direitos fundamentais de cada cidadão. Num debate político é menos importante saber o que cada candidato fará diante de uma escolha de ordem moral e privada em suas próprias vidas, do que saber claramente como vão cuidar das brasileiras que morrem porque o aborto é criminalizado no Brasil. A crença ou não crença religiosa de cada candidato só diz respeito ao eleitor se essa crença ou não crença interferir na garantia dos direitos fundamentais de quem fará escolhas diferentes no âmbito da sua vida privada. Homens ou mulheres públicos governam para assegurar os direitos fundamentais de todos – os que fariam a mesma escolha moral que eles e também os que não fariam. Ao transformar o aborto em moeda eleitoral para faturar o voto religioso, a democracia escorre para o esgoto.

Nas primeiras campanhas eleitorais após a ditadura, os candidatos costumavam evitar abordar o tema do aborto. Aos poucos, ao perceber o potencial eleitoral do crescimento dos evangélicos no Brasil, alguns oportunistas começaram a perceber que jogar o aborto na mídia e no palanque poderia ser conveniente. Tanto para conquistar o voto religioso quanto para derrubar opositores (cada vez mais raros) com escrúpulos de se tornar coroinhas de última hora. No período recente, ninguém fez isso com maior truculência do que José Serra (PSDB), na campanha eleitoral de 2010.

Para lembrar, porque é importante manter a memória viva. No final do primeiro turno de 2010, a internet e as ruas foram tomadas por uma campanha anônima, na qual se afirmava que Dilma era “abortista” e “assassina de fetos”. Dilma começou a perder votos entre os evangélicos e parte dos bispos e padres católicos exortou os fiéis a não votar nela. Serra empenhou-se em tirar proveito do ataque vindo das catacumbas, determinando o rumo da campanha dali em diante. E Dilma correu a buscar o apoio de religiosos, acabando por escrever uma carta declarando-se “pessoalmente contra o aborto”. Nela, comprometia-se, em caso de vencer a eleição, a não propor nenhuma medida para alterar a legislação sobre o tema. Logo, tanto Serra quanto Dilma despontaram no espetáculo eleitoreiro como devotos tomados por um fervor religioso até então desconhecido de quem acompanhava a sua trajetória. Serra apregoou que tinha “Deus no peito”. Dilma agradeceu “a Deus pela dupla graça” e, usando o mote dos grupos mais radicais do catolicismo, afirmou que fazia “uma campanha, antes de tudo, em defesa da vida”.

Nesse sentido, talvez a campanha de 2010 tenha sido o momento mais baixo desde a redemocratização do país. O que nela se passou escancarou as portas para todas as leviandades e recuos que vieram depois, nos temas relativos à saúde da mulher e ao respeito à diversidade sexual. Basta lembrar, entre outros, do cancelamento do kit anti-homofobia, que seria usado nas escolas públicas, e a retirada do ar do vídeo de uma campanha de prevenção a doenças sexualmente transmissíveis, na qual uma prostituta dizia ser “feliz”. O fato de uma mulher ser feliz e ser prostituta parece ter ferido mais a sensibilidade dos hipócritas de ocasião (e do governo) do que pessoas adoecerem ou mesmo perderem a vida por doenças evitáveis.

Os protagonistas desse rebaixamento do debate político jamais devem ser esquecidos. A coerência dos candidatos, assim como seu comportamento diante de temas espinhosos, mas de extrema importância, revelam como cada um deles vai atuar quando tiver o poder. Se a campanha eleitoral de 2014 superar a de 2010, na chantagem com temas que dizem respeito a vidas humanas – e isso num momento em que os brasileiros nas ruas exigem maior participação na política e maior responsabilidade daqueles que foram eleitos para cargos públicos – será assombroso. Quando Eduardo Campos afirma que não conhece “ninguém que seja a favor do aborto”, apenas reforça a suposição de que, em vez de uma alternativa à “velha política”, como seus marqueteiros se esforçam para difundir, ele seria mais um representante da política viciada e permeável às chantagens de ocasião.

É importante pensar por que o aborto, mais uma vez, ameaça despontar numa eleição presidencial como instrumento de barganha para o apoio e o voto religioso – e não outro dos temas morais. Por que, de novo, é do corpo da mulher que se trata. Por que, outra vez, a disputa rasteira se dá sobre a topografia feminina. O que isso oculta? O que revela? A questão talvez seja menos o aborto, mas sim em que medida a religião pode controlar, via Estado, a reprodução das mulheres – e, especialmente, a sexualidade das mulheres. A pergunta é por que, ainda hoje, no século 21, é tão crucial manter o controle sobre o corpo feminino.

Parece que a visão medieval que localiza no corpo das mulheres a morada de todos os perigos continua atual. Inclusive para políticos em campanha. Enquanto isso, mulheres reais morrem porque, quem tem o dever de debater e promover políticas públicas para assegurar seus direitos fundamentais, chantageia com suas vidas. Cabe a cada cidadão impedir que a eleição de 2014 se torne uma trágica repetição da indignidade testemunhada em 2010, na qual votos foram negociados sobre cadáveres femininos.

