Índios, os estrangeiros nativos

A dificuldade de uma parcela das elites, da população e do governo de reconhecer os indígenas como parte do Brasil criou uma espécie de xenofobia invertida, invocada nos momentos de acirramento dos conflitos

A volta dos indígenas à pauta do país tem gerado discursos bastante reveladores sobre a impossibilidade de escutá-los como parte do Brasil que têm algo a dizer não só sobre o seu lugar, mas também sobre si. Os indígenas parecem ser, para uma parcela das elites, da população e do governo, algo que poderíamos chamar de “estrangeiros nativos”. É um curioso caso de xenofobia, no qual aqueles que aqui estavam são vistos como os de fora. Como “os outros”, a quem se dedica enorme desconfiança. No processo histórico de estrangeirização da população originária, os indígenas foram escravizados, catequizados, expulsos, em alguns casos dizimados. Por ainda assim permanecerem, são considerados entraves a um suposto desenvolvimento. A muito custo foram reconhecidos como detentores de direitos, e nisso a Constituição de 1988 foi um marco, mas ainda hoje parecem ser aqueles com quem a sociedade não índia tem uma dívida que lhe custa reconhecer e que, para alguns setores – e não apenas os ruralistas –, seria melhor dar calote. Para que os de dentro continuem fora é preciso mantê-los fora no discurso. É isso que também temos testemunhado nas últimas semanas.

Entre os exemplos mais explícitos está a tese de que não falam por si. Aos estrangeiros é negada a posse de uma voz, já que não podem ser reconhecidos como parte. Sempre que os indígenas saem das fronteiras, tanto as físicas quanto as simbólicas, impostas para que continuem fora, ainda que dentro, é reeditada a versão de que são “massas de manobra” das ONGs. Vale a pena olhar com mais atenção para essa versão narrativa, que está sempre presente, mas que em momentos de acirramento dos conflitos ganha força.

Desta vez, a entrada dos indígenas no noticiário se deu por dois episódios: a morte do terena Oziel Gabriel, durante uma operação da Polícia Federal em Mato Grosso do Sul, e a paralisação das obras de Belo Monte, no Pará, pela ocupação do canteiro pelos mundurucus. O terena Oziel Gabriel, 35 anos, morreu com um tiro na barriga durante o cumprimento de uma ordem de reintegração de posse em favor do fazendeiro e ex-deputado pelo PSDB Ricardo Bacha, sobre uma terra reconhecida como sendo território indígena desde 1993. Pela lógica do discurso de que seriam manipulados pelas ONGs, Oziel e seu grupo, se pensassem e agissem segundo suas próprias convicções, não estariam reivindicando o direito assegurado constitucionalmente de viver na sua área original. Tampouco estariam ali porque a alternativa à luta pela terra seria virar mão de obra barata ou semi-escrava nas fazendas da região, ou virar favelados nas periferias das cidades. Não. Os indígenas só seriam genuinamente indígenas se aceitassem pacífica e silenciosamente o gradual desaparecimento de seu povo, sem perturbar o país com seus insistentes pedidos para que a Constituição seja cumprida. Aí já há uma pista para o que alguns setores da sociedade brasileira entendem como identidade “verdadeira”: ser índio seria, quando não desaparecer, ao menos silenciar.

No caso dos mundurucus, questionou-se exaustivamente a legitimidade de sua presença no canteiro de obras da hidrelétrica de Belo Monte, por estarem “a 800 quilômetros de sua terra”. De novo, os indígenas estariam extrapolando fronteiras não escritas. Os mundurucus estavam ali porque suas terras poderão ser afetadas por outras 14 hidrelétricas, desta vez na Bacia do Tapajós, e pelo menos uma delas, São Luiz do Tapajós, deverá estar no leilão de energia previsto para o início de 2014. Se não conseguirem se fazer ouvir agora, eles sabem que acontecerá com eles o mesmo que acabou de acontecer com os povos do Xingu. Serão vítimas de um outro discurso muito em voga, o da obra consumada. A trajetória de Belo Monte mostrou que a estratégia é tocar a obra, mesmo sem o cumprimento das condicionantes socioambientais, mesmo sem a devida escuta dos indígenas, mesmo com os conhecidos atropelamentos do processo dentro e fora do governo, até que a usina esteja tão adiantada, já tenha consumido tanto dinheiro, que parar seja quase impossível.

Adiantaria os mundurucus gritarem sozinhos lá no Tapajós, para serem contemplados no seu direito constitucional, respaldado também por convenção da Organização Internacional do Trabalho, de serem ouvidos sobre uma obra que vai afetá-los? Não. Portanto, eles foram até Belo Monte se fazer ouvir. Mas, como são indígenas, alguns acreditam que não seriam capazes de tal estratégia política. É preciso resgatar, mais uma vez, o discurso da manipulação – ou da infiltração. Já que, para serem indígenas legítimos, os mundurucus teriam de apenas aceitar toda e qualquer obra – e, se fossem bons selvagens, talvez até agradecer aos chefes brancos por isso.

Quando os indígenas levantam a voz, a voz não seria sua. Seria de um outro, a quem emprestam o corpo. Ninguém é ingênuo a ponto de acreditar que o discurso dos indígenas como massa de manobra seja inocente. Ele serve a muitos interesses, inclusive o de tirar do foco os reais interesses sobre as terras indígenas de quem o difunde. Mas esse discurso não teria ressonância se não tivesse a adesão de uma parte significativa da população brasileira. E esta adesão se dá, me parece, por essa espécie de xenofobia invertida. Estes “estrangeiros nativos” ameaçariam um suposto progresso, já que seu conhecimento não é decodificado como um valor, mas como um “atraso”, sua enorme diversidade cultural e de visões de mundo não são interpretadas como riqueza e possibilidades, mas como inutilidades. Neste sentido, há uma frase bastante reveladora de como esse olhar – ou não olhar – contamina amplas parcelas da sociedade, inclusive no governo. Ao falar em uma audiência pública na Câmara dos Deputados, em dezembro passado, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, disse que sua pasta atendia “da toga à tanga”. Entre os dois extremos, podemos ver em qual deles o ministro situa o ápice da civilização e também o seu oposto.

Há ainda uma dupla invocação do estrangeiro nesse discurso, já que a única coisa pior do que ser “massa de manobra” de ONGs nacionais seria ser das estrangeiras. Evocar a ameaça externa parece sempre funcionar, como naqueles SPAMs, que volta e meia reaparecem, de que “os gringos estão invadindo a Amazônia” – esta também, tão nossa que podemos destruí-la, tarefa a que temos nos dedicado com afinco. Ao denunciar uma suposta apropriação do corpo simbólico dos indígenas por outros, o que se revela, de fato, é a frustração porque esse corpo não se deixa expropriar e manipular pelas elites como antes. Porque apesar de todas as violências, há uma voz que ainda escapa – e que demanda o reconhecimento de seu corpo-terra, de seu pertencimento. Aquele que é visto como o de fora se torna um incômodo quando diz que é parte.

Vale a pena prestar atenção em quem amplifica o discurso dos indígenas como “massa de manobra”, para verificar que fazem exatamente o que acusam outros de fazer: afirmam o que os indígenas, todos eles, precisam e querem. Parece haver um consenso, inclusive, de que o verdadeiro desejo dos indígenas seria se tornar um trabalhador assalariado e urbano ou, pelo menos, o beneficiário de algum programa de transferência de renda do governo.

Nesta posição, eles não atrapalhariam ninguém – e menos ainda os produtores rurais. Este é o momento chave para a entrada de outro discurso recorrente: o de que os indígenas querem terra “demais”. Basta fazer as contas, como fez o jornalista Fabiano Maisonnave, na Folha de S. Paulo: com uma população de 28 mil indígenas em Mato Grosso do Sul, os terenas têm sete reservas, somando cerca de 20 mil hectares; já o produtor rural Ricardo Bacha, em cuja fazenda foi morto o terena Oziel Gabriel, tem cerca de 6.300 hectares, dos quais 800 em litígio. Se é de concentração de terra na mão de poucos que se pretende falar, há muitos números ilustrativos que podem ser citados. Outro dado interessante vem de uma pesquisa da Embrapa, citada em artigo do engenheiro florestal Paulo Barreto, no site O Eco: há 58,6 milhões de hectares de pastos degradados pela pecuária, o equivalente a 53% da área total de terras indígenas. “A Embrapa tem demonstrado que já existem as tecnologias para aumentar a produtividade dos pastos degradados. Assim, ocupar terra indígena é, além de inconstitucional, prova de incompetência”, afirma Barreto. A Embrapa é um dos novos atores que deverão ser chamados para opinar sobre as demarcações, numa manobra para esvaziar a Funai e agradar a bancada ruralista.

O lugar de estranho indesejado,supostamente sem espaço no Brasil que busca o desenvolvimento, tem permitido todo o tipo de atrocidades contra indivíduos e também contra etnias inteiras ao longo da história. Seria muito importante que cada brasileiro reservasse meia hora ou menos do seu dia para ler pelo menos as primeiras 16 páginas do resumo do Relatório Figueiredo, um documento histórico que se acreditava perdido e que foi descoberto no final de 2012 por Marcelo Zelic, vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais, de São Paulo. No total, o procurador Jáder Figueiredo Correia dedicou 7 mil páginas para contar o que sua equipe viu e ouviu. A íntegra também está disponível na internet.

O relatório, datado de 1968, documentou o tratamento dado aos povos indígenas pelo extinto Serviço de Proteção aos Índios (SPI). Entre os crimes, cujos responsáveis foram nominados, mas jamais punidos, estão os “castigos” infligidos pelos funcionários aos indígenas, como crucificações e uma tortura conhecida como “tronco”, na qual a vítima tinha o tornozelo triturado. Crianças eram vendidas para abusadores, mulheres, estupradas e prostituídas. Duas aldeias de pataxós, na Bahia, foram dizimadas para atender aos interesses de políticos de expressão nacional da época.Uma nação indígena inteira foi extinta por fazendeiros, no Maranhão, sem que os funcionários sequer tentassem protegê-la. O procurador cita a possível inoculação do vírus da varíola em uma etnia de Itabuna, na Bahia, para que as terras fossem liberadas para “figurões do governo”, assim como o extermínio de um grupo de cintas-largas, em Mato Grosso, de várias formas: atirando dinamite de um avião e adicionando estricnina ao açúcar, além de caçá-los e matá-los com metralhadoras. O massacre ocorreu em 1963, ainda no período democrático, portanto, e os que ainda assim sobreviveram foram rasgados com o facão, “do púbis a cabeça”.

A lista é longa. É importante ressaltar que tudo isso não se passou na época de Pedro Álvares Cabral, nem mesmo no tempo dos bandeirantes, mas na década de 60 do século XX. Praticamente ontem, do ponto de vista histórico. Cabe enfatizar ainda que os crimes foram infligidos aos indígenas, num comportamento disseminado por todo o país, por representantes do Estado brasileiro. Menciono o relatório não só porque acredito que precisamos conhecê-lo, mas porque ele demonstra que tipo de olhar permite que atrocidades dessa ordem tenham se tornado uma política não oficial, mas exercida como se fosse – e não por um único psicopata, mas por dezenas de funcionários e suas esposas, com o apoio e às vezes a ordem da direção do órgão criado para proteger os povos tradicionais. Para estas pessoas, o corpo dos indígenas era território a ser violado, como violada foi a sua terra. Como aqueles sem lugar, os indígenas não eram reconhecidos como iguais, nem mesmo como humanos. Eram o que, então? O procurador responde: “Tudo como se o índio fosse um irracional, classificado muito abaixo dos animais de trabalho, aos quais se presta, no interesse da produção, certa assistência e farta alimentação”.

Para quem imagina que este capítulo é parte do passado, vale a pena lembrar que apenas nos últimos dez anos, nos governos Lula-Dilma, foram assassinados 560 indígenas. A Constituição precisa ser cumprida, as demarcações devem ser feitas, os fazendeiros que possuem títulos legais, distribuídos pelo governo no passado, têm direito a ser indenizados pelo Estado. Mas há um movimento maior, mais profundo, que é preciso empreender. Como “estrangeiro nativo”, uma impossibilidade, só é possível perpetuar a violência.É necessário fazer o gesto, também em nível individual, de reconhecer o indígena como parte, não como fora. Para isso é preciso primeiro desejar conhecer, o gesto que precede o reconhecimento. Só então o Brasil encontrará o Brasil.

(Publicado na Revista Época em 10/06/2013)

 

À margem do pai

Na floresta amazônica, um homem confronta sua solidão quando um filho seu é picado por uma cobra, o outro por escorpião. Como salvá-los sem nenhum acesso à saúde? O dia a dia dos protetores da Terra do Meio, onde não morrer é um golpe de sorte

Prostrado diante dos dois filhos agonizantes, Antonio da Rocha se descobre só. Sua brasilidade é de papel. À beira de um rio da Amazônia, ele está à margem da Constituição. Na Terra do Meio, no oeste do Pará, Antonio parece o personagem de um quadro de Portinari, um homem da cor do tronco das árvores, por volta de seus 40 e poucos anos, feito só de músculos. Está cercado pela mulher e por filhos que não o chamam “meu” pai, mas “o” pai. Antonio é o pai impotente que chora na noite do mundo.

É quinta-feira, 28 de março. E agora vamos precisar voltar algumas horas no tempo.  Avistamos Antonio e os filhos mais velhos movendo-se como gatos humanos na mata. Nas costas eles trazem o jamanxim, um cesto trançado em palha para carregar os frutos da floresta. Estão embrenhados na selva para catar patauá, de cuja semente se extrai óleo, e açaí, para fazer vinho para a Sexta-Feira Santa. São homens que não estão na floresta – são floresta. É por gente como eles, que é onde muitos apenas estão, que a Terra do Meio ainda resiste.

A tragédia acontecerá daqui a alguns minutos, mas vale a pena nos afastarmos do quadro enquanto eles evolucionam pela floresta. Agora há só verde a perder de vista, um verde quase opressor, um verde que uma vida inteira não é suficiente para esquecer. A Terra do Meio é assim chamada por se estender entre dois grandes maciços de terras indígenas, e entre dois rios, o Xingu e o Iriri. Essa geografia dificultou a devastação oficial, promovida pela ditadura militar nos anos 70, e retardou a devastação não oficial, promovida pelos grileiros ao longo das décadas – e ainda neste exato momento. Mas se a Terra do Meio é hoje uma das regiões amazônicas mais preservadas, com cerca de 90% da floresta em pé, é ao mesmo tempo o centro de um sangrento conflito por terras que a hidrelétrica de Belo Monte só fez piorar.