(Publicado no El País em 28/04/2014)

 

A potência de Adelir

Que dogmas tão profundos a gestante de Torres feriu para ter seu corpo violado pelo Estado na calada da noite

 

Na madrugada de 1º de abril, dois poderes, a Medicina e a Justiça, produziram uma cena histórica no Brasil. Nela, uma mulher em trabalho de parto, Adelir Lemos de Goes, 29 anos, foi arrancada de sua casa, na zona rural do município gaúcho de Torres, por um oficial de justiça e policiais armados. Em seguida, ela foi obrigada a entrar numa ambulância. Se não entrasse, prenderiam seu marido, Emerson Guimarães, 41 anos, técnico em manutenção industrial. Apavorada, com contrações a cada cinco minutos, preocupada com o susto dos filhos pequenos, Adelir foi escoltada até o Hospital Nossa Senhora dos Navegantes. Lá, mais uma vez, foi obrigada por ordem judicial a deixar-se cortar. Contra a sua vontade, tiraram do seu útero, por cesariana, seu terceiro filho, uma menina. Naquela madrugada, Adelir descobriu que dois espaços que considerava privados, invioláveis, tinham sido invadidos no meio da noite: sua casa, seu corpo. Ao amanhecer, Adelir não pertencia sequer a si mesma.

Antes de se perfilar de um lado ou outro desse campo, a favor ou contra Adelir, é preciso tentar alcançar o que essa mulher sentiu, já que também nós costumamos nos sentir seguros em casa. Mesmo que a casa seja um barraco numa zona de risco, é pela certeza de um lugar no mundo que se luta, às vezes arriscando a própria vida. No meio da noite, uma casa torna-se ainda mais importante, como garantia de refúgio diante do temor atávico da escuridão. No caso de Adelir, era uma casa de madeira, parcialmente coberta por uma lona, porque ainda em construção. Quando sua filha, chamada de Yuja Kali, foi arrancada do seu útero, também foi uma invasão na madrugada. Quem já assistiu a uma cesariana sabe que é como arrombar uma porta e tirar de repente um bebê do único lar que conhece, jogando-o na luz e na temperatura de um mundo desconhecido e inóspito, em que ele fica longe do corpo da mãe que se recupera de uma cirurgia, submetido a uma série de procedimentos bruscos. Para Adelir e a pequena mulher que gerou, ambas arrancadas à força de suas casas, foi uma longa noite de horrores.

Naquela madrugada, Adelir apagou as luzes e acendeu velas enquanto vivia as contrações do trabalho de parto. E então o barulho de pneus e motor de carros quebra a calmaria da zona rural. E então alguém se anuncia oficial de justiça e ostenta um papel tão poderoso que ela pode ser carregada de sua casa. Adelir espia e vê nove policiais. O que, com aquele barrigão, ela poderia ter feito de tão errado para ser alvo de uma força de repressão daquele tamanho, tão rara nas ruas de Torres, mais ainda no interiorzão? Para que tantos homens armados diante de uma mulher barriguda?

Essa é uma pergunta interessante: o que tornou Adelir tão perigosa, de repente? Que poder tão nevrálgico ela desafiou para mover tantas autoridades durante a noite? O que, de fato, ela estava ameaçando, para mobilizar uma demonstração de força dessa ordem?

É preciso voltar ao dia anterior. Em torno das 15h de 31 de março, Adelir foi ao hospital com a doula Stephany Hendz, assistente treinada de parto, que acompanhava a sua gestação e a acompanharia no nascimento do bebê. Adelir tinha feito o pré-Natal no sistema público de saúde. Ela vinha de duas cesarianas, que considerava desnecessárias, e tinha buscado informações, leituras e grupos de apoio para ajudá-la a, dessa vez, ter um parto normal. Depois de examiná-la, a médica disse-lhe que, como a criança estava em posição pélvica (sentada) e ela já tinha feito duas cesarianas, precisava se submeter, de imediato, a mais um procedimento cirúrgico. Se não o fizesse, haveria risco de romper a cicatriz, causando a morte dela e do bebê.

Adelir não aceitou. Ela sabia que, nessas mesmas condições, muitas mulheres no Brasil e fora dele tiveram seus filhos por parto normal. Seu bebê estava bem, ela estava bem. Assinou um termo de responsabilidade e deixou o hospital. Tentaria um outro, em Santa Catarina, já que Torres está próxima do município catarinense de Araranguá. Adelir esperava encontrar uma equipe de saúde que respeitasse a sua escolha de ter um parto humanizado.

Ao dizer “não”, Adelir tornou-se perigosa. Como uma mulher, usuária do SUS, moradora da zona rural, recusa-se a cumprir a ordem de uma doutora? Como ela ousa escolher o que considera melhor para ela e para seu bebê? Não como uma inconsequente, mas como alguém que se preparou para o parto, informou-se, contratou uma doula para ajudá-la? Nem mesmo quando botam um termo de responsabilidade diante dela, sempre assustador para todos e mais ainda para os pobres, Adelir recua. Ela assina. E vai para casa continuar a se preparar para dar à luz sua filha.

Porque é uma irresponsável, como teria dito uma das médicas? Não é o que parece. O que se torna claro no comportamento de Adelir é que ela tem a coragem de se responsabilizar. E se responsabilizar é ser mãe. Adelir, nesse momento, já é mãe da sua filha. Ao decidir só aceitar a cesariana se a equipe de saúde comprovar que é de fato necessária, ela está decidindo o que é melhor para ela e para a filha que há nove meses acolhe, alimenta e cuida, com quem há nove meses convive dentro da sua barriga. Do seu corpo. Ao dizer “não” à médica, Adelir está protegendo sua filha.

Quem já ousou enfrentar um diagnóstico médico, seja na rede pública ou na privada, sabe como essa é uma batalha penosa. Pode, inclusive, apalpar o tamanho da coragem de Adelir. Os médicos – em geral, mas sem esquecer de uma minoria que luta bravamente por relações mais horizontais e respeitosas – consideram-se os donos dos corpos. Não só do deles, mas do meu e do seu. A medicina como um poder capaz de normatizar os corpos é uma construção social e histórica, com capítulos fascinantes. Para quem se interessar, há uma vasta bibliografia a respeito. Aqui, o que vale assinalar é que o gesto de Adelir não é banal. O significado de sua recusa é enorme. Na tentativa de preservar a escolha que considerava melhor para ela e para a filha, sem saber, Adelir, essa extraordinária mulher comum, moveu placas tectônicas.

É fundamental lembrar que Adelir tinha todo o direito de questionar a decisão médica. Tinha porque essa é uma prerrogativa legal de qualquer pessoa. E tinha porque o Brasil é um dos líderes mundiais de cesarianas, um dos títulos que envergonha o sistema de saúde brasileiro. A Organização Mundial de Saúde (OMS) considera que a cesariana é necessária em no máximo 15% dos casos. No Brasil, as cesarianas representam mais da metade dos nascimentos. Na rede privada, ultrapassam os 80%. Esse dado é sempre repetido, pouco enfrentado, porque serve a vários interesses mercadológicos. Também porque a cultura da cesariana está entranhada nos profissionais da medicina, a começar pelas universidades em que são formados. Considerada mais prática e rápida, mais adequada à sociedade de consumo, a cesariana é a primeira opção, quando deveria ser a última – sem que os riscos de uma cirurgia e desse nascer com hora marcada, antes que o bebê esteja de fato pronto, seja sequer avaliado como prioridade.

Adelir sabia disso. Ela mesma se considerava vítima de duas cesarianas desnecessárias. Basta conversar com mulheres grávidas para perceber que o medo de serem enganadas por seus médicos é um fator de estresse presente durante toda a gestação, que se aprofunda no momento em que a hora do nascimento se aproxima. Qualquer um que se dispuser a escutar mulheres que sonhavam com um parto normal e tiveram uma cesariana ouvirá que, perto do fim da gravidez, os médicos deram uma justificativa supostamente científica para determinar a cirurgia. Por medo de confrontarem-nos e colocarem seu bebê em risco; ou mesmo serem abandonadas, como alguns médicos ameaçam; por sentirem-se frágeis num momento tão delicado; porque é muito difícil se contrapor a um doutor que diz que seu bebê “poderá entrar em sofrimento se não fizer uma cesariana”, elas aceitaram a cirurgia e tiveram seu parto roubado. Se todas as desculpas usadas para fazer cesarianas no Brasil fossem de fato justificativas embasadas e escolhas corretas, o Brasil não exibiria as estatísticas que nos envergonham. Ou seria preciso fazer uma investigação sobre o que haveria de errado com o corpo das brasileiras, que já não conseguiriam parir seus bebês pelo método natural.

É possível questionar se, no caso de Adelir, a cesariana não era mesmo necessária. Se o que aconteceu com ela não teria sido dificuldade de aceitar seus limites, incapaz de abrir mão do seu desejo por um parto normal. Se Adelir não teria tido um surto de onipotência, tão comum no nosso tempo em que supostamente tudo pode. Mas não parece ser esse o caso. Mais tarde, Adelir diria ao jornal Zero Hora: “Não era uma questão de vaidade. Era uma questão de saúde. Eu nunca descartei a cesariana, mas queria que essa fosse a última alternativa”.

Não sou favorável a demonizações, elas costumam empobrecer o debate. As médicas que deram início ao processo de sujeitação de Adelir estão inscritas numa tradição da medicina que dá ao médico o poder de controlar os corpos. Talvez sequer tenham questionado as relações produzidas por essa ideologia algum dia – ou mesmo tenham suspeitado de que precisassem questionar. Mas, ainda assim, podemos supor que também para elas tenha sido uma decisão angustiante, que também para elas não foi e não tem sido fácil ter obrigado uma mulher a se submeter a uma cirurgia, com todos os riscos de uma cirurgia, contra a sua vontade, e arrancar um bebê do seu corpo. Talvez elas tenham ficado com medo de serem responsabilizadas se algo acontecesse com Adelir e seu bebê. Talvez não tenham sido ensinadas a conduzir um parto normal nessas circunstâncias. Talvez, nesse quadro, só soubessem fazer uma cesariana.

Acho difícil acreditar que quisessem o mal de Adelir e sua filha. Obviamente, essas ponderações não as eximem da responsabilidade por seus atos. Mas, se quisermos avançar nesse debate, é preciso olhar pessoas como pessoas. Nem Adelir é uma heroína, nem as médicas, o promotor e a juíza são vilões. Nem as médicas, a juíza e o promotor são heróis, nem Adelir é uma vilã. Duas narrativas opostas que se digladiam nas redes sociais como se a vida fosse fácil assim.

O fato, aqui, é que as médicas Andreia Castro e Joana de Araújo mostraram-se incapazes de aceitar a escolha de Adelir. Buscaram na justiça os meios para impor sua decisão de fazer uma cesariana. Pediram ajuda para restaurar seu poder que, com uma recusa, Adelir tinha esvaziado. A justificativa: preservar a vida da mãe e do bebê, em risco iminente. No início da noite de 31 de março, o promotor de Justiça Octavio Noronha foi contatado pela Secretaria de Saúde de Torres. Por volta das 23 horas, entrou com a ação. Meia hora depois, a juíza Liniane Maria Mog da Silva deu a liminar.

A sequência de atos produziu a cena brutal: Adelir, em trabalho de parto, arrancada de sua casa e, em seguida, alijada do seu corpo. Medicina e Justiça se uniram para submetê-la, tornando público aquilo que é privado. Não fosse nossos olhos viciados em aceitar procedimentos invasivos com naturalidade, quando se inscrevem no âmbito da medicina, ter a barriga cortada e a filha tirada do útero, contra a vontade, seria uma cena de tortura forte até para o cinema. Que isso tenha se passado no aniversário de 50 anos do golpe que instaurou a ditadura civil-militar no Brasil é uma coincidência que pode provocar questões interessantes sobre as relações entre o Estado e os cidadãos na democracia.