Agora falta apenas um minuto para a tragédia. Pode parecer uma banalidade aqueles homens coletando frutos numa tarde de quinta-feira. Mas a banalidade é uma ilusão. Antonio pertence a uma comunidade formada por descendentes de soldados da borracha arrancados do Nordeste quando o preço do látex estava em alta e abandonados na mata quando o preço caiu. Esses ribeirinhos extrativistas firmaram resistência quando os grileiros tentaram sangrar a floresta no início dos anos 2000, rasgando estradas, queimando casas, expulsando e matando gente como eles. Sem documentos, o Povo do Meio sequer existia para o Brasil oficial. Mas se fez enxergar e, ao fazê-lo, construiu um épico escrito por analfabetos. Conquistou a primeira reserva extrativista da Terra do Meio, a Resex Riozinho do Anfrísio, assinada por Lula em 2004. Com essa certidão de nascimento, o Brasil reconhecia o Brasil.

Agora não há mais tempo para o passado. São 17h30. Antonio e seus filhos movem-se pela floresta como parte, não como fora. Valdeci, de 19 anos, sente a fisgada. Nem vê a cobra. “Viu de viagem, não deu pra conhecer”, explicaria depois Lindomar, de 20. Quase ao mesmo tempo Francenildo, de 13, dá um grito. Tinha sido ferroado por um escorpião. Um “lacrau preto ovado” que Lindomar mata com o terçado. A Valdeci é dada a única dose de Específico Pessoa, um elixir contra veneno de cobra, aranha e escorpião que trazem sempre consigo. Não há mais Específico Pessoa para Francenildo. Ele mesmo ainda não sabe que está quase morto e faz questão de carregar seu jamanxim nas costas até o rio.

Antonio da Rocha já nasceu sabendo que não se pode aguar a picada, que se a ferida molha a vítima pode sentir uma sucessão de choques no corpo que levam à morte. Ele atravessa o charco até a canoa carregando o filho agonizante nos braços. Francenildo vem logo atrás. Num repente, o menino dá um único gemido e cai espumando. Antonio da Rocha tinha acabado de depositar o primeiro filho na canoa quando corre até o segundo, enfia as duas mãos na boca do menino e só tira de lá espuma. A ferida está molhada. Lindomar junta o jamanxim dos irmãos e carrega-os penosamente. “Fiquei esperando por Deus o que ia acontecer.”

Uma tempestade cai sobre eles. Ser alcançado por uma borrasca numa canoa no meio de um rio da Amazônia é como testemunhar uma convulsão do mundo, um princípio e um fim. Antonio da Rocha carrega dois filhos que morrem e sua alma ruge em uníssono com o temporal. Já não há mais dentro e fora, o encerado que cobre a canoa não é capaz de protegê-los. Quando alcançam o porto, a casa e a família, eles viraram água. É água doce, mas Antonio, que tem sobrenome de rocha, chora sal.

É preciso fazer um minuto de silêncio antes de continuar a ler para compreender a solidão de um pai, impotente diante dos filhos que agonizam, no coração não metafórico da floresta amazônica.

(um minuto de silêncio)

Não é possível alcançar a dor de Antonio, porque não a conhecemos. Ou, pelo menos, a maioria de nós tem a fortuna de não a conhecer.

Um dia antes, ele havia dito: “Sou um homem de sorte. Tenho 14 filhos, só perdi um. E todos vivem comigo”. Seis mulheres e sete homens vivos, uma sétima filha morta por “vento caído” ainda bebê. No dia seguinte, ele dirá: “A sorte acabou”.

Há postos de saúde na Terra do Meio, três, construídos por meio de um termo de cooperação entre o Instituto Socioambiental (ISA) e a prefeitura de Altamira. Mas estão vazios. Não há auxiliares de enfermagem, nem equipamentos ou remédios, não há nada nem ninguém. A explicação da prefeitura à imprensa é que não consegue gente qualificada para trabalhar porque a Norte Energia, responsável por Belo Monte, oferece salários muito mais altos, a do governo do estado do Pará é de que essa assistência é atribuição da prefeitura e a do governo federal é de que repassou recursos à prefeitura. Não há postos de saúde, portanto, nem no Riozinho do Anfrísio, nem nas outras reservas extrativistas da Terra do Meio. Quem protege a floresta não é protegido – nem tem assegurado seus direitos constitucionais.

Antonio da Rocha está só de mais de uma maneira. À meia-noite, quando a quinta-feira vira Sexta-Feira Santa, Francenildo morre. Com 13 anos presumidos, aparentando menos de 10, botando sangue pelo nariz e pela boca. A mãe e as irmãs enrolam seu corpo franzino em trapos. Uma fralda com bichinhos, um lençol listrado, um pano branco, uma camiseta amarela. Como se fosse uma múmia egípcia, com as mãos cruzadas sobre o peito. Ou um menino ninja, só com os olhos de fora. Referências do mundo de lá, porque de fato ele é um menino da floresta com a mortalha possível, porque sem mortalha acreditam que não se encontra a porta do céu.

Francenildo é velado sem vela, o que causa imensa aflição ao pai e à mãe. Sem luz também não se encontra a porta do céu. Colocam duas lamparinas, mas é preciso velas para velar direito. Há algum tempo eles se converteram evangélicos, mesmo sem desacreditar nem de rezas de outra tradição, nem de visagens que lhes dão notícias do além. Então alguém coloca uma daquelas Bíblias baratas de capa colorida sobre o corpinho mirrado de Francenildo. De tempos em tempos um dos meninos menores vai lá, resgata a Bíblia e fica folheando o livro fingindo ler. Como Antonio, o pai, todos são analfabetos. Francenildo morre sem letras. E para esta escuridão nada mais poderá ser feito.

Enquanto tudo isso acontece, Valdeci agoniza.

Os vizinhos chegam para o velório em rabetas ou remando suas canoas. Ser vizinho na Terra do Meio é estar a horas de distância, quando muito perto, a um dia quando perto, a alguns dias quando meio perto. Para Valdeci tudo está longe demais, especialmente Altamira, nesta época do ano a dois dias de rio na voadeira, o barco mais veloz, a cinco dias na seca. Longe demais para Valdeci viver. Mas Antonio da Rocha ainda é um homem de sorte, embora possivelmente ele não ouse mais se definir deste modo. Um dia antes haviam passado pela região uma procuradora da República, Thais Santi, que investigava as condições de saúde e de educação na Terra do Meio, e dois pesquisadores a serviço da Associação de Moradores do Riozinho do Anfrísio, Maurício Torres e Daniela Alarcon. Ainda estão nas redondezas, a quatro horas de rabeta, quando são avisados do acontecido. Testemunham o que Maurício assim definiria: “o triste dia a dia de uma gente para quem não morrer é um golpe de sorte”.

Ao descobrir que um menino já tinha morrido e o outro morreria em breve, Thais e Daniela tentam contato com Altamira por rádio, em busca de socorro aéreo. Mesmo para uma procuradora leva horas para se conseguir um helicóptero, que pousa sobre um campo de futebol na terra indígena de Cachoeira Seca, no rio Iriri. É muitas vezes aos índios, que com muita luta conseguiram uma unidade de saúde capenga, que os ribeirinhos extrativistas vão pedir ajuda.

Antonio da Rocha nunca tinha se separado de um filho. Ele é como o seu barco que batizou de “Pai e filhos”, um todo indivisível navegando em águas brutais. Agora um homem-barco partido. Finca seu olhar bem dentro dos olhos de Maurício antes de entregar-lhe Valdeci. Não é um olhar que pode ser descrito. As palavras para descrever esse olhar ainda não foram inventadas.

No alto do barranco homens, mulheres e crianças choram na despedida como se fosse morte. Com Valdeci vai Lindomar, encarregado de representar a família no mundo estrangeiro da cidade. Com um filho nas águas, o outro na terra, Antonio da Rocha soçobra. No velório as conversas dão conta do seu fracasso. “Deu Específico Pessoa para o filho errado”, diz um. “Deixou molhar”, emenda outro. Antonio parece só sentir uma culpa, e esta vai arrastar consigo verde afora. A de não ter braços em número suficiente para carregar dois filhos. Como ele poderia escolher que filho carregar em seus braços de pintura de Portinari? Como ele pôde deixar um enquanto carregava o outro? Como se vive depois de descobrir que apenas dois braços faz do pai um aleijado?

Quando Valdeci alcança primeiro a Cachoeira Seca, depois o hospital de Itaituba e por fim o de Altamira, um médico ri ao saber que ele tinha recebido uma dose de Específico Pessoa. “Isso não adianta nada, é uma bobagem”, gargalha. Há um mundo inteiro que não se mede em quilômetros entre o médico e Antonio. Um mundo em que Específico Pessoa é a medicina possível, porque os médicos que riem das suas crenças preferem não ir tão longe. Lindomar traz uma lista de precisões para comprar na cidade e levar de volta para casa junto com Valdeci vivo, depois de três dias de internação. Nesta lista, uma tese de antropologia inteira: dois antibióticos e um anti-inflamatório, aguardente Alemã (que livra de todo mal), Pílula Contra tudo (contra tudo o que é ruim), Pílula de Vida. Específico Pessoa.

E velas para Francenildo achar seu caminho.

(Publicado na Revista Época em 08/04/2013)

 

Dom Erwin Kräutler:

 “Lula e Dilma passarão para a história como predadores da Amazônia”

 

O lendário bispo do Xingu, ameaçado de morte e sob escolta policial há seis anos, afirma que o PT traiu os povos da Amazônia e a causa ambiental. Afirma também que Belo Monte causará a destruição do Xingu e o genocídio das etnias indígenas que habitam a região há séculos. Há 47 anos no epicentro da guerra cada vez menos silenciosa e invisível travada na Amazônia, Dom Erwin Kräutler encarna um capítulo da história do Brasil

Eliane Brum

Nesta segunda-feira, um homem grande, de sorriso caloroso e cabelos brancos, embarcou em um avião para o Brasil. Para o Brasil apenas, não. Para a Amazônia. Depois de 40 dias na Áustria, a terra onde nasceu, ele sente falta da geografia que escolheu para ser sua desde o momento em que, ainda jovem e tropeçando no português, descobriu maravilhado que o Reno é “um igarapé comparado ao Xingu”. Dom Erwin suspira de saudades do rio, das gentes, dos cheiros e até do clima da cidade paraense de Altamira, com temperaturas e humores tão intratáveis que só agrada aos mais fortes. Este homem, que circulava livremente por ruas imaculadas na primavera austríaca, onde foi garimpar recursos para projetos sociais na Amazônia, volta agora para sua rotina de prisioneiro. Há seis anos, Dom Erwin Kräutler, bispo do Xingu, não dá um passo no Brasil sem estar sob a escolta dos quatro policiais que se alternam para proteger sua vida.

Perto de completar 73 anos, Dom Erwin, que acolheu e depois enterrou a missionária assassinada Dorothy Stang, vive na mira de pistoleiros. Homens contratados por gente graúda para calar uma voz que há quase meio século eleva o tom na defesa dos mais pobres e dos mais frágeis, dos indígenas, dos ribeirinhos e dos extrativistas da Amazônia. Dom Erwin tem escrito, com rara coerência, um capítulo crucial de uma história pouco contada no Brasil: o papel da Igreja Católica, especialmente a dos religiosos ligados à Teologia da Libertação e às comunidades eclesiais de base, na proteção dos povos da floresta – e da própria Amazônia – a partir da segunda metade do século XX.

A maioria das etnias indígenas e das comunidades amazônicas que conquistaram direitos e terras nas últimas décadas deve parte de sua organização aos setores mais progressistas da Igreja Católica. Assim como parte das lideranças políticas que hoje influenciam os rumos do país surgiu na atuação de base da Igreja. Isso vai muito além da religião – é História. E uma história cujo sentido as alas mais conservadoras da própria Igreja preferem enfraquecer. Neste capítulo, Dom Erwin, capaz de falar tão bem o grego clássico quanto a língua dos Kayapó, é um dos protagonistas mais fascinantes.

E resistente. A cada ano, apesar da idade avançada e das dores na coluna, ele visita 15 paróquias do Xingu. Ao alcançá-las, peregrina pelas comunidades dos cafundós. Dorme no barco, dorme em rede. Acostumou-se tanto à dieta local, que fica feliz por comer peixe no almoço e no jantar, de segunda a segunda. É adorado pelo povo mais pobre – e odiado sem reservas por parte da elite paraense, que o ataca também pela imprensa de Belém do Pará.

Desde a decisão de Lula, e agora de Dilma Rousseff, de arrancar Belo Monte do papel, o quase lendário bispo do Xingu tem feito uma oposição incansável contra a hidrelétrica que provoca controvérsia dentro e fora do Brasil. Por causa dela, tornou-se uma presença incômoda para setores do governo e do PT que um dia apoiou – inclusive com o seu voto. Incômoda, especialmente, porque é difícil destruir a reputação de um bispo que mantém a coerência desde a ditadura militar em uma das regiões mais conflagradas do país, ajudou a escrever os artigos da Constituição de 1988 que garantem os direitos indígenas e não recuou nem mesmo diante da ameaça de perder a própria vida.

Nesta entrevista, Dom Erwin diz o que pensa contra antigos aliados com o mesmo desassombro com que denunciou grileiros e estupradores no passado recente. Acusa o PT de “traidor” – e diz que alguns petistas são “fanáticos religiosos”. Afirma que Lula e Dilma implantaram uma “ditadura civil” ao “desrespeitar os direitos indígenas assegurados na Constituição”. E afirma que Lula passará para a História como “o presidente que destruiu a Amazônia e deu o golpe nos povos indígenas”.

Às vésperas da Rio + 20, o depoimento de Dom Erwin Kräutler abre uma janela para a compreensão da história contemporânea. A entrevista a seguir foi feita na casa do bispo, em Altamira, com os policiais militares que o protegem do lado de fora da porta, mas atentos. Os quatro policiais demonstram uma preocupação que transcende o dever: adoram Dom Erwin, que conhece suas mulheres e filhos e escuta suas aflições de cada dia.

Em três horas de conversa, Dom Erwin não evitou nenhuma pergunta. Vale a pena abrir um espaço para escutar com atenção um homem capaz de apontar as contradições e ampliar a complexidade do momento estratégico vivido pelo Brasil, no qual as escolhas tomadas hoje determinarão o que seremos amanhã.