A partir desse momento, esses dois poderes – a Medicina e a Justiça – constroem uma narrativa para Adelir, que pretendem impor como história única. Ela seria a mulher ignorante e irresponsável que botou em risco a vida da própria filha por conta de um capricho. Dessa construção mais elaborada para uma outra, a da “louca que tentou matar o próprio bebê”, foi só um clique nas redes sociais. É essa a mensagem de uma decisão – e de uma ação – como essa. Sabemos bem o que significa uma mãe supostamente não proteger o filho numa cultura como a nossa, que coloca a infância no pedestal do futuro. Precisamos entender, portanto, o tamanho do rótulo que tentaram – e talvez consigam – colar em Adelir, assinalando ela e todos os seus filhos, especialmente essa, que acabou de nascer, para toda a vida. Se conseguirem impor esse estigma, a perversão é quase sem nome.

No passado bem recente teria sido fácil impor essa história única sobre Adelir. No passado bem recente talvez Adelir não tivesse ousado discordar de um médico. Essa é uma mudança gigantesca. Nos últimos anos, milhares de mulheres no Brasil inteiro criaram fóruns de discussão, escreveram livros, fizeram filmes, produziram blogs, organizaram-se também institucionalmente para retomar a posse do próprio corpo na gestação e tirar o parto normal da marginalidade a que foi condenado pelo sistema de saúde brasileiro. Reabilitar o parto como ato natural e potente da mulher – e não como doença na qual os corpos são sujeitados a um outro. São mulheres de todas as profissões, e também médicas, cientistas, enfermeiras, parteiras e doulas. Nesses espaços, mulheres de todos os cantos do país e do mundo trocam informações como, num passado mais distante, antes que esse conhecimento fosse destituído pelo saber médico, consultavam mães, tias e avós. Quando necessário, promovem manifestações e atos públicos em favor do parto humanizado – e contra a violência obstétrica.

Renata Penna/Divulgação

Renata Penna/Divulgação

Essa rede tem sustentado simbolicamente Adelir e difundido uma narrativa que se contrapõe à outra, a da mãe desnaturada que precisou ser levada pela polícia ao hospital para fazer uma cesariana para salvar o bebê. A hashtag “SomosTodasAdelir” ganhou representação nas redes sociais.

Na sexta-feira (11/4), foram promovidos atos públicos em várias cidades brasileiras, denunciando o que aconteceu com Adelir como violação de direitos, violação concreta do corpo. Nessa narrativa construída nas redes sociais e nas ruas, Adelir é uma mulher violada pelo Estado.

Em São Paulo, dezenas de mulheres, muitas delas com bebês de colo, outras com barrigão de grávida, passaram a noite em vigília diante da universidade de direito mais tradicional do estado, no Largo São Francisco. Mulheres com diagnóstico semelhante ao de Adelir revezavam-se no microfone, na manhã de sábado, enquanto bandejas com pedaços de bolo passavam, como se estivessem numa visita de tia. Com a filha de 5 anos pela mão, Luka Franca, 28 anos, contou como, depois de três horas e meia de trabalho de parto, conheceu a menina pelo bumbum, já que ela estava sentada. “Vi aquele bumbumzinho roxo em formato de coração, parecia um picolé de desenho animado”, comparou, toda emocionada. “Esta é a Rosa. Mesmo estando sentada, ela nasceu com cabeça”, brincou. Tatiana Ubinha anunciou: “Depois de três cesáreas desnecessárias, eu rompi com o sistema”. Teve o quarto bebê, que carregava no colo, de parto normal, e está grávida do quinto. Natalia Tribeck contou que fez parto normal depois de duas cesáreas: “Descobri que meu corpo não era falho, o que era falho era o sistema”.

Na tentativa de desqualificá-las, muitos chamam essas mulheres de “as loucas do parto normal”. Poderia ser um elogio, não fosse o fato de que a tarja de “louca” sempre serve, a quem a coloca num outro, como uma desculpa para não escutar o que este tem a dizer. Sempre que as mulheres reivindicam a posse do seu corpo, ou são “loucas” ou são “vagabundas”. Seguidamente, os dois. Quando lutam por protagonismo e autonomia, em especial na gravidez, a estratégia é transformá-las em “exageradas”, “fanáticas”, “histéricas”. E, assim, tentar esvaziar seu discurso. Nesse embate, de novo essa tática ficou clara.

Renata Penna/Divulgação

Renata Penna/Divulgação

Adelir não é uma ativista dessa causa. Apenas uma mulher que ousou sonhar com um parto normal – aspiração ambiciosa no Brasil das cesarianas.

Desde que o caso se tornou público, visões se digladiam em artigos que defendem a necessidade ou não da cesariana de Adelir, ora com argumentos médicos e científicos, ora com argumentos jurídicos. Essa discussão é importante. Mas apenas se as causas que fizeram do Brasil um dos líderes mundiais de cesarianas forem de fato enfrentadas pelo poder público e pela sociedade, para além das intenções e do marketing eleitoreiro. Esse debate é tão acirrado porque, além dos poderosos interesses de mercado, o que está em disputa é algo muito mais profundo: o controle sobre o corpo das mulheres.

De qualquer modo, seja qual for a posição de cada um nesse debate, é preciso pactuar que há algo muito errado com os sistemas de saúde e de justiça de um país quando a única solução encontrada é arrancar uma grávida de sua casa no meio da noite e forçá-la a fazer uma cesariana. Há algo muito grave acontecendo com os representantes desses poderes quando defendem que uma violência como essa é legítima.