“QUANDO EU VI O XINGU, PERDI O FÔLEGO”

– O que o senhor faz quando está na Áustria e qual é a sensação de viver sem escolta, sem policiais ao redor?

Dom Erwin Kräutler – É necessário que eu passe todos os anos pelo menos um mês na Áustria, com a finalidade de conseguir recursos para manter e sustentar as obras sociais e pastorais do Xingu. Tenho, além disso, muitos convites de universidades e organizações que defendem os Direitos Humanos e o Meio Ambiente. Quando é possível, eu me hospedo na minha casa materna/paterna e vivo, fora dos compromissos, uma vida de “eremita”. Isso me faz um bem enorme. Ando livremente pelos bosques da terra onde nasci. Admiro a natureza, as flores, os campos, as árvores que na primavera se revestem de sua folhagem de tons tão diversos. Levanto antes das 5 horas para poder “ouvir o silêncio” matutino e ver os primeiros raios do sol. É maravilhoso. É uma sensação de liberdade total que faz bem à alma e ao coração.

– Como um austríaco escuta pela primeira vez a palavra Xingu e acaba se mudando para o Brasil e fazendo do Xingu a sua casa?

Dom Erwin – Ouvi a palavra Xingu pela primeira vez aos 4 ou 5 anos, durante a Segunda Guerra Mundial. A minha mãe sempre falava do irmão dela, Dom Eurico Kräutler, na época Padre Eurico, que estava no Brasil desde 1934. Uma vez ele mandou, junto com a carta, algumas fotos. Eu lembro perfeitamente das casas de palha – ele na frente, naquele tempo de batina, com uma criança, um indiozinho, mostrando a câmara com o dedo. Como a gente diz: Olha o passarinho! Foi a primeira foto do Xingu que vi na minha vida.

– O que o senhor sentiu?

Dom Erwin – (rindo) Senti uma profunda simpatia por aquela criança, que era diferente, que estava pintada. Desde então, nós sempre perguntávamos à minha mãe sobre os índios. Meu tio mandava as cartas, que eram lidas em casa pela minha mãe, depois passavam para a minha tia, e então para a minha madrinha, iam passando por todos os parentes. Tínhamos a foto de um índio na parede. Eu lembro até o nome dele: “Patoit”. Significa “braço forte”. Temos a foto dele lá em casa (na Áustria), com a mulher e o filho.

– Essa foto ainda existe?

Dom Erwin – Sem dúvida. No meu quarto, na casa de meus pais, ela foi substituída por uma foto mais recente, de uma índia Araweté com seu neném. Para nós, os Kayapó eram pessoas distantes, diferentes, mas pareciam parentes. Porque quando a gente falava do tio Eurico falava também dos indígenas do Xingu. Meu tio só pôde voltar para a Áustria depois do fim da guerra, em 1948. Eu tinha 9 anos e era coroinha, então eu lembro muito bem quando ele chegou. Meu tio fazia palestras, sabe, com slides. E ele mostrou muito sol nascendo, pôr do sol… Mas meu tio tinha a sua ideia a respeito dos índios, com as quais eu não compartilharia hoje. Eu tive outra visão.

– Qual era a ideia dele?

Dom Erwin – A ideia dele, e é preciso entender que ele era filho do tempo dele, era a de “civilizar”, “apaziguar”, palavras que não me passam pelos lábios. Não é por aí.

– É por onde?

Dom Erwin – São povos diferentes. E nós os respeitamos na sua alteridade. E não apenas os respeitamos, precisamos dar um passo a mais. Nós os amamos. Eu fiz essa experiência. Lembro quando fui para uma aldeia aqui, dos Kayapó, e eu não falava uma palavra em kayapó. Nada. Eu disse: “Nunca mais eu piso nessa aldeia sem saber kayapó”. E aprendi. Não vou dizer que falo do mesmo jeito que eu falo português, mas aprendi. E, na segunda vez em que fui lá, você não imagina. Meu Deus! O sorriso mais largo e mais amigo, mais íntimo, eu diria: “Agora ele é nosso, ele fala a nossa língua”. Eles sabem que a gente se esforça e, através da comunicação por palavras, compreendemos o mundo deles.

– Quando o senhor estava em Koblach, sua cidade natal na Áustria, que movimento interno fez com que o senhor atravessasse o oceano e ficasse aqui por quase meio século, já? O que o levou a fazer um movimento tão largo, tão radical?

Dom Erwin – Eu era um jovem como qualquer outro. Estudei, fiz faculdade de Filosofia, tocava violão, fazia teatro. Tenho uma juventude muito bonita, com muitos amigos e amigas. Depois veio o pessoal de outras províncias, que não falavam a nossa língua, o nosso dialeto. E eram colocados à margem. E isso me doía. Mas por quê? Simplesmente porque são diferentes, porque falam outra língua, são excluídos? Nós começamos, então, na juventude, a criar nossos movimentos e a buscar essa gente que ficava na margem. Nós conseguimos integrá-los. Foi nesse momento, ao me confrontar com a exclusão pela diferença, que surgiu a ideia de ser padre. Estudei Teologia, me ordenei. Era da mesma congregação do meu tio, dos Missionários do Sangue de Cristo. Naquele tempo, meus superiores queriam que eu continuasse os estudos de filologia antiga: grego e latim. Eu gosto disso até hoje. Leio a Bíblia em grego, o Novo Testamento…. Mas, de repente caiu a ficha: “Eu vou para o Xingu”. Quer dizer, a gente não dizia: “Eu vou para o Brasil”. A gente dizia: “Eu vou para o Xingu”.

– Por que “eu vou para o Xingu”?

Dom Erwin Acho que aí tem também toda a história da criança, que eu nunca esqueci. O Xingu era exatamente onde estão os Kayapó. E não apenas os Kayapó, mas seringueiros, pescadores, e uma cidadezinha miúda, pequenininha, que era Altamira. Altamira em 1950 tinha 1.800 habitantes. E eu então sonhei com isso. E disse para os superiores que queria ir para o Xingu: era 12 de janeiro de 1965. Ordenei-me padre em julho de 1965. Despedi-me de casa no dia 2 de novembro, aniversário do meu pai. Fui para Hamburgo, no norte da Alemanha, e vim com um cargueiro. Eram só dois passageiros, fora a tripulação. Eu nunca tinha visto mar, esse tipo de coisa. Era um rapaz novo, 26 anos. E atravessei o Atlântico.

– Quantos dias, naquela época?

Dom Erwin – Nós saímos no dia 4, à noite, e depois atracamos em Tenerife, nas Ilhas Canárias, no dia 11 de novembro. Passamos lá um dia, zarpamos de novo e chegamos no dia 18. Eram 4h da tarde quando pisei pela primeira vez em terra brasileira, em São Luís do Maranhão, onde fiquei quatro dias, antes de seguir viagem, ainda de navio, para Belém. Lá em São Luís dormi no convento dos franciscanos e comecei a aprender português.

– Não sabia nada?

Dom Erwin – Nada.

– O que tinha na sua mala?

Dom Erwin – Eu não trouxe lembranças da minha terra, não trouxe nada. Uma ou outra foto da família. O que eu trouxe eram coisas que eu queria dar para as crianças daqui. Porque o pessoal de lá me encheu de mil e uma coisas pra trazer. Veio tanta criança aqui nesta casa: “Quem é o padre que trouxe boneca?”. Fiquei feliz da vida. Boneca pra cá e pra lá. Depois surgiu um problema, porque alguém disse: “Mas o senhor deu boneca até para crente, e nós não ganhamos ainda nada”. E eu respondi: “Vou perguntar se era crente ou católico? Para mim se tratava de uma boneca – e boneca bonita!”. De coisas pessoais eu só trouxe os cadernos do tempo da universidade, tanto da faculdade de Filosofia quanto da de Teologia. Tenho até hoje! Fora isso, um crucifixo que ganhei e um cobertor. Até hoje eu tenho esse cobertor. Está na minha cama.

– Qual a diferença que o senhor sentiu entre o Xingu mítico, do seu imaginário, e o Xingu real, daquele primeiro olhar?

Dom Erwin – O Xingu me impressionou de uma maneira que eu nunca tinha sentido. Porque lá na Áustria nós temos o rio Reno, mas é um igarapé, em comparação com isso aqui. Então, na primeira vez que vi, em 21 de dezembro de 1965, a bordo de um avião DC3 da Cruzeiro, vindo de Belém, Nossa Senhora, que maravilha! Eu fiquei tão encantado com essa terra, e até hoje estou. E essa é uma das razões de ter reservas muito grandes quanto à destruição que está pairando sobre o Xingu e sobre todos nós. Eu fiquei tão impressionado, que faltaram palavras. Acho que perdi o fôlego. Não era um chorar… Era uma alegria. Uma mistura de alegria e de se maravilhar por alguma coisa. Você fica olhando e olhando… Você não precisa falar, você assimila, por assim dizer, essa maravilha toda. E fica encantado. Utiliza-se no português a palavra “encantado”. O Xingu encanta.

– Por quê?

Dom Erwin – O Xingu é diferente de todos os outros rios do mundo, ao menos daqueles que eu conheço. Talvez algo mítico, também, por causa dos povos indígenas que há milhares de anos vivem aqui. Então, eu vejo como os índios veem. Os Kayapó não chamam de Xingu, chamam de Bytire. “Tire” significa grande, majestoso. O “by”, segundo a explicação de um velho kayapó, quer dizer algo muito misterioso, inexprimível. E, por isso, sagrado, intocável, inviolável. Eu disse: “Aqui eu vou viver”. Eu nunca pensei em voltar, sabia? Nunca.

– O senhor sente que esta é a sua terra?

Dom Erwin – Eu não vou negar as raízes, claro… O mundo de lá agora é diferente, e eu me sinto um peixe fora d’água. Passo um mês na Áustria, mas depois volto para cá. A minha vida é viver aqui.

– No Brasil inteiro, e especialmente no Norte, existe o uso político de um sentimento que pode ser resumido pela seguinte frase: “Os gringos estão invadindo a Amazônia”. O senhor é tratado como um gringo?

Dom Erwin – Não. Nunca fui. Também o pessoal raramente me pergunta onde eu nasci. Naturalizei-me brasileiro. Tenho passaporte brasileiro, carteira de identidade, título de eleitor, tudo.

– O senhor é brasileiro?

Dom Erwin – Sou.

– Um brasileiro que nasceu na Áustria… Eu já vi o senhor dizendo isso.

Dom Erwin – Sempre digo isso: um brasileiro nascido na Áustria. Não fui mandado para cá. Foi uma decisão minha. Eu me identifiquei com o Xingu, com o Brasil. Claro que não nasci aqui, meus pais e meus antepassados são de outro país. Meus ancestrais já moravam lá em 1400 e pouco. Trata-se de uma família muito tradicional. Mas cada um faz a sua escolha. Quando cheguei aqui, eu sabia que ia ficar. Eu podia ter voltado no dia seguinte, se eu não me agradasse. Tem muito trabalho em qualquer canto do mundo. Mas nem por um segundo isso me passou pela cabeça.

“EU NUNCA PENSEI QUE O LULA PUDESSE MENTIR NA MINHA CARA”

– O senhor é uma das vozes mais críticas contra Belo Monte. Por que o senhor não quer uma hidrelétrica no Xingu?

Dom Erwin – Altamira sofreu o primeiro “choque” com a construção da Transamazônica. Eu me lembro de quando chegou aqui o presidente Médici (Emílio Garrastazu Médici, general que foi presidente do Brasil no período mais violento da ditadura militar, de 1969 a 1974). Ele deu início às obras, no lugar chamado “Pau do Presidente”. Você foi lá ver (o “pau do Presidente”)?

– Ainda não…

Dom Erwin – Não perde nada. Só ficou aquele tronco da castanheira, a placa roubaram… Eliane, você naturalmente sabe que aqui se usa essa expressão “pau do presidente” com certa malícia!

– Posso imaginar… O senhor presenciou a derrubada da castanheira?

Dom Erwin – Sim. Todo o pessoal delirando no palanque… delirando mesmo! Batendo palmas! Gente, derrubando uma árvore daquelas! E dizendo que era o progresso que estava chegando. Cortou-me o coração… Como é que pode? Aplaudir que a rainha das árvores do Pará ou da Amazônia tomba, e com um estrooondo tremendo. Como é possível? Está escrito na placa que roubaram: “O presidente da República dá início à conquista deste gigantesco mundo verde”. E havia uma placa em uma das três colunas feias, bem feias que fizeram: “Depois de XX meses o presidente voltará para inaugurar, dando mais um passo para integrar…”. Era essa a época: “Integrar para não entregar” e “Brasil, ame-o ou deixe-o”… Coisas desse tipo. Eu vi.

– Isso tudo o senhor estava assistindo de onde?

Dom Erwin – No meio do povo que foi lá ver o presidente. Tinha dois bispos, vestidos com trajes episcopais, que pensavam que seriam chamados a subir no palanque: o bispo daqui, que era meu tio, e o bispo de Marabá. Não os chamaram lá para cima porque o de Marabá não era amigo dos militares. Ele tinha denunciado um monte de coisas. Naquele tempo era a guerrilha do Araguaia, então não chamaram os bispos para subir no palanque… Eu pensei: “Bem feito!”. Mas eu não tinha coragem de dar minha opinião, porque era menino recém-chegado. Mas os bispos também achavam que o progresso estava chegando… Altamira era uma cidade esquecida, no meio da mata.

– É muito simbólico derrubar uma castanheira, uma árvore gigante, como símbolo da chegada do progresso e do desenvolvimento, não?

Dom Erwin – Depois se falava em “benefício”. Tem que “beneficiar” a terra para você encaminhar, por exemplo, um crédito bancário. Então tinha que derrubar.

– O que era Altamira antes da Transamazônica?

Dom Erwin – Era uma cidadezinha esquecida. De dia faltava água, de noite faltava luz. Tinha um motor da prefeitura que tinha funcionado pela última vez nos 15 anos da filha do prefeito. Nos anos 60 queriam fazer uma picada para Santarém para ligá-la ao mundo e mataram não sei quantos índios. Depois veio a Transamazônica. Um compadre meu, que trabalhava como telegrafista naquele tempo, disse: “Olha, compadre, agora vem o progresso. Tinha um telegrama de um tal de Incra dizendo que vão construir uma estrada. Estão dizendo que vai chover dinheiro”.