Nesse sentido, vale reproduzir aqui a frase estarrecedora do obstetra Corintio Mariani Neto, secretário da Associação de Obstetrícia e Ginecologia do Estado de São Paulo (Sogesp), em entrevista à Folha de S. Paulo:

– Ainda bem que alguém com bom senso entrou na justiça para resguardar a vida dela e do bebê. Se mais (juízes) agissem assim, o médico estaria mais protegido para trabalhar com gestantes.

O grifo é meu. Quando um obstetra e representante de uma entidade de obstetrícia defende que é preciso a intervenção da justiça (e por consequência da polícia), para que médicos trabalhem com mulheres grávidas durante o parto, é hora de parar tudo e rever os princípios. Inclusive os nossos, já que a declaração não causou nem um décimo da estranheza que deveria.

Adelir Lemos de Goes foi violada pelo Estado. Nos seus direitos, no seu corpo. Arrancaram-lhe não só a filha do útero, mas também a esvaziaram de poder em um dos momentos mais radicais da vida de uma mulher. Submeteram-na, coagiram-na. Por ser sujeito e reivindicar seus direitos, ela foi reduzida pela força a um objeto de intervenção médica e jurídica. Mas, Adelir, eu gostaria de dizer a você: que enorme potência teve o seu “não”.

(Publicado no El País em 14/04/2014)

Kaique e os rolezinhos: o lugar de cada um

A lógica que criminalizou os rolezinhos é a mesma que levou a polícia a registrar a morte do adolescente Kaique Augusto Batista dos Santos como suicídio, antes de qualquer investigação

 

A morte do adolescente Kaique Augusto Batista dos Santos e os rolezinhos não coincidem apenas no calendário. Dizem de um lugar: onde é “natural” encontrar um jovem negro e pobre, onde não é “natural” encontrá-lo. A lógica que determina a criminalização prévia dos rolezinhos e a não criminalização prévia da morte de Kaique – acontecimentos que moveram São Paulo e parte do país nos últimos dias – é a mesma. Ela indaga por territórios e revela leis não escritas.

Primeiro, quem é Kaique, já que sobre os rolezinhos estamos bem mais informados. O adolescente foi encontrado morto no sábado (11/1), próximo a um viaduto da Avenida Nove de Julho, na região central de São Paulo. Os dentes e os dedos estavam quebrados, havia um ferimento numa perna. Para a família, uma barra atravessada, que depois teria sido retirada. Para policiais, uma fratura exposta. Tinha 16 anos – e são os jovens os que mais morrem por assassinato no Brasil. Era homossexual – as mortes por homofobia cresceram 11% em 2012, comparado ao ano anterior. Era negro, como mais de 70% das vítimas de homicídio no país. É razoável esperar que suas circunstâncias, assim como as circunstâncias em que seu corpo foi encontrado, motivassem suspeitas de que pudesse ter sido assassinado. Não foi, porém, o que aconteceu. A polícia de São Paulo registrou no boletim de ocorrência: “suicídio”.

Não há, neste momento, como afirmar se Kaique foi assassinado ou se suicidou. Para afirmar, tanto um homicídio quanto um suicídio, é preciso uma investigação. E séria. Há suicídios que, pelas circunstâncias e pelas evidências, são facilmente comprováveis. Não parece ser o caso de Kaique. A questão que se impõe é: por que foi registrada como suicídio uma morte que até hoje, mais de uma semana depois, não foi esclarecida?

Na sexta-feira (17/1), centenas de pessoas fizeram um ato contra a homofobia, no centro de São Paulo, exigindo esclarecimentos sobre a morte de Kaique. Entre os cartazes, um referia-se à manutenção, sem qualquer alteração, do papel da polícia da ditadura civil-militar na atual democracia: “Desde 64 quem é torturado e assassinado foi suicidado”. A verdade – ou pelo menos parte dela – é que, não fosse a inconformidade da família, a divulgação pela imprensa e, principalmente, a revolta massiva nas redes sociais, a morte de Kaique jamais seria investigada. Ainda que a polícia possa negar que funcione assim, “suicídio”, no boletim de ocorrência, significa, na prática, caso resolvido. Encerrado, portanto, sem investigação.

Pressionada pela família de Kaique e por ativistas da luta contra a homofobia, a polícia paulista segue repetindo que não há indícios de assassinato, como repetia desde o momento em que policiais botaram os olhos no corpo do garoto e concluíram por suicídio. A Secretaria de Direitos Humanos, ligada à presidência da República, enviou para São Paulo o coordenador de Promoção dos Direitos dos LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros) para acompanhar o caso. Em nota, afirmou: Kaique foi “brutalmente assassinado” e há indicação de que “se trata de mais um crime de ódio e intolerância motivado pela homofobia”.

Neste momento, há uma ministra do PT (Maria do Rosário, dos Direitos Humanos) desmentindo a polícia do PSDB em ano de eleição. Nem assim, as provas irrefutáveis que poderiam respaldar o registro de suicídio apareceram. Ainda que, contra as aparências e a crença da maioria, a polícia paulista consiga provar que Kaique se suicidou, a questão crucial dessa história continua rigorosamente a mesma. Não se trata apenas de saber se a morte de Kaique foi assassinato ou suicídio, o que está perto de virar um FlaXFlu político-partidário, mas sim questionar aquilo que já está provado: não havia como saber a causa da morte de Kaique quando a polícia a registrou como “suicídio” no boletim de ocorrência.

E por que o fez?

Há várias hipóteses, inclusive a de reduzir as estatísticas da violência, uma preocupação constante das autoridades, que se acirra em períodos pré-eleitorais. Mas há uma explicação que pode nos ajudar a refletir sobre esse momento agudo que o Brasil vive e que é marcado pelos rolezinhos, o fenômeno mais interessante do momento, pela riqueza (inclusive contraditória) de seus significados.