– Um discurso muito parecido com o de agora, não? Vai “chover dinheiro”, o progresso vai chegar…

Dom Erwin – Essa é a ideia: o “progresso” vai desbravar toda essa região. Então, de fato, começou no quilômetro 5, com a derrubada daquela árvore, onde tudo era mato. E hoje você vê tudo descampado. O traçado da Transamazônica já foi feito assim porque se pensou em futuras hidrelétricas, como Belo Monte. Nos anos 70 já fizeram toda a pesquisa. Em 1950, Altamira tinha 1.200 habitantes. Em 1960, 2.800. E depois, acho que de 1965 em diante, uns 4 mil, 5 mil. Mas depois veio o boom… o pessoal veio do Nordeste, primeiro, depois do Sul. Aí Altamira ganhou outras feições. E com a Transamazônica, em 1975, se falava numa possível hidrelétrica, mas era uma coisa muito distante. Nos anos 80, então, a coisa já pegou mais vulto, até que, em fevereiro de 1989, vieram os índios…

– O senhor estava presente no I Encontro dos Povos Indígenas do Xingu, em 1989? (Na ocasião, Tuíra, índia kayapó, encostou a lâmina do seu facão no rosto de Antonio Carlos Muniz Lopes, da Eletronorte, para expressar sua indignação contra o projeto de Belo Monte, naquela época chamado de Kararaô. A foto da cena correu o mundo).

Dom Erwin – Não. Eu estava na Suíça… Os índios vieram falar comigo. Queriam marcar o I Encontro dos Povos Indígenas do Xingu. Então eu encontrei, naquele tempo, não vou dizer o primeiro escalão, mas o segundo escalão do Banco Mundial, em Berna. E me avisaram: o Banco Mundial só vai fornecer o crédito (para a obra) se a cláusula indígena e a cláusula ambiental forem observadas e cumpridas. Isso, para mim, foi o sinal de arquivamento. Pensei: esse perigo já passou. Enquanto eu estava lá, ocorreu o episódio com a Tuíra, aqui. Eu conheço muito bem esse Antonio Carlos Muniz…

– Como o senhor o conheceu?

Dom Erwin – Ele me convidou, quando estive em Brasília, nos anos 90, para o gabinete dele, e me mostrou todas as coisas. Ele queria cativar-me, conquistar-me para o projeto. Fui muito bem tratado, sabia? Mas quando a gente é tratado tão bem, com beijinho etc, é preciso ficar cismado. Quando é assim, tem boi na linha. Não é porque te querem bem, mas eles querem te preparar, querem aproveitar que você está sozinho e te convencer.

– Brasília o assusta, nesse sentido?

Dom Erwin – Sim, me assusta. Meu Deus! Estive duas vezes com o Lula, também, e com outras pessoas. Eu tinha contatos bons, gente boa em Brasília que estava no nosso lado. Agora, ultimamente, estamos num certo isolamento. Porque aquele povo que antigamente lutava conosco, que estava do nosso lado, que defendia a mesma coisa, que lutou pela mesma causa, agora defende o contrário.

– Quando o Lula foi eleito, o movimento social da Amazônia tinha certeza de que Belo Monte estava definitivamente sepultada. Como foram seus encontros com o Lula?

Dom Erwin – A primeira vez foi em 19 de março de 2009. Fui com um advogado do CIMI (Conselho Indigenista Missionário), amigo meu de longa data, e com um assessor político do CIMI, que agora foi conquistado para ser membro do gabinete da presidente. Fiquei com o Lula uns 20 minutos, talvez meia-hora. Apresentei as nossas angústias e as nossas preocupações, e ele foi o primeiro a insistir que houvesse um diálogo construtivo, que se avaliasse os prós e os contras. Eu disse: “Olha, eu queria que o senhor ouvisse o povo”. Ele perguntou: “Que povo?”. Eu disse: “O povo do Xingu, os representantes do povo do Xingu”. Ele disse (Dom Erwin imita a voz e o jeito de Lula): “Manda chamar!”. Acertamos então uma segunda visita. Lembro que, ao final desse primeiro encontro, eu disse: “Lembranças para Marisa, sua esposa”. O Lula ficou até assustado, porque não estava acostumado a receber saudações para sua esposa. Quando alguém se encontra com o presidente, não lembra que ele é casado. Senti o Lula como alguém muito amigo, simpático.

– Foi a primeira vez que o senhor o viu?

Dom Erwin – Não, já tinha visto em campanha.

– Como o senhor percebeu o Lula?

Dom Erwin – Ele era aquele trator, falava pra cá e pra lá. A gente via que ele estava em campanha, que a gente era uma peça lá daquela campanha. Dá a mão, tira foto… Mas, em 2009, foi um encontro… muito amistoso. Eu ainda esperava que ele fosse se convencer de que não era por aí. Até escrevi: “Graças a Deus, Lula entendeu”. E nós marcamos outra audiência, em 22 de julho do mesmo ano. Foi muito interessante. Levamos dois índios, dois ribeirinhos, a Antonia Melo (uma das principais lideranças do Xingu), dois procuradores da República e o professor Célio Bermann (do Instituto de Eletrotécnica e Energia da USP). Mas o Gilberto Carvalho (chefe de gabinete do então presidente Lula, hoje ministro da Secretaria Geral da Presidência da República no governo Dilma) queria que só eu falasse em nome de todos. Do outro lado havia o setor energético do governo, todos os figurões… Nós, de um lado, humiiildes, coitados, nos sentindo como um peixe fora d’água e, do lado de lá, essa gente que mandava e até hoje está mandando… Mas a gente tinha segurança daquilo que nós queríamos. E, quando o Lula chegou, ele sentou-se ao meu lado. Eu disse: “Presidente, o senhor vai ter que ouvir esse povo. Esse povo veio de longe, quer falar com o senhor. Não pode pegar só dois que representem os outros, porque eles vão sair com uma frustração que não tem tamanho!”. O Lula então disse (e Dom Erwin imita o vozeirão do então presidente): “Deixa comigo! Vamos fazer!”. Então, de fato, ele deu a palavra a todos.

– O que eles disseram?

Dom Erwin – O povo falou de sua angústia, de que não podiam deixar a sua terra. Depois, os procuradores da República falaram das inconstitucionalidades do projeto de Belo Monte, de que os índios não tinham sido ouvidos. O Célio Bermann colocou então os pontos técnicos e financeiros que tornavam o projeto inviável. E aí é que eu vi o Lula levando susto. Ele olhou para a turma dele, dizendo: “Vocês vão ter que dar uma resposta imediata para o professor”. Mas esta resposta não veio até hoje.

– O senhor acha que o Lula estava sendo sincero ou era teatro político?

Dom Erwin – Era teatro, jogo político… Depois ele me segurou no braço e disse (imitando a voz): “Dom Erwin, nós não vamos empurrar esse projeto goela abaixo de quem quer que seja. Conte comigo. O diálogo tem que continuar. Segundo: o Brasil tem uma grande dívida com os atingidos por barragens, e essa dívida, até hoje, não foi sanada. Tem muita gente perambulando por aí que não recebeu a indenização, e a vida praticamente foi cortada para eles. Terceiro: Nós não vamos repetir (a hidrelétrica de) Balbina. Balbina é um monumento à insanidade. E quarto: o projeto só vai sair se for vantagem para todos”.

– O Lula disse isso?

Dom Erwin – Disse! Textualmente, sentado ao meu lado, me segurando nesse braço (mostra o braço esquerdo). Eu pensei, bom… o presidente não iria falar isso se não fosse verdade. Mas, as mulheres têm mais sensibilidade, têm mais intuição. A comadre Antonia Melo não quis nem tirar retrato. Os outros todos bateram foto com o Lula. Eu fiquei até estranhando, mas ela sentiu, naquele tempo, que era apenas um show. Engraçado, as mulheres, neste ponto, têm uma intuição que os homens não têm. Eu pensei: “Não, o Lula não vai mentir na minha cara!”. E ainda por cima segurando no meu braço… (Imita novamente a voz de Lula): “Dom Erwiiiin….”.

– O senhor imita bem a voz do Lula… O senhor saiu aliviado?

Dom Erwin – Aliviado não vou dizer, mas muito esperançoso, porque no final ele ainda disse: “O diálogo vai continuar, nós vamos nos encontrar de novo”. E aí, de repente, eu me dei conta de que não houve diálogo nenhum. Porque ele falou, mas não perguntou quais eram as nossas ideias, não perguntou o que nós achávamos, nem como pensávamos que seria possível resolver certos impasses.

– Como foi o clima dessa reunião?

Dom Erwin – A primeira parte da audiência com o Lula foi sem ele. Só com o setor energético, Funai e outras instâncias do governo. Esse pessoal do governo xingou os procuradores da República, dizendo que eles não entendiam nada, que não era do ramo deles, que estavam se metendo em assunto que não dizia respeito a eles. E até foram alteando a voz, viu? Fiquei até assustado, pensando que a educação tinha passado muito longe daqueles senhores. Lembrei-me de que quem grita revela que não tem argumentos para convencer o interlocutor. No fundo, essa turma tinha que admitir que a razão e o bom senso estavam do nosso lado. Assim, optaram por atitudes autoritárias e de prepotência, querendo nos intimidar, dizendo que não entendíamos nada do assunto. Do nosso lado, ninguém perdeu em nenhum momento a compostura. Não respondemos aos gritos. Os berros saíram da goela deles. Neste exato momento, o Lula entrou “em cena”, perguntando: “Vocês estão vivos?”. Porque era um berreiro, não era diálogo. A entrada do Lula na sala parecia uma ducha de água fria em cima da turma dele. De repente, eles se recompuseram. Achei ridículo! Pareciam meninos briguentos na sala de aula que, quando o professor entra de repente, ficam com medo de algum castigo ou de nota baixa e então se ajeitam. Aí o Lula me cumprimentou efusivamente, como se fôssemos amigos de longa data, “companheiros” de luta desde a primeira hora. E, não nego, me senti bem à vontade e agradeci a ele por ter nos recebido, elogiando esse gesto aberto de busca de “diálogo”. Pois naquele momento acreditei realmente no diálogo.

– E não foi?

Dom Erwin – Só caí na real quando, em outubro do mesmo ano, passei uma semana em Brasília esperando a continuação desse diálogo. A audiência foi adiada de uma manhã para a tarde, de um dia para o outro, até que, finalmente, recebi um telefonema na sexta-feira à noite em que Gilberto Carvalho me pedia desculpas, dizendo que não era mais possível ser recebido pelo presidente, pois ele tinha precisado viajar para a Venezuela. Essa viagem certamente já estava programada no início daquela semana e servia de pretexto para evitar o constrangimento de ser obrigado a me dizer que o presidente e seu staff não estavam mais interessados na continuação do “diálogo”. Em 23 de setembro de 2009 eu tinha escrito uma carta ao Lula, tratando-o ainda de “meu presidente”. Nunca recebi resposta.

– O senhor tinha acreditado na promessa de diálogo feita pelo Lula?

Dom Erwin – Eu acreditei. Havíamos dado um passo importante, porque havíamos chegado até lá. E agora, aquele setor do governo, embora tenha gritado antes, teria que dar resposta por ordem do presidente. Mas nunca houve diálogo. Naquele encontro nós mostramos o que ia acontecer, o absurdo dessa obra em todos os sentidos, inclusive em sua viabilidade financeira. E ninguém nunca nos respondeu nos provando que estávamos errados. O Célio Bermann falou, e eu entreguei para o Lula um resumo da posição do Oswaldo Sevá Filho (professor e pesquisador de Engenharia Mecânica da Unicamp), que não pôde nos acompanhar porque estava doente, assim como a posição de outros grandes professores e pesquisadores dessa área no Brasil. E todos mostravam a inviabilidade de Belo Monte, assim como a destruição que ela vai provocar. Por que esse povo não recebeu uma resposta?

– Por quê?

Dom Erwin – Porque não há resposta. Os argumentos são imbatíveis. Tem que desmontar a opinião das maiores cabeças dessa área no Brasil, tem que ter argumentos fundamentados na realidade, mas o governo não tem. E, se não tem, precisaria assumir: “Nós temos que fazer isso. É uma decisão política, e não técnica”. Se a decisão fosse técnica, Belo Monte jamais seria feita. Por isso, o diálogo foi abortado desde o início. Aquilo que Lula fez era só um show para agradar ao bispo.

“HÁ GENTE DO PT QUE PARECE FANÁTICO RELIGIOSO”

– No caso de Belo Monte, o governo defende que os índios não serão atingidos. Mas muitos ambientalistas e pesquisadores refutam essa afirmação, mostrando que não é possível barrar um rio sem que isso afete as comunidades que vivem em torno dele. Como o senhor vê essa questão?

Dom Erwin – Se o projeto de Belo Monte se concretizar, esses povos que moram na Volta Grande do Xingu serão atingidos. O governo nega, porque, para o governo, atingir o povo indígena é só quando se inunda, alaga a aldeia. A inundação, de fato, não vai acontecer. Mas o contrário acontece: corta-se a água. Se você observar o mapa, vai perceber que, nos 100 quilômetros da Volta Grande do Xingu, vai se chegar a um mínimo de água. Tenho absoluta certeza de que não haverá mais condição de pescar e de abastecer esses povos. Depois, será prejudicada a agricultura. E, por fim, eles não terão como se locomover. Ficarão barrados. Um povo submetido a uma vida nessas condições não sobrevive. Ou sobrevive por um tempo, depois acaba. Vão se esfacelar. Talvez se tornem índios citadinos. Perderão a cultura, perderão a língua. Estarão aqui, em algum subúrbio de Altamira. Não vou dizer que deixarão de serem índios, mas já não serão mais indígenas que vivem dentro de seu próprio contexto, com suas organizações e com a sua língua.

– É uma cultura que morre, um jeito de estar no mundo que morre, é isso?

Dom Erwin – Temos que fazer uma distinção: existe a morte física e existe a morte cultural. E aqui no Xingu, por causa de Belo Monte, poderão acontecer as duas coisas. A morte cultural, porque arrancarão deles a possibilidade de sobreviver em determinado espaço que, para eles, é muito significativo, porque é o chão de seus mitos, de seus ritos, é onde enterraram seus antepassados. Se você arranca isso dos indígenas, você corta o cordão umbilical deles com a terra. Precisamos compreender que eles têm outro relacionamento com a terra, diferente do nosso. Para nós, a terra é coisa que se compra e se vende. Para eles, não. Além da morte cultural, é provável que também aconteça a morte física, porque eles não estão preparados para viver na cidade. Os Arara, por exemplo, foram dizimados por doenças depois de serem contatados. Essa história nunca foi bem contada.