É nesta esquina simbólica, na indagação sobre o território de cada um, que o caso Kaique e os rolezinhos se encontram. Ao se deparar com um jovem negro e homossexual morto, o corpo flagelado, perto de um viaduto, a polícia tem, sem qualquer investigação, a convicção de que não houve um crime. Ao encontrar um grupo de jovens da periferia, a maioria negros, bem vivos dentro de um shopping, a polícia tem a certeza de que, sim, é um crime. Se ainda não cometeram furtos, roubos e arrastões, certamente o farão. Do crime, não são vítimas, mas autores.

No primeiro caso, se Kaique foi de fato assassinado, o crime ficaria impune, não fosse a pressão das redes sociais. No segundo caso, puniu-se um crime que não aconteceu, ao se indiciar jovens que não fizeram nada além de zoar. Discriminou-se centenas de outros, que foram coagidos a se retirar de shoppings por conta de sua cor e de sua aparência, e barrou-se a entrada de outras centenas, também por causa de sua cor e de sua aparência. Sem esquecer daqueles que, como é mostrado em vários vídeos, levaram gravatas, chutes, socos e empurrões da polícia por ousar entrar num shopping.

Por quê?

As respostas são muitas e não tenho a menor chance de esgotá-las aqui. Mas há uma que vale a pena refletir com bastante atenção num momento em que o apartheid do Brasil é escancarado pelo fenômeno dos rolezinhos, independentemente do fato de esta ser ou não a intenção dos meninos que os promovem. O que une o caso Kaique e os rolezinhos é não só, mas principalmente, o lugar. A naturalização do lugar de cada um numa sociedade cindida, como continua a ser a brasileira.

Debaixo de um viaduto, um jovem negro morto não chama a atenção. Se for possível perceber pelas roupas, cabelo e acessórios que é gay, menos ainda. Não é estranho o suficiente para que a polícia acredite que precise estranhar. É, talvez, onde parte da polícia e parte da sociedade espera – e muitos até torcem, como provam os comentários homofóbicos e racistas que também proliferam na internet – que acabe um adolescente negro e homossexual que saiu de uma balada gay do centro de São Paulo. Para tanto, basta tascar no boletim de ocorrência, já que é preciso dizer alguma coisa: “suicídio”. E despachar o corpo para o Instituto Médico Legal como indigente, já que Kaique teria perdido os documentos e o celular. Vale registrar ainda que, devido à “superlotação do IML”, o corpo ficou “fora da geladeira” por dias, alcançando um estado de deformação que tornou impossível para a mãe dar um velório ao filho morto. Kaique, portanto, estava no lugar naturalizado para adolescentes com a aparência de Kaique.

Já dentro de um shopping, um grupo de jovens pobres e, em sua maioria negros, está fora de lugar para essa mesma polícia e a sociedade que a gesta, evoca e respalda. O deslocamento, por si só, passa a ser interpretado como um crime, na medida em que essa mobilidade é criminalizada por leis não escritas, mas profundamente introjetadas. Tão introjetadas que o aparato de segurança pública e o judiciário são acionados para mantê-los do lado “certo” – o lado de fora. Tão introjetadas que o fato de não existir crime tem sido espantosamente insuficiente para impedir a criminalização de um movimento de meninos e meninas que querem se divertir e dar uns beijos, mas que, ainda que estejam usando grifes, jamais são reconhecidos como “iguais”, como tendo a “aparência certa”, o cartão invisível que garante a entrada pela porta da frente.

Para os rolezeiros, o crime era estar dentro, quando se esperava que continuassem no lado de fora. Para Kaique, não havia suspeita de crime, porque, para uma parcela da polícia e da sociedade que a legitima, ele estava no lugar previsto (embaixo de um viaduto) e na condição prevista (morto). Para Kaique e para os rolezeiros há um lugar naturalizado para a morte, há um lugar naturalizado para a vida.

Simbolicamente, é o mesmo policial que bota “suicídio” no boletim de ocorrência, diante do corpo flagelado de um menino negro, e aquele que,como contou a jornalista Vanessa Barbara na Folha de S. Paulo, repetia no ouvido dos garotos no Shopping de Itaquera: “Vou arrebentar vocês. Vou arrebentar vocês”, e logo desferiu um chute num menino. Ainda que, por estrato social, a maioria dos policiais esteja mais próxima dos rolezeiros do que dos frequentadores habituais dos shoppings, como mostra a brilhante charge de Angeli, na qual um dos garotos, encostados na parede pela polícia durante um rolezinho, olha para trás e diz ao PM: “Pai?!”. Ainda – ou talvez por causa disso.

Nossa polícia é muito doente. Porque nossa sociedade é muito doente. Apodrecemos em praça pública, a maioria, outros em seus bunkers privados. Mas acredito que vivemos tempos melhores porque, até bem poucos anos atrás (ou talvez meses), o registro da morte de Kaique como suicídio não seria questionado. E nunca saberíamos o que houve porque não existiria pressão suficiente para que a polícia fizesse, de fato, uma investigação. Até poucos anos atrás a decisão dos meninos e meninas da periferia de zoar em massa nos shoppings talvez produzisse só repressão, mas não questionamento e reflexão sobre o Brasil. Ainda que os mesmos de sempre tentem desqualificar e reduzir a importância do fenômeno, pelos motivos óbvios, o embate hoje conta com mais narradores e o nível se elevou. Por paradoxal que pareça, acho que melhoramos porque começamos a sentir o quanto cheiramos mal. Antes, o cheiro estava lá, mas não o reconhecíamos como nosso.