– O senhor afirma que Belo Monte é só a primeira de muitas barragens, uma forma de vencer a resistência para impor um projeto que é muito maior e que vai destruir o Xingu por completo. Como o senhor tem tanta certeza disso?

Dom Erwin – Todos os argumentos científicos sérios mostram que essa hidrelétrica não vai funcionar durante o ano todo. No verão, o Xingu baixa muito de nível e não existirá volume de água suficiente para fazer funcionar as turbinas. Portanto, vão investir bilhões e bilhões de reais em uma hidrelétrica que durante meses não funciona. Isso é um absurdo. E o governo sabe perfeitamente que é um absurdo. Então, é lógico que Belo Monte será só a primeira barragem. É preciso fazer tudo para que a população aceite essa primeira barragem, depois de décadas de resistência. Para, então, virem as outras. Porque só com as outras Belo Monte será um bom negócio. A segunda, a terceira e a quarta vão barrar o rio até lá em cima, em São Félix do Xingu. E aí, todas essas áreas que estão nas margens esquerda e direita do Xingu, que são áreas indígenas já homologadas, vão sofrer. E aí, os Assurini, os Araweté, os Paracanã, os Arara, e os Kayapó vão ser atingidos. É por isso que os Kayapó lá de cima, até mesmo os do Parque Nacional do Xingu, estão contra, embora estejam a mil quilômetros de distância. Eles já conhecem essa história. Depois de construir a primeira barragem, a tempestade passa, a resistência diminui – e aí completar a obra fica mais fácil. Esta é a estratégia do Governo. E aí eu afirmo: é o golpe fatal. Vão matar os índios, cultural e fisicamente.

– Parte da população brasileira acredita que os índios têm terra demais e há, inclusive, aqueles que acreditam que os indígenas são um entrave para o desenvolvimento. Por que parte dos brasileiros pensa assim?

Dom Erwin – Bom, primeiro precisamos entender que, para os índios, a terra não é uma mercadoria. Vou contar uma história real para que as pessoas entendam melhor essa relação totalmente diversa que o índio tem com a terra. Um branco mostrou um papel em que estava escrito: “República Federativa do Brasil, Título Definitivo de Terras, deste igarapé até o outro, fazendo frente com o rio Xingu e de fundos 2, 3, 5, 10 quilômetros”. Então, o índio perguntou: “Como você pode, com esse papel, dizer que é dono? Como? É um papel. Você fez a mata? Não. E a caça que está dentro da mata? Não. Você fez o rio e os peixes que estão no rio? Não. Você faz chover? Não. Você faz o sol brilhar? Não. Então, como você pode me mostrar um pedaço de papel e dizer que é dono?”.

– São formas de ver o mundo totalmente opostas, né? Só que uma delas tem o poder de impor sua visão de mundo como verdade única…

Dom Erwin – Essa cultura se choca com a cultura da sociedade majoritária, que trata a terra como mercadoria. E como mercadoria a terra tem de ser aproveitada, porque ela só faz sentido se for exaurida. Então, “aproveita” até arrasar a terra. Enquanto não tiver tirado a última gota de sangue, isto é, enquanto não tiver arrancado o minério e todas as riquezas do solo e do subsolo, o homem forjado nessa mentalidade não estará satisfeito. É claro, portanto, que as pessoas que veem a terra como mercadoria, num sistema de livre mercado, vão achar que o índio tem terra demais. O interessante é que essas mesmas pessoas nunca disseram: “Tal fazendeiro tem terra demais”. Não, isso não. Quando um fazendeiro bota uma placa e diz que a terra é dele – e aqui a grilagem de terra, como se sabe, é enorme, essas mesmas pessoas não reclamam. Mas, quando se faz a demarcação de uma área indígena, todo mundo grita. E, o mais curioso, há cidadãos que de repente aprendem geografia: “Eles têm uma terra do tamanho da Bélgica! Têm uma terra do tamanho de Portugal, uma terra do tamanho da Suíça!”.

– O que é terra, para os índios?

Dom Erwin – Para os índios, terra é vida. E, para o sistema da maioria dos brasileiros, terra é mercadoria. Talvez se consiga ainda fazer com que uns e outros entendam, pelo menos, que, ao demarcarmos as áreas indígenas na Amazônia, nós salvamos um pedaço da Amazônia.

– O senhor acredita que parte da Amazônia ainda está preservada por causa desse embate de visões de mundo?

Dom Erwin – Sim. E as pessoas precisam lembrar que a Amazônia tem uma função reguladora do clima mundial. Quer dizer: se a Amazônia acaba, o gaúcho lá embaixo, o mineiro, o capixaba vão sofrer as consequências. E nós ainda não sabemos qual é o alcance real dessas consequências. Se a temperatura aumentar três ou quatro graus, só para ficar num exemplo, será terrível! A verdade é que as consequências da destruição da Amazônia não cessarão nas fronteiras nem do Norte, nem do Brasil. Assim, os brasileiros de todas as regiões deveriam agradecer que há áreas de preservação indígena, há reservas extrativistas e há parques nacionais. É só porque existem essas reservas que há uma parte da Amazônia ainda preservada. Mas, infelizmente, as pessoas não percebem que a destruição da Amazônia também atingirá a sua vida.

– É curioso como as pessoas se sentem a salvo, não?

Dom Erwin – Pelas informações que recebi, estão planejadas 61 hidrelétricas para o Brasil, a maioria delas aqui na Amazônia. E mesmo a EPE (Empresa de Pesquisa Energética) não nega que serão atingidas diretamente áreas indígenas e também parques nacionais. Falam na maior cara de pau. Então, eu gostaria de saber o que vai sobrar.

– A maioria dos setores da sociedade, inclusive o governo, fala em “desenvolvimento sustentável”. Ninguém diz que não quer o desenvolvimento sustentável. Mas, na prática, o discurso que atravessa a sociedade é o de uma oposição entre desenvolvimento e meio ambiente. Por que o senhor acha que essa visão ainda persiste com tanta força?

Dom Erwin – É um mito. Que desenvolvimento é esse? Quem vai ser beneficiado com esse desenvolvimento? Basta ver hoje a situação em que está Altamira. E a obra está só no começo. Das condicionantes prometidas, nada. De 40 condicionantes colocadas pelo próprio Ibama, e outras 24 da Funai, quase nada. Não tem infraestrutura, nem habitação, nem saúde, nem educação. Para mim, desenvolvimento é dar à população a possibilidade de viver com dignidade. Ou seja: vamos aplicar em saúde, em educação, em transporte, em habitação, em saneamento básico e em segurança. Mas, aqui, desenvolvimento é fazer dinheiro, é garantir energia para as grandes multinacionais e exportar matérias-primas. Vai beneficiar a quem esse desenvolvimento? O pessoal ainda não acordou. E esses grupos, a favor de Belo Monte e dos grandes projetos para a Amazônia, disseminam a falsa ideia de que a gente é contra o desenvolvimento, contra o progresso. Mas nós sempre lutamos pela saúde nessa cidade, pela educação, pelo saneamento básico. Esse desenvolvimento que pregam é para uns poucos, não é para o povo.

– A população tem medo de um “apagão”…

Dom Erwin – Sim. Esses grupos, favoráveis às grandes obras na Amazônia, ficam também operando com o fantasma do blecaute, do apagão. Ficam dizendo: “Olhe, os gaúchos que se cuidem, porque no inverno gaúcho não terá mais chuveiro elétrico, e depois não vão mais poder ver a novela das oito”. Mentira! Essa energia será exportada em forma de lingotes de alumínio. E ela não é nada limpa… E muito menos barata. Nós não temos excelentes universidades, cientistas de primeira classe, tecnologia de ponta? Por que não se investe agora para procurar fontes alternativas de energia? Aqui, nós temos sol das seis da manhã às sete da noite. No sul da Alemanha, por exemplo, não há mais uma casa que não tenha placa solar. E olha que eles têm um inverno comprido. Lá, em dezembro, o sol nasce às 9h, 10h, e às 5h da tarde já está escuro. E nós, aqui, às 6h já assistimos ao sol nascer. Temos sol até às 7h da noite. Por que não aproveitamos essa dádiva divina? E depois existe o litoral… O Brasil tem um litoral enorme, que não tem fim. Por que não aproveita um pedaço, pelo menos, onde não há turismo, para investir mais em energia eólica? E, ainda, grande parte dos linhões de transmissão está obsoleta. Perde-se uma enormidade de energia por causa dessa deterioração. Por que não investir no reparo e no restauro dos linhões de transmissão?

– Por que o senhor acha que o governo quer tanto fazer Belo Monte?

Dom Erwin – Esta é minha grande pergunta. Eu não tenho resposta. Apenas vou adivinhando. Por que o Lula era contra e de repente está a favor? Por que o PT era contra Belo Monte e depois de chegar ao governo passou a defender exatamente aquilo que antes combatia? Por que os deputados que nós elegemos aqui hoje são a favor e não sabem nem por quê? O que há por trás? Por que essa metamorfose camaleônica? Na campanha era contra, como é o caso do deputado Zé Geraldo (PT-PA), que andava aqui embaixo, na beira do rio, dando as mãos e rezando, de camisa branca, participando de místicas. E agora, meu Deus! Ele defende exatamente o contrário: “Belo Monte tem que sair, a gente não pode colocar a Amazônia debaixo de uma redoma”. Ninguém está propondo uma Amazônia intocável. O que nós que nos unimos na posição contra Belo Monte defendemos é que as riquezas da Amazônia sejam usufruídas de uma maneira inteligente – e não de uma maneira burra.

– Historicamente, o movimento de resistência à Belo Monte sempre apoiou o Lula. O que aconteceu?

Dom Erwin – Aqui, a resistência contra Belo Monte se identificou com o PT, ou o PT se identificou com a resistência contra Belo Monte. Isso até o Lula tomar posse. Quando descobrimos que o Lula tinha mudado de ideia, caímos das nuvens. Meu Deus, como é que pode? E então os petistas daqui também mudaram de lado. Começaram, inclusive, a hostilizar as pessoas que ainda defendiam o Xingu contra esse monstro. Há gente que antigamente sentava aqui nesta sala e que hoje não aparece mais, porque sabe que o bispo permanece na sua posição contra Belo Monte. Há gente do PT que parece fanático religioso. Fanático religioso é terrível, né?

– Por quê?

Dom Erwin – Porque não tem discussão, não tem diálogo. Com fanático você nunca vai entabular um diálogo que preste, ele já se julga dono da verdade, tem a sua certeza. Então, o PT diz: “As razões defendidas pelo partido têm que estar acima da própria consciência dos partidários”. E muita gente reza pela cartilha do PT porque acha que aí está tudo resolvido. Na realidade eu não posso, por causa da minha filiação partidária, ter opinião própria, ou opinião divergente. Aqui, quem tinha opinião própria e não quis trair a sua consciência, como Antonia Melo, se desfiliou do partido.

– Foi um golpe muito grande essa mudança de posição com relação à Belo Monte?

Dom Erwin – Foi uma traição, um golpe tremendo. É muito duro você ser traído por pessoas a quem você deu as mãos. Inclusive foram perguntar, à boca pequena: (fala baixinho): “Bispo, em quem vai votar? O senhor não pode falar isso no sermão, mas em quem o senhor vai votar?”. Eu disse: “Eu vou votar no Lula. Afinal de contas, é o partido que nasceu e surgiu das bases, etc. Temos que lutar por outro Brasil, gente”. Tempos depois o povo passou a dizer: “Agora o bispo está engolindo…”.

– Está sendo difícil engolir o que o senhor chama de “traição”?

Dom Erwin – Eu nunca falei em público sobre o meu voto, mas todo mundo sabia que nós queríamos um Brasil diferente, um Brasil justo, fraterno, sem corrupção, um Brasil com ética e com todos esses ideais que nós tínhamos e ainda defendemos. Mas os caciques do PT da primeira hora foram embora. Quem está aí dos antigos? Se afastaram. Notaram que foram traídos também. Eu me sinto traído. Agora dizem: “O bispo era a favor dessa petezada”. E agora eu tenho que engolir os sapos…

“HOJE VIVEMOS EM UMA DITADURA CIVIL”

– O senhor acha que a construção de Belo Monte marcará negativamente a biografia de Lula e de Dilma Rousseff?

Dom Erwin – Se Belo Monte se concretizar, o Lula será lembrado como aquele que destruiu a Amazônia, e deu o golpe nos povos indígenas. É a expressão mais macabra de seu orgulho: fazer um monumento para si à custa de povos que, através do mesmo monumento, condenou à morte. E, no fundo, no fundo, este monumento irá ajudar mais o Exterior do que o Brasil. O Lula vai entrar para a História como aquele que arrasou o Xingu. Não apenas com o rio, mas também com os povos do Xingu. E eu não gostaria de carregar uma fama como essa nas minhas costas, até morrer – e ainda para além da minha vida neste mundo.

O que o senhor quer dizer com “monumento”?

Dom Erwin – O Lula quer ter esse monumento no nome dele. O Lula não tem ideia de desenvolvimento. Desenvolvimento para ele é ter mais dinheiro à disposição e exportar, exportar, exportar, aumentar o PIB. Só que essa obra não terá ressonância na melhoria da vida do povo. Pelo contrário.

– O senhor acredita, então, que o Lula não entende a Amazônia?

Dom Erwin – Nunca entendeu. E muito menos entende de índio. Ele nunca se deu ao luxo de se aprofundar nisso. Para a Amazônia, ele só veio em campanha. Mas ele não tem ideia da complexidade da Amazônia e também nunca perguntou… Você não pode comparar o Rio Grande do Sul com o Pará. Quando visito o Sul, me dizem: “Mas onde o senhor mora?”. Eu respondo: “Altamira”. Eles então dizem: “Ah, é, Altamira? Nós também temos uma tia no Recife”. Recife. As pessoas nem sabem direito onde fica o Norte. Confundem com o Nordeste. As culturas aborígenes aqui, as culturas autóctones, são diferentes. E tem que viver aqui para compreender isso. O Lula nunca entendeu – e nunca achou que era preciso entender. E, no final do mandato, ele entrou em delírio.

– Delírio?

Dom Erwin – Delírio. Poder. Ele se deleitava com as cifras, com as estatísticas. Aqui mesmo ele falou lorota.

– Lorota?

Dom Erwin – Disse que o pessoal que é contra Belo Monte são uns “meninos e umas meninas que não compreendem”. Disse que ele também, quando era mais novo, era contra Itaipu, porque diziam, naquele tempo, que ia alagar a Argentina. Ele zombou da dor e das reivindicações legítimas das pessoas de Altamira com ideias e vivências diferentes das dele. Eu disse, ao ouvir o seu discurso: “Meu Deus, e isso na boca do presidente!”.

– Desqualificou quem protestava?

Dom Erwin – Desqualificou. Em 2006, num banquete oferecido pelo então governador do Mato Grosso, Blairo Maggi, ganhador do troféu “motosserra de ouro” por sua contribuição ao desmatamento do país, Lula também havia se deixado levar a uma declaração comprometedora. Identificou os índios, os quilombolas, os ambientalistas e até o Ministério Público como “entraves” para o progresso. Considerou ainda “penduricalhos” os artigos da legislação ambiental, pois estes parâmetros legais estariam travando o desenvolvimento do país. Por isso a ordem é de desconsiderar ou, pelo menos, não dar tanta importância a impactos sociais e ambientais. Caso contrário o país, na opinião de Lula, estaria condenado à estagnação. Pode até ser que o presidente posteriormente tenha se arrependido do que falou de improviso, mas a mídia já havia divulgado a gafe.

– Como o senhor vê o discurso do “A Amazônia é nossa!”, que parece servir para tudo, inclusive para destruí-la?

Dom Erwin – A Amazônia é nossa… (ri) Ninguém nunca duvidou da soberania do Brasil sobre a Amazônia. Quem vai duvidar? Quem vai acreditar em algo como: “Agora vêm uns americanos apoderar-se daqui….” Não faz nenhum sentido. Isso não vai acontecer. Quem vê, em sã consciência, a configuração do mundo de hoje sabe que isso não vai acontecer nunca. Agora, o mesmo Lula e presidentes anteriores que disseram “A Amazônia é nossa” entregaram parte dela para as multinacionais que mandam aqui. De onde vêm essas firmas todas? São todas multinacionais. Têm a sua parte brasileira, sem dúvida. É preciso ter nome brasileiro, mas o capital…

– Mas esse discurso xenófobo costuma funcionar, né? Ele transforma um outro hipotético em inimigo maior e tira o foco do que realmente está em jogo… A gente vê isso em toda parte, inclusive com nossos vizinhos…

Dom Erwin – Sim, é um nacionalismo besta, nós já o conhecemos da História. E em que deu? Nacionalismo é ruim, sempre traz ao povo a aversão contra o que vem de fora. Deteriora todo o relacionamento, porque o recado é: “Nós somos os tais, os outros não são nada!”. Inclusive reclamam disso, às vezes, quando a gente anda lá fora, em outros países latino-americanos. Eu me lembro de um encontro do qual participei e todos tinham de se apresentar. Então eu disse: “Soy el obispo de la circunscripción eclesiástica más grande de Brasil”. O Xingu é a maior prelazia do Brasil e eu achei que era importante dizer, para que entendessem de onde eu vinha. Mas me olharam com certo desdém e disseram: “En Brasil, todo es lo más grande”. Os países latino-americanos têm uma aversão muito forte ao imperialismo brasileiro.

– É como se o Brasil fosse “os Estados Unidos da América do Sul”, né? Ouço essa expressão por onde ando…

Dom Erwin – Eu me calei e não disse mais nada. Então, se nós, dentro do Brasil, criamos esse tipo de xenofobia, precisamos nos dar conta de que isso é do tempo do onça, pertence a uma época histórica ultrapassada. Temos de mudar a nossa cabeça para estarmos à altura desse novo momento histórico. Num mundo chamado globalizado não podemos viver desse jeito. Por que não nos irmanamos realmente? Aqui no Brasil nós gritamos nossa aversão contra o estrangeiro e, quando o brasileiro vai lá fora, ele sente o mesmo na pele.

– O senhor viveu na Amazônia o projeto da ditadura militar, a mentalidade do “Brasil Grande”. O senhor encontra semelhanças entre o projeto de desenvolvimento para a Amazônia da ditadura e o projeto de desenvolvimento para a Amazônia dos governos democráticos de Lula e de Dilma?

Dom Erwin – Sim. Para mim, a única diferença é esta: hoje, temos uma ditadura civil… eleita.

– Por que uma ditadura?

Dom Erwin – Ditadura é quando alguém manda sem respeitar a Constituição: “Quem manda sou eu”. O paradigma é Belo Monte. Ao contrário do que o Lula afirmou, é um projeto imposto. As audiências públicas, previstas em lei, foram meros rituais para inglês ver. Montaram um enorme aparato policial para intimidar quem é contra Belo Monte. Os que serão realmente atingidos pela barragem não tiveram oportunidade de se manifestar. A maioria deles nem conseguiu se fazer presente, porque não mora na cidade em que a tal de audiência aconteceu. Sustento até hoje a convicção de que as licenças concedidas para o início da obra são inconstitucionais. As condicionantes previamente estabelecidas pelo próprio governo através do Ibama, como já falei, não foram cumpridas. O caos em Altamira é a prova mais eloquente de que o governo desrespeitou uma cidade com mais de 100 mil habitantes, tratando-a como o lixo do mundo. Os parâmetros constitucionais que amparam os cidadãos em termos de saúde, educação, habitação, saneamento básico, segurança, transporte simplesmente não foram e não estão sendo respeitados. E o governo faz vistas grossas. Não está nem aí. E ainda há político que, com a maior cara de pau, afirma que se trata do preço a ser pago pelo progresso. Verdade é que nem ele mesmo e nem a sua família o pagam. É o Pará que continua sendo tratado como “colônia”, explorado e aviltado, condenado a pagar, em termos ambientais e de prejuízos para seu povo, um preço exorbitante pelo “progresso” do resto do Brasil.

– De que forma os presidentes Lula e Dilma teriam desrespeitado a Constituição?

Dom Erwin – Os artigos 231 e 232, que na Carta Magna do Brasil tratam dos indígenas, estão sendo desrespeitados. As oitivas indígenas previstas em lei não aconteceram. Podemos inclusive provar que os índios foram enganados. Prometeram-se oitivas a eles e, depois, maquiaram de “oitiva” um simples encontro informal em que os índios foram meros ouvintes e em nenhum momento lhes foi perguntada a sua opinião. Má fé! Enganação! Pouca vergonha! Se o governo toma posições que não se coadunam com a Constituição Federal, então o Brasil, como Estado democrático de Direito, corre sério risco. O governo não está acima da Constituição. Se o governo se comporta de modo inconstitucional, então vivemos novamente numa ditadura.

– O Edison Lobão, ministro de Minas e Energia, falava em “forças demoníacas contra as hidrelétricas”. E o senhor já se referiu à Belo Monte como “monstruosidade apocalíptica”. Quando o senhor fala em “monstruosidade apocalíptica”, o senhor está dizendo exatamente o quê?

Dom Erwin – Demoníacas são as forças que o Lobão emprega para arrasar o Xingu. A destruição não vem de Deus. E o Lobão fala sem conhecer nada daqui. Nunca o vi por aqui. De lá, da altura do Planalto, são decididas as coisas. Aliás, é essa a nossa triste sina aqui na Amazônia. As decisões são sempre tomadas alhures, sem conhecer a nossa realidade, sem perguntar nada a ninguém. O nosso Pará e a Amazônia continuam sendo tratados como província. Antigamente o Brasil era uma “colônia”. A metrópole era Lisboa. Hoje a metrópole pode ser São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre. Nós aqui somos tratados como colônia. Uma colônia é onde a gente vai buscar as coisas. É por isso que a Amazônia é apelidada de “província mineral”, “província madeireira”, “província energética” e “última fronteira agrícola”. O pessoal vem, tira o que tem, e não sente nenhum remorso, ou o dever de pagar a conta. Carajás é o caso mais emblemático: arranca-se o minério, o que sobra é uma paisagem de crateras lunares. Quando a referência é a riqueza natural, se afirma em alto e bom som: “A Amazônia é nossa”. Por outro lado, quando a Amazônia necessita realmente de colaboração efetiva, de solidariedade concreta, tem-se a impressão de que nem pertence ao Brasil, é outro país. São dois discursos conflitantes. “A Amazônia é nossa”, mas na prática ela não é nossa – ou só é nossa quando precisamos dos recursos dela. De resto, está lá longe, que ela mesma se vire.

– Por que o senhor acha que essa relação colonial de exploração se perpetua na Amazônia até hoje?

Dom Erwin – É uma relação histórica. Vale inclusive lembrar que o Pará só aderiu à independência um ano depois do assim chamado “Grito do Ipiranga”. A Amazônia sempre pareceu outro mundo. E esta realidade se perpetuou até os dias de hoje. A Amazônia é “outro Brasil”, é “colônia” para o resto do Brasil, é a “província” prenhe de riquezas naturais para os outros, não para o uso e benefício próprio. Creio que o estado do Pará seja o mais rico em recursos naturais. No entanto, continua um dos mais pobres do Brasil.

“NÃO HÁ PALAVRAS PARA O QUE SENTI DIANTE DO CAIXÃO DA DOROTHY”

– O senhor acha que a luta contra Belo Monte é perdida?

Dom Erwin – Não, não acho. Eu não sou o tipo que pendura as chuteiras logo.

– A resistência parece estar diminuindo, agora que as obras já começaram e comunidades inteiras foram retiradas. Qual é a sua percepção?

Dom Erwin – Parece que a resistência está diminuindo. Mas as aparências enganam. Tem menos palanque, menos passeatas, menos manifestações públicas. Mas tem mais imprensa. Belo Monte, nos meios de comunicação nacional e internacional, continua sendo manchete, até de forma mais intensiva. De onde não se esperava nenhum apoio, surgem hoje vozes bem críticas e questionadoras. Há gente que anos ou até meses atrás defendeu Belo Monte e que hoje se manifesta contra. Logicamente, o caos que se instalou em Altamira ajuda o povo refletir. Foi isso que nós esperávamos? É esse o progresso tão sonhado? É esse o desenvolvimento prometido pelo governo e cantado e decantado em verso e prosa pelos políticos como “salvação do oeste paraense”?

– Como é a convivência em Altamira, entre opositores de Belo Monte e o pessoal do Consórcio Norte Energia, que executa obra? Afinal, Altamira é uma cidade não muito grande…

Dom Erwin – Nós sempre usamos meios pacíficos para expressar e manifestar nossa posição. Quem reage de modo agressivo é o governo e seu Consórcio Norte Energia S.A., que lapida e viola direitos, fere a própria Constituição Federal e chega ao absurdo de interditar a presença de representantes do Movimento Xingu Vivo para Sempre nas proximidades do canteiro de obras. Eu sou e sempre fui contra qualquer emprego de violência. Eu sou pela não violência, mas uma não violência ativa. Vamos usar de todos os meios não violentos para conseguir derrubar essa obra monstruosa. A prova que a violência está do outro lado é que estou há seis anos completos sob proteção policial. Por que teriam decidido me colocar sob a tutela da Polícia militar, se não estivessem com medo de alguma agressão que poderia ser fatal? Quem matou a Irmã Dorothy? Quem matou o Dema (Ademir Alceu Federicci, líder comunitário assassinado em 2001 no Pará)? Quem mandou matar tantos outros na Amazônia? Será que foram os engajados na defesa dos Direitos Humanos e do Meio Ambiente na Amazônia contra as investidas inescrupulosas dos facínoras de paletó e gravata em todos os níveis da política e da economia, das grandes empresas e dos grileiros de plantão?

Como o senhor lida com a necessidade de escolta 24 horas por dia, todos os dias? Imagino que seja bem difícil…

Dom Erwin – A gente não se acostuma. O relacionamento com os militares é muito bom, eles são muito respeitosos, são discretos. Agora, por exemplo, como você está aqui, eles não vão ficar na porta para ouvir o que você está falando, porque você havia telefonado, e o nosso encontro estava combinado. Mas eles são muito sensíveis quando desconfiam. É uma vida complicada para mim. Ao atravessar a praça para rezar a missa, ou para almoçar, ou para qualquer movimento meu, tenho que levar os policiais comigo. Ao ser convidado para um aniversário, para um batizado, tenho que dizer: “Vão dois ou três policiais comigo”. Se você me convida, vamos supor, para jantar hoje à noite, na beira do cais, comer um peixe, tenho que avisá-la: “Aceito, mas eu vou com dois homens”. Assim, geralmente declino de qualquer convite social.

O senhor não tem mais privacidade…

Dom Erwin – Não. Desde 29 de junho de 2006, às 22h. Nesta data, neste horário, apareceu o comandante com dois policiais aqui e, desde então, estou sob escolta. Para mim, a vida mudou muito desde então. Proibiram-me tudo. Em vez de andar às 5 horas da manhã na beira do Xingu, é aqui nesse corredor que eu ando: 65 passos para frente, 65 para trás.

– E vai ser assim para sempre?

Dom Erwin – Pelo que eu vejo… Em 26 de janeiro de 2009, o superintendente regional da Polícia Federal no Estado do Pará, Manoel Fernando Abbadi, me recebeu em audiência. Foi muito gentil e compreensivo. Naquela ocasião, ele me aconselhou seriamente a não solicitar a saída do programa de proteção. Ao me desligar do programa, eu me tornaria alvo fácil dos que querem me eliminar e poderiam fazê-lo sem maiores obstáculos, já que viajo muito pelo interior.

Por que o senhor está ameaçado de morte?

Dom Erwin – Acho que há quatro motivos. O primeiro é a Dorothy (Stang). Esse pessoal que a matou, que mandou matá-la, sabe que tenho as informações. Eles não me veem com bons olhos.

– Informações?

Dom Erwin – Eu sempre tomei partido em favor dela. Disseram que a Dorothy estava armando o povo e não sei mais o quê… Eu, que aceitei essa mulher aqui, sempre a defendi. Tinha falado para ela: “Cuidado, Dorothy”. Alguém até fretou um avião aqui em Altamira para me encontrar em São Félix do Xingu. Pediram que eu tirasse a Dorothy “de circulação” e a mandasse de volta para os Estados Unidos. Fretaram, sim, um avião! Uma hora e meia de voo. Eram 9 horas da manhã. Eu rezava o breviário na casa paroquial, pouco antes de ir para uma comunidade. De repente, bateram na porta, e eu abri: “O que vocês fazem aqui?”. Eram fazendeiros. “Temos que falar urgente com o senhor, fretamos um avião para encontrar o senhor. O senhor vai ter que tirar essa mulher de Altamira”.

– E o senhor já disse isso para a polícia?