O ano de 2014 começou apressado, com ritmo de meio. Me aparece um bom augúrio. Se há alguma esperança, ainda frágil, delicada, de que alcancemos um estágio civilizatório minimamente aceitável, ela está na capacidade de nos espantarmos com o boletim de ocorrência de Kaique e com a reação violenta e discriminatória contra os rolezinhos. Com a não criminalização prévia da morte de um e a criminalização prévia da vida de outros. Há momentos – e este é um deles – que só o espanto salva.

(Publicado no El País em 20/01/2014)

 

Russomanno e a vulgaridade do desejo

O “patrulheiro do consumidor” lidera em São Paulo porque, se a política é de mercado, ele pode convencer como mercadoria

Como se define um povo? De várias maneiras. A principal, me parece, é pela qualidade do seu desejo. É por este viés que também podemos compreender o fenômeno Celso Russomanno (PRB). Como um homem que se tornou conhecido por bolinar mulheres na cobertura de bailes de carnaval e como “patrulheiro do consumidor” em programa da TV Record, apoiado pela Igreja Universal do Reino de Deus, torna-se líder de intenções de votos na maior cidade do Brasil?

Acredito que parte da resposta possa estar no desejo. Na vulgaridade do nosso desejo. No que consiste o desejo das diferentes camadas da população, seja o topo da pirâmide, a classe média tradicional, o que tem sido chamado de “nova classe média” ou classe C. Para além das diferenças, que são muitas, há algo que tem igualado a socialite que faz compras no Shopping Cidade Jardim, um dos mais luxuosos de São Paulo, ao jovem das periferias paulistanas carentes de serviços públicos de qualidade. E o que é? A identificação como consumidor, acima de todas as maneiras de olhar para si mesmo – e para o outro. É para consumir que boa parte da população não só de São Paulo quanto do Brasil urbano tem conduzido o movimento da vida – e se consumido neste movimento.

Dois textos recentes são especialmente reveladores para nos ajudar a compreender o Brasil atual.

Em sua coluna de 4/9, na Folha de S. Paulo, o filósofo Vladimir Safatle faz uma análise interessantíssima do caso Russomanno. Ele parte do fato de que a ascensão econômica de larga parcela da população no lulismo se dá principalmente pela ampliação das possibilidades de consumo – e não pela ampliação do acesso a serviços sociais de qualidade. Logo, para essa camada da população, os direitos da cidadania são decodificados como direitos do consumidor. Nada mais lógico para representá-la e defender seus interesses do que um prefeito que seja um pretenso “patrulheiro do consumidor”, bancado por uma das igrejas líderes da “teologia da prosperidade”. Russomanno seria, na definição de Safatle, “o filho bastardo do lulismo com o populismo conservador”.

Na ótima reportagem intitulada “O Funk da Ostentação em São Paulo”, o repórter de Época Rafael de Pino conta como se dá a apropriação do funk carioca nas periferias de São Paulo. Preste atenção na abertura da matéria, que reproduzo aqui:

“‘Vida é ter um Hyundai e uma Hornet/10 mil pra gastar, Rolex e Juliet’, canta o paulista MC Danado no funk ‘Top do momento’. Para quem não entendeu, ele fala, na ordem, de um carro, uma moto, dinheiro, um relógio e um par de óculos – um refrão avaliado em R$ 400 mil. Na plateia do show na Zona Leste, região que concentra bairros populares de São Paulo, os versos são repetidos aos berros pelas quase 1.000 pessoas presentes, que pagaram ingressos a R$ 30. O público da sexta-feira é jovem, etnicamente diverso e poderia ser descrito em três palavras: ‘classe C emergente’.”

MC Danado, como nos conta Rafael de Pino, antes de se tornar um astro, trabalhou como office-boy e auxiliar de escritório. Ele diz o seguinte: “Gosto da ostentação, gosto de ostentar. Parte do que canto, eu tenho. Outra parte, desejo e vou conquistar com meu trabalho”. Vale a pena conferir os refrões de outros funkeiros da ostentação, como MC Guimê: “Ta-pa-ta-pa tá patrão, ta-pa-ta-pa tá patrão/Tênis Nike Shox, Bermuda da Oakley, Olha a situação”. Ou MCs BackDi e Bio-G3: “É classe A, é classe A/quando o bonde passa nas pistas geral, tá ligado que é ruim de aturar/É classe A, é classe A/Nós tem carro, tem moto e dinheiro”.

MC Menor, outra estrela ascendente, explica: “Enxergo o mundo como meu público enxerga. Nasci na comunidade, sei que lá ninguém quer cantar pobreza e miséria”. Não por acaso, é em São Paulo que o funk se torna uma expressão do desejo de consumo da juventude emergente das periferias.

Ao ascender economicamente, a “nova classe média” parece se apropriar da visão de mundo da classe média tradicional – talvez com mais pragmatismo e certamente com muito mais pressa. Em vez de lutar coletivamente por escola pública de qualidade, saúde pública de qualidade, transporte público de qualidade, o caminho é individual, via consumo: escola privada e plano de saúde privado, mesmo que sem qualidade, e carro para se livrar do ônibus, mesmo que fique parado no trânsito. O núcleo a partir do qual são eleitas as prioridades não é a comunidade, mas a família.

Se no passado recente o rap arrastou multidões nas periferias de São Paulo com um discurso fortemente ideológico contra o mercado, hoje o espaço é parcialmente ocupado pelo “funk da ostentação” e seu discurso de que uma vida só ganha sentido no consumo. As marcas de uma vida não se dão pela experiência, mas se adquirem pela compra: as marcas da vida são grifes de luxo, segundo nos informam as letras do funk paulista. Alguns dos grandes nomes do rap engajado do passado também podem ser vistos hoje anunciando produtos na TV com desembaraço – o que também quer dizer alguma coisa.