Dom Erwin – Polícia? Naquele tempo eu não falei com a polícia. Não falei porque não confiei, mas aguardei ser chamado em juízo para contar o que sei. Isso nunca aconteceu. Não se lembraram de que fui eu que a admiti em 1982 na prelazia do Xingu e sugeri a ela que fosse para a Transamazônica-Leste, para a área que hoje corresponde ao município de Anapu. Em 15 de fevereiro de 2005 enterrei a Dorothy. Enterrei. Você não imagina o que passa no coração de uma pessoa quando está diante de alguém que durante tantos e tantos anos trabalhou e que deu o melhor que podia dar. Que pediu para mim para trabalhar entre os pobres mais pobres. E eu disse: “Mulher, tu não vais aguentar isso. Tu vens lá dos Estados Unidos, com conforto e tudo, tu não vais aguentar”. E ela: “Mas me deixe”. Deixei, e ela ficou até o dia em que foi assassinada. De repente, no aeroporto de Belém, quando estou voltando para cá, recebo um telefonema: “Mataram a Dorothy”. E aí foi aquela confusão toda, e finalmente a enterrei, lá em Anapu.

– O que o senhor sentiu?

Dom Erwin – É uma experiência terrível! Terrível! Impossível de descrever. Vieram senadores, deputados, representante do Lula, vieram tantos políticos para o enterro. Ficamos lá, diante do caixão, bandeira brasileira por cima do caixão…. Eu posso lhe dar todos as homilias que eu fiz nos aniversários de morte da Dorothy. A cada ano que passa celebramos a morte dela, e eu faço um homilia especial. Mas o que eu senti lá naquele momento, diante do caixão, não tenho palavras para expressar, não há palavras para mim. (Faz um longo silêncio). Mataram a Dorothy. Não morreu de morte morrida, como se diz, mas de morte matada. E por quê? Porque se colocou do lado de pobres coitados que não têm onde cair morto. E o fato de ela se colocar ao lado dos pobres coitados fez com que a ganância e a ambição desses insaciáveis fosse colocada em xeque.

– O que mudou depois da morte dela?

Dom Erwin – É até constrangedor para mim responder a esta pergunta. Houve avanços, sim, na gestão e na administração dos PDS (Projetos de Desenvolvimento Sustentável). O povo simples até hoje se sente respaldado pela morte da Irmã na luta pelos seus direitos à terra e à sobrevivência naquela terra. A Romaria da Terra, que se realiza em Anapu todos os anos, no mês de julho, é prova de que o povo daquela área rural continua firme e decidido na defesa do que é dele. Mas há o outro lado, que é muito triste. Por isso digo que é constrangedor responder. Há gente que hoje ocupa cargos políticos e melhorou de condições de vida que antes andava de braços dados com a Irmã Dorothy e conosco. Hoje está do outro lado e defende o que antes condenou. Chamo esse tipo de gente de traidor, como também chamo o partido que incorpora hoje essas pessoas de traidor. Venderam a mãe, traíram os ideais, perderam a ética.

– E quais foram as outras razões, além da morte da Irmã Dorothy, para a sua escolta permanente?

Dom Erwin – A segunda razão para a proteção é que eu sou presidente do CIMI (Conselho Indigenista Missionário) e me empenho em favor dos povos indígenas. Sempre lutei ao lado deles. Sei que a Igreja cometeu muitos erros ao longo da sua história, mas não adianta lamentar o passado e condenar o que aconteceu. O importante é fazer diferente. Como o nosso papel foi fundamental na inserção dos direitos indígenas na Constituição Brasileira, foi neste contexto que eu sofri um acidente em 1987.

– Um acidente ou uma tentativa de homicídio?

Dom Erwin – Até hoje nunca investigaram. Eu fiquei seis semanas no hospital. Quebrei a cara, literalmente. Mas me consertaram. Um padre morreu, com apenas 31 anos. Os primeiros dias foram terríveis. Eu aprendi o que era dor no hospital, sem poder dormir. A noite não passa, e você começa a avaliar também a sua vida. Pensei muito na família do padre que morreu, único filho homem daqueles pais. Foi terrível.

– Como foi esse acidente?

Dom Erwin – Em agosto de 1987, durante cinco dias, um dos jornais de maior circulação no país publicou matérias horríveis contra o CIMI. Acusaram-nos de tudo. E eu era presidente do CIMI. Foi constituída uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito. Você ouviu falar em Márcio Thomaz Bastos, né? Naquele tempo ele era presidente da OAB. Encontrei-me com ele na sede da CNBB. Dom Luciano Mendes era o presidente da CNBB e meu grande amigo, defensor intransigente dos povos indígenas e de seus direitos. Considero-o um santo! Pois bem, Márcio Thomaz Bastos me disse: “Dom Erwin, não se preocupe. Essas acusações não têm nenhum fundamento, são grosseiras e de baixo nível. Vamos elaborar um dossiê completo e responder a cada calúnia”. Os advogados do CIMI me pediram que eu não saísse de Altamira, ou pelo menos que não fosse distante. Brasil Novo fica a cerca de 45 quilômetros de distância. E as comunidades da Transamazônica estavam reunidas lá para exigir do governo o conserto das estradas. O inverno, período das chuvas, estava chegando, e as estradas estavam intrafegáveis. Não tinha acesso para hospital, para médico e até uma dor de dente podia ser fatal. Eu então fui me solidarizar com esse povo no dia 15 de outubro de 1987. Rezamos missa, cantamos. E aí me perguntaram se eu não poderia voltar no outro dia, porque seria o encerramento da manifestação deles. Mas caíram na besteira de avisar pelo alto-falante: “Olha, nosso bispo vai voltar amanhã, e às 3h da tarde vamos celebrar a missa. Depois a gente encerra a nossa manifestação lendo a carta de nossas reivindicações”. Aí eu fui lá. Exatamente no meio do caminho, o acidente aconteceu. No topo da ladeira, eu vi um carro de cor clara. E pensei que esse carro viesse ao meu encontro. Mas ele não veio até hoje. Dizem que estava lá apenas para dar o sinal. Bem no topo da ladeira, que abre para uma reta, veio um caminhão e abalroou o nosso Gol. Mesmo gravemente ferido, eu não perdi a consciência em nenhum momento e vi ainda dois homens descerem do caminhão e empreenderem a fuga. Bati no ombro do padre ao meu lado e chamei o seu nome. Não respondeu mais. Estava morto.

– Foi uma tentativa de homicídio?

Dom Erwin – Era o que se dizia. Mas até hoje não foi feita nenhuma investigação. O motorista desapareceu. No carro que estava lá no topo da ladeira para dar o sinal de que estávamos vindo estava o delegado de Brasil Novo. Ele foi morto poucos meses depois, quando assistia à televisão, na sua casa. Queima de arquivo? Não sei. Só sei que eu fiquei fora de combate e até hoje não fui chamado à Brasília para depor e tomar posição frente às calúnias e difamações criminosas. O processo foi arquivado. Um desconhecido foi ver o padre falecido no necrotério do hospital em que me internaram para os primeiros socorros. Afastou o lençol da cabeça do falecido e declarou: “Foi o errado que morreu!”. Coisa macabra! Até hoje há pessoas que não admitem o meu trabalho junto aos índios. E xingam: “Esse bispo não tem o que fazer, fica defendendo esses caboclos”. A defesa dos índios, então, é a segunda razão para que minha vida seja protegida. A terceira razão é Belo Monte. No jornal O Liberal estava escrito: “Esse religioso que está em Altamira tem que ser eliminado”.

– Mas quem disse isso?

Dom Erwin – Em 2006, empresários e políticos declararam guerra contra o bispo do Xingu e os movimentos sociais. Gritaram do alto de seus palanques: “Vamos para a guerra!“. E prometeram “descer o cacete“, numa explícita incitação à violência. Alicerçaram essa sórdida investida em um artigo publicado na página 11 do jornal “O Liberal”, de Belém do Pará, de 5 de junho de 2006. O artigo era assinado pelo economista Armando Soares e intitulado: “Reagir é a palavra de ordem”. Até a própria CNBB moveu um processo. Então, entre outras coisas, sempre gritavam: “Enquanto esse bispo existir, Belo Monte não vai sair”. Uns meses atrás, um cara ainda gritou na frente de uma funcionária nossa: “Mataram a Dorothy, que não tinha nada a ver. Quem tinha de estar morto era esse bispo”. É com toda essa hostilidade que alguns me tratam. É uma minoria, eu diria até insignificante, mas muito barulhenta. Uma máfia. O povo não está contra o bispo, disso tenho certeza. Pelo contrário, nunca recebi tanta declaração de amor como a partir desses episódios. Na igreja, botaram faixas: “Nós te amamos”. Uma mulher veio ao altar, pegou o microfone, chorou e disse: “Dom Erwin, eu sei o que o senhor está passando. Mas, olhe, não entregue os pontos, pelo amor de Deus. Nós estamos ao seu lado! Nós te amamos…”. E a quarta e última razão, que pode até ser a gota d’água, o que fez a coisa transbordar, foram os abusos sexuais de meninas. Outro capítulo terrível que vivi. Nós já lutamos naquele tempo dos emasculados (uma série de meninos castrados e assassinados na região de Altamira), não sei se já ouviu falar…

– Sim.

Dom Erwin – Aconteceu de 1989 a 1993. A prelazia assumiu a defesa dessas famílias e até hoje nós movemos os processos. Ninguém fez nada, até que a prelazia assumiu a causa. E fomos gritar pelo Brasil e pelo mundo afora. E, de repente, em março de 2006, vieram as mães e as professoras dizendo: “Bispo, a coisa está ruim mesmo. Tem uns absurdos acontecendo aqui. O pessoal foi na delegacia dar parte, mas chamaram as nossas filhas de ‘putinhas’”. Pegavam as meninas aqui no colégio, na sexta-feira à tarde. Meninas de 12, 13 anos, bonitinhas, em um carrão, dizendo: “Vamos dar uma volta!”. Levaram-nas para uma chácara e fizeram sexo com elas. Rolou álcool e drogas. Verdadeiras orgias. E, como se isso não bastasse, filmaram tudo. Podia pegar um DVD aqui, em qualquer canto, com as mocinhas do colégio daquele jeito. Aí vieram falar comigo. Aí assumi essa causa. Fiz logo uma carta para o secretário Paulo Vannuchi (secretário nacional de Direitos Humanos no governo Lula), e depois para o ministro da Justiça, para o secretário de Estado de Segurança Pública, e para tudo quanto era gente grande. E, de fato, houve uma repercussão. Mandaram uma delegada, e ela me pediu que falasse o que sabia. Convidou-me para um encontro na Delegacia da Mulher. Aí contei tudo. Mas disse: “Olhe, a única coisa que não vou lhe dizer são os nomes, porque as pessoas que me confidenciaram isso podem correr riscos”. Ela concordou. Então assinei o depoimento. E quando eu saí daquele gabinete já vi um daqueles caras sentado. Ele me reconheceu, e eu também o reconheci. E aí logo correu a notícia pelas ruas da cidade de que o bispo tinha denunciado aquela quadrilha. Depois os canais de TV vieram entrevistar-me e eu, naturalmente, não tive mais papas na língua. Na hora da entrevista eu disse, diante da televisão: “Esses caras são todos uns monstros, que têm de ser presos e trancafiados. Eles não merecem viver no meio da sociedade!”. Aí houve uma virulenta, uma forte campanha contra mim, inclusive com faixas.

– Como o senhor lida com a impotência, no sentido de que, apesar de todos os seus esforços, são muitas as derrotas e, como o senhor contou, muitas as traições?

Dom Erwin – Precisamos entender que nem tudo é derrota ou fracasso. Se eu comparar a época de 1965 e o tempo atual, vejo que o povo também se tornou mais maduro. O povo não engole mais qualquer sapo. Antigamente, o político vinha aqui, comprava uma grade de cachaça, embriagava todo mundo, mandava matar um porco e saía eleito. Hoje, não. O pessoal simples do povo ganhou maturidade política. E nós formamos as comunidades desde a construção da Transamazônica, lideranças que estão na frente até hoje. Quando vejo, também, os direitos indígenas na Constituição, os artigos 231 e 232, sei que fiz a minha parte. Eu não posso dizer que sou um frustrado, de jeito nenhum.

– Me chama atenção o número de mulheres à frente da luta contra Belo Monte. Fora um ou outro homem, são as mulheres que estão liderando a resistência. Como o senhor vê esse fenômeno?

Dom Erwin – Para mim se trata de uma predisposição psicológica que as mulheres tem. Os homens são imediatistas. A gente escuta isso: “Vai ter dinheiro na praça!”. Digo até que os homens são ingênuos. Havia comerciante que pensou que iria “enricar” por conta de Belo Monte. Mas uns já começaram a ficar com o pé atrás, porque estão notando que o dinheiro não chegou até agora. Mas a mulher está ligada, pelo seu ser, por seu coração e por sua psique à geração que vem. A mulher coloca gente no mundo, dá à luz, e está quase que instintivamente preocupada com o futuro da prole. Essa tese se sustenta pela antropologia e pela psicologia. Eu tenho percebido nesses anos todos que as mulheres sempre têm muito mais visão para o futuro porque se trata do filho, da filha, do neto, da neta, cujas vidas estão em jogo. E o homem pensa no dinheiro, no imediato. Não digo todos os homens, mas uma grande parte. Políticos também. Políticos falam na salvação e redenção do oeste do Pará. Com raras exceções não têm visão que ultrapassa a ambição de ganhar votos e manter-se no cargo. E mais uma vez eu volto para o índio. Em 2007, no final de uma reunião, um índio subiu na carroceria do caminhão, pegou o microfone e disse: “Olhem para o Xingu e pensem o que será de nossas crianças. Nós não vamos permitir que a cultura dos nossos antepassados vá para o fundo do rio”. Ele fez a ponte entre o futuro e o passado.

– Mas há notícias de que a maior parte das etnias indígenas abriu mão da resistência em troca de “benefícios”, de cestas básicas a voadeiras e televisões. Qual é a sua percepção?

Dom Erwin – Há uma nova maneira de acabar com os povos indígenas, o “auricídio”, além do genocídio e do etnocídio. Mata-se a cultura e a organização comunitária indígena com o dinheiro. E esta agressão talvez seja pior e mais sutil e desavergonhada, pois mata a cultura e as organizações sociais dos povos indígenas sob a aparência de solidariedade – e sob o manto da indenização para mitigar impactos e efeitos negativos de Belo Monte. Nunca digo que o índio está a favor de Belo Monte. Depois de viver séculos à margem da sociedade, passando necessidades e rejeitado pela sociedade majoritária, de repente está na berlinda e é brindado com todo o tipo de presente e benefício. Quem vai aconselhá-lo a não receber tais benefícios? Só que atrás desses presentes existe um sistema, uma estratégia de quebrar a resistência dos povos indígenas.