É importante observar, porém, que aquilo que eu tenho chamado aqui de vulgaridade do desejo não é uma novidade trazida pela “nova classe média”. Ao contrário, a influência tem sinal trocado. O que os emergentes da classe C tem feito é se apropriar da vulgaridade do desejo das elites. O funk da ostentação de MC Danado, ao recitar grifes e fazer uma ode ao consumo, pode estar na boca de qualquer socialite que possamos entrevistar agora no corredor de um dos shoppings de luxo.

Neste contexto, a vulgaridade do desejo tem em Russomanno sua expressão mais bem acabada na política. Assim como na religião encontra expressão em parte das igrejas evangélicas neopentecostais e sua teologia do compre agora para ganhar agora. Nesta eleição de São Paulo, testemunhamos uma aliança e uma síntese da nova configuração do Brasil – possivelmente menos transitória do que alguns acreditam ser.

Russomanno não inventou a vulgaridade do desejo – apenas a explicitou e tratou de encarná-la. Seus oponentes têm uma biografia muito mais relevante, assim como partidos mais sólidos. Mas parecem ter perdido essa vantagem junto a setores da população no momento em que se renderem à lógica do consumo e viraram também eles um produto eleitoral. Pela adesão à política de mercado, perderam a chance de representar uma alternativa, inclusive moral.

José Serra (PSDB) tem feito quase qualquer coisa para conquistar o apoio das igrejas na tentativa de vencer as disputas eleitorais. Basta lembrar como um dos exemplos mais contundentes o falso debate do aborto estimulado por ele na última eleição presidencial, na ânsia de ganhar o voto religioso. E Fernando Haddad (PT), que se pretende “novo”, antes do início oficial da campanha já tinha abraçado o velho Maluf. Para quê? Para ter mais tempo de TV – o lugar por excelência no qual os produtos são “vendidos” aos consumidores.

Quem transformou eleitores em consumidores de produtos eleitorais não foi Celso Russomanno. Ele apenas aproveitou-se da conjuntura propícia – e não perdeu a oportunidade ao perceber que os outros reduziram-se a ponto de jogar no seu campo. Afinal, de mercadoria Russomanno entende.

É bastante interessante que entre os mais perplexos diante deste novo Brasil, representado pelo fenômeno Russomanno, estejam o PT e a Igreja Católica. Ambos, porém, estão no cerne da mudança que agora se desenha com maior clareza.

A “era” Lula marcou e segue marcando sua atuação também pelo esvaziamento dos movimentos sociais – e da saída coletiva, construída e conquistada que foi decisiva para a formação do PT. Também estimulou sem qualquer prurido o personalismo populista na figura do líder/pai. Assim como na campanha que elegeu Dilma Rousseff, a sucessora de Lula no governo foi apresentada como filha do pai/mãe do povo. Em nenhum momento, nem o PT nem Lula pareceram se importar de verdade com o fato de que os numerosos militantes que no passado ocupavam os espaços públicos com suas bandeiras e seu idealismo foram gradualmente sendo substituídos por cabos eleitorais pagos, em mais uma adesão à lógica de mercado.

A cúpula da Igreja Católica no Brasil, por sua vez, atendendo às diretrizes do Vaticano, esforçou-se nas últimas décadas para esvaziar movimentos como a Teologia da Libertação, que representavam uma inserção do evangelho na política pelo caminho coletivo e pela formação de base. Esforçou-se com tanto afinco que perseguiu alguns de seus representantes mais importantes – e marginalizou outros. Mas parece que nem o PT de Lula nem a CNBB têm compreendido que o fenômeno Russomanno também foi gerado no ventre de suas guinadas conservadoras – e, no caso do PT, de suas alianças pragmáticas e da sua atuação para transformar a política num balcão de negócios. Sem esquecer, claro, que o PRB de Russomanno é da base de apoio do governo Dilma.

Quando a presidente do país dá o Ministério da Cultura para Marta Suplicy, para que ela suba no palanque do candidato do PT à prefeitura de São Paulo, por mais que os protagonistas aleguem apenas coincidência, é só política de mercado que enxergamos. E tudo piora quando Marta invoca uma trindade político-religiosa no palanque de Haddad: “O trio é capaz de alavancar (a candidatura de Haddad): a presidente Dilma, o Lula e eu. Eu, porque tenho o apelo de quem fez; eu sou a pessoa que faz. O Lula porque é um ‘deus’ e a presidente Dilma porque é bem avaliada. Então, com a entrada desse trio, vai dar certo”.

Diante do que está aí, feito e dito, por que o eleitor vai achar que Russomanno é pior? Ou que as alternativas a ele são de fato diferentes?

O mais importante não é atacar Celso Russomanno, mas compreender o que ele revela do Brasil atual. O fenômeno Russomanno pode ter algo a nos ensinar. Quem sabe sua liderança nas pesquisas eleitorais possa mostrar aos futuros candidatos que ética e coerência na política valem a pena se quiserem se tornar alternativas reais para uma parcela do eleitorado. Ou que se nivelar por baixo em nome dos fins pode ser um tiro no pé – tanto quanto se aliar com qualquer um. E talvez o fenômeno Russomanno possa ensinar aos futuros governantes que um povo se define pela qualidade do seu desejo. E desejo só se qualifica com educação.

Sempre se pode lamentar que o eleitor deseje o que deseja, mas o eleitor – em geral subestimado – sabe o que quer. Se a maioria acredita que tudo o que dá sentido a uma vida humana pode ser comprado num shopping, então São Paulo – e o Brasil – merecem Celso Russomanno.

(Publicado na Revista Época em 17/09/2012)

 

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