– Quando o senhor fala da liderança das mulheres, na luta contra Belo Monte, atribui sua motivação à preocupação com as gerações futuras. Como o senhor enquadraria a presidente Dilma Rousseff nessa visão?

Dom Erwin – É, a Dilma, não sei o que dizer…

– Ela é a primeira mulher na presidência do país…

Dom Erwin – Eu gosto de uma mulher na presidência, mas eu pensei que, como mulher, ela ficaria mais sensível à nossa situação. Mas foi a Dilma quem pariu o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento). Então, politicamente, ela nunca vai se afastar disso. A gente pode fazer a manifestação que fizer. Mas ela corta qualquer diálogo, já na raiz. Belo Monte não é tema para discutir. Ela é muito dura, intransigente, não aceita opinião divergente. Parece estar obcecada pela ideia de ser a construtora da terceira maior hidrelétrica do mundo e, talvez, ser a presidente que fará funcionar as primeiras turbinas. Meio ambiente, índio, ribeirinho, povo de Altamira, para a Dilma nada disso importa. Construir Belo Monte não foi uma decisão técnica, mas sim política, tomada contra as advertências de cientistas e professores de nossas melhores universidades. A história da Amazônia, do Brasil e da Terra julgarão logo mais o Lula e a Dilma, de modo muito severo, como depredadores inescrupulosos e causadores de impactos que alteraram irreversivelmente o clima do planeta. Todos nós sabemos da função reguladora do clima que a Amazônia exerce. Belo Monte surtirá um efeito dominó. Com Belo Monte se dá luz verde a dezenas de outras hidrelétricas já projetadas para a Amazônia. Belo Monte é o punhal empunhado por Lula e Dilma et caterva para ferir mortalmente o coração da Amazônia.

– Como é o seu Xingu hoje? O senhor teve o Xingu mítico da sua infância e depois o Xingu de quando chegou aqui… Mas como é o Xingu de quem está com quase 73 anos de idade e 47 anos de Xingu?

Dom Erwin – Para mim, o Xingu simboliza a resistência desse povo e dos povos que estão aqui. Antigamente nem sonhei que precisava resistir, era óbvio. Mas, hoje, o Xingu conta a história dos povos daqui e também dos massacres dos séculos passados. E massacres que não estão tão distantes assim, no tempo, quando arrasaram aldeias inteiras. O Xingu tem história de sangue derramado, mas hoje tem também a história da resistência de um povo. Por isso a gente fala do Xingu Vivo para Sempre (movimento contra Belo Monte que reúne várias organizações sociais). Porque não podemos acreditar que será dado o ultimato para o Xingu, que esse rio grandioso vai virar simplesmente uma cloaca.

– Qual é o tamanho dessa perda, para o senhor?

Dom Erwin – Para mim é sempre o último pedaço do paraíso que Deus criou. Esse impacto… Não posso concordar com isso. Não é por sentimentalismo. Mas o Xingu não é só o rio, a água, as praias, é também os povos daqui, que viviam desde tempos que se perdem na História, e depois os ribeirinhos que vieram nos séculos 18, 19, início do século 20. E depois os imigrantes que também vieram nos anos 70. Eles hoje já se identificaram com o Xingu, já pertencem ao Xingu. Têm olhos azuis e cabelo loiro, mas são daqui. Esse povo todo, misturado, para mim é o Xingu.

– O senhor lutou tantas décadas contra Belo Monte. O senhor acha que há alguma chance de vencer essa luta, com a construção já em andamento e com tanta gente desistindo dela? Qual é o cenário hoje e quais são as suas expectativas?

Dom Erwin – Posso ser considerado ingênuo, mas eu ainda não acredito que estejamos na “casa do sem jeito”. Tenho até a sensação de que o próprio rio Xingu não vai ficar “quieto” enquanto querem matá-lo. Os geólogos e gente que entende do assunto falam no Xingu como rio que ainda está “in statu fieri”. Quer dizer: ainda não está pronto, ainda se constitui, se constrói, se mexe, se impõe. O Xingu é um rio “vivo”. Não confio, em absoluto, nos estudos dos que defendem Belo Monte. Os estudos foram feitos simplesmente para corroborar uma decisão política já tomada – e estudos desse tipo para mim carecem de seriedade. O Xingu é enigmático e imprevisível em sua maneira de reagir. Mas penso também que os homens e mulheres que até agora defenderam Belo Monte um dia vão cair na real. Espero apenas que, quando caiam na real, o estrago já não seja total.

– O Brasil vai sediar, nos próximos dias, a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio + 20, duas décadas depois da Rio 92. O senhor tem alguma esperança nessa conferência?

Dom Erwin – Sim, tenho esperança. Não tanto nas discussões oficiais, mas sim naquilo que acontecerá na margem ou ao redor da Rio + 20. Eu sei que gente de toda parte vai aproveitar os espaços e não vai se calar. E também o Xingu e Belo Monte e a Amazônia serão temas discutidos por pessoas de ponta, tanto em nível do Brasil como do mundo todo. E tem mais. Enquanto acontece a Rio + 20, no Xingu acontecerá a Xingu + 23, lembrando nossa luta contra Belo Monte, que já dura 23 anos e seguramente não será uma luta perdida.

Reportagem publicada na Revista Época

A volta do Brasil Grande que pensa pequeno

Ao contar o passado, pela epopeia dos Irmãos Villas Bôas, o filme “Xingu” ilumina o presente. E coloca a plateia diante de uma questão atual e incômoda: omissão também é protagonismo

Xingu, o filme de Cao Hamburger, conta a saga dos três irmãos Villas Bôas em seu confronto com o Brasil que não sabia que era Brasil. Nos anos 1940, Orlando (Felipe Camargo), 27 anos, Cláudio (João Miguel), 25, e Leonardo (Caio Blat), 23, mentiram que eram analfabetos sem profissão para se alistar na Expedição Roncador-Xingu, que desbravaria o centro do país. O que acontece a partir do momento em que três jovens de classe média partem em busca de aventura e encontram de forma brutal não só uma outra civilização, mas também a si mesmos, é História. E, infelizmente, uma história que vai sendo esquecida. Mas, ao iluminar o passado, Xingu, o filme, ilumina Xingu, a vida. E o ilumina para além do Parque Nacional do Xingu, o grande feito dos Irmãos Villas Bôas, consumado em 1961. Ilumina com verdades suficientes para questionar a plateia em outras verdades: por que permitimos, pela omissão da maioria, que a faraônica obra de Belo Monte – aqui, agora – destrua uma das maiores riquezas culturais e biológicas do planeta? Por que, em um governo dito popular, se reedita o autoritarismo para impor um elefante branco da democracia, com a nossa cumplicidade? A plateia que assiste ao filme precisa responder, ao deixar a sala de cinema, a uma pergunta bem incômoda: por que, na vida, não consegue deixar de ser plateia.

O filme termina quando a Transamazônica começa a ser construída. Naquele momento, com uma imprensa censurada pela ditadura e um país dominado pelo ufanismo do “Brasil ame-o ou deixe-o”, do “Integrar para não Entregar”, do “Terra Sem Homens para Homens Sem Terra” talvez só Orlando e Cláudio Villas Bôas – além do governo militar e de seus apoiadores – eram capazes de compreender o que aconteceria quando a estrada rasgasse a selva e literalmente a encharcasse de sangue. Hoje, não. Nenhum de nós tem a desculpa de não saber o que já aconteceu. Nenhum de nós tem a desculpa de ignorar a destruição da floresta e a matança de gente, bicho, planta e cultura consumada no Brasil Grande da ditadura militar. Nenhum de nós tem a desculpa de ignorar a ocupação incompetente e a trilha de mortes que só faz aumentar. Não há desculpa para a ignorância do passado. E penso que não há desculpa para a omissão no presente, diante do futuro.

Quando a Transamazônica se desenhava na tela, era Belo Monte que estava bem ali. Assisti ao filme enxergando o presente, e não apenas o passado – e por isso saí do cinema devastada. Vi o passado enxergando o presente porque o passado tornou-se, de novo, presente. E é com esse presente que temos o desafio de lidar. Quando a Transamazônica foi imposta pela ditadura militar, boa parte dos vivos de hoje nem sequer tinha nascido ou ainda era criança, como eu. Agora, não. Estamos todos aqui.

Conhecer a Amazônia exige um movimento – e um desejo maior. Assistir ao filme é muito fácil. Se puderem, assistam ao Xingu e, na última cena, uma das mais belas do nosso cinema, se enfiem na pele de um dos Irmãos Villas Bôas e percebam que, querendo ou não, é diante desse olhar que nós todos estamos – agora.

Acho que este é o mérito dos grandes filmes: não permitir que nos instalemos no conforto eterno da poltrona de cinema. Tornar impossível o pensamento comodista de que aquilo não nos diz respeito – seja porque já aconteceu, seja porque é a dor de um outro muito diferente. Ou ainda porque não nos convém – e nos acreditamos a salvo. E aqui não se trata da arte utilitarista ou engajada, mas do fato de que os bons filmes, assim como a boa literatura, nos confrontam com pessoas complexas num mundo complexo – e não meros heróis em um mundo plano. Como quando Cláudio Villas Bôas diz, ao perceber que, salvando, ele também destrói: “Somos o veneno e o antídoto”. Ou: “Há uma coisa deles que morre pra sempre assim que a gente encosta”.

É por acolher o conflito que os bons filmes, mesmo que nos contem de mundos e de gentes distantes, ecoam na vida de todos nós. Pescam nossos demônios internos e os fazem dançar diante dos nossos olhos. Os bons filmes, como os bons livros, nos transtornam por dentro, mesmo que ninguém fique sabendo porque só a nós diz respeito; e nos transtornam de dentro para fora, como neste caso, ao percebermos que a omissão também é um tipo de protagonismo. Os bons filmes são como os bons governos: acolhem o conflito e dialogam com o contraditório. Os maus filmes são como os maus governos: calam os conflitos e chamam o contraditório de “fantasia”. Xingu é um bom filme.

Os realizadores de Xingu já tinham deixado explícita a intenção de, ao contar a epopeia histórica dos Irmãos Villas Bôas, criar uma oportunidade para pensar sobre os dilemas do Brasil atual. “Se o filme conseguir trazer a história desses caras para uma discussão do futuro e do presente seria muito legal. Apesar de ser um filme de época, é muito contemporâneo. Uma das coisas que me encantaram nessa história foi essa possibilidade de discutir coisas contemporâneas contando uma história do século passado”, disse à imprensa Cao Hamburger, o diretor, durante o lançamento do filme. E, em outro momento: “A ideia é que a gente repense a maneira como somos. O que é o progresso hoje? Que crescimento a gente quer?”.

Também os atores, ao viverem o Xingu para encenar o Xingu, confrontaram-se com os conflitos vividos por seus personagens – mas também os incorporaram como cidadãos diante da experiência para além da filmagem. “Os Villas Bôas fizeram uma previsão: que o encontro (entre brancos e índios) era inevitável e a civilização ia chegar à fronteira do rio. E eles chamavam isso de ‘abraço da morte’. De avião a gente vê claramente a devastação ao redor. Então esse ‘abraço da morte’ chegou”, contou Caio Blat. “Não teve um dia de filmagem que não vimos fumaça de queimada. Até o set queimou, a equipe toda ajudou a apagar o fogo. E isso acontece sempre: aconteceu quando filmamos, aconteceu no ano passado, vai acontecer este ano de novo”, afirmou Felipe Camargo. “A ecologia não pode mais ser vista como uma coisa bonitinha, ‘vamos preservar a natureza’. Não: vamos preservar a nossa vida.”

Ao refletir sobre a experiência de filmar Xingu no Xingu, Cao Hamburger declarou: “Considero que essa cultura e essa filosofia de vida deles não estão paradas no tempo, elas estão em desenvolvimento, como a nossa. O que está me interessando muito é o que nós podemos aprender com essa cultura. O Brasil tem um tesouro que faz questão de esconder e desprezar, e está perdendo a oportunidade de absorver e aprender com eles. A cultura deles é muito rica, muito sofisticada, e o Brasil tem muito a ganhar”.

O cineasta Fernando Meirelles, produtor do Xingu, foi contundente em suas afirmações ao longo da série de entrevistas sobre o filme: “O que eu acho que vale ressaltar do filme é como ele é atual. Vindo para cá, eu li no jornal que o Megaron Txucarramãe, que era coordenador da Funai no norte do Mato Grosso, tinha sido demitido porque tem uma posição contrária a Belo Monte (outubro de 2011). É a história do filme, da Transamazônica, se repetindo. O filme não poderia ser mais atual, nesse momento em que Belo Monte e o Código Florestal são assuntos muito fortes”. E, mais tarde: “Eu, pessoalmente, acho que Belo Monte é um dos maiores erros atuais. A gente está construindo usinas basicamente para poder aumentar a produção de alumínio. Vai comprometer toda aquela área pra produzir mais alumínio. É esse o progresso que queremos?”.

Em outra manifestação, Fernando Meirelles foi ainda mais direto: “A Transamazônica do filme é a Belo Monte de hoje. Aquele deputado de terninho é a Kátia Abreu (senadora da bancada ruralista pelo PSD/TO). Isso está muito claro”. No filme, há ainda um militar que é a cara desse governo no trato de Belo Monte e das questões ambientais. Só não gritei – “Nossa, é a Dilma Rousseff!” – porque faço uma campanha persistente pelo silêncio no cinema. Quando Orlando Villas Bôas tenta explicar que a Transamazônica vai passar por cima dos Kren Akarore, uma etnia isolada, o militar declara: “Limpe o caminho. Mas tem que ser rápido”.

Há de se eliminar aquilo que “atravanca” o progresso ontem, o desenvolvimento hoje – tirar da frente, custe o que custar. “Resolver”. E rápido. Como a História mostrou, dos 600 Kren Akarore restaram 79 depois da abertura da Transamazônica. Ou seja: o efeito da Transamazônica, apenas sobre uma única etnia indígena, foi um genocídio de mais de 500 seres humanos. E a Transamazônica até hoje é uma picada intrafegável boa parte do ano, apelidada por onde passa de “Transamargura”. As obras de Belo Monte começaram – sem o cumprimento das condicionantes ambientais – e o estrago já é visível.

Entre os desafios que um futuro biógrafo enfrentará ao contar a vida e a obra de Dilma Rousseff está o seguinte paradoxo: como uma mulher que entrou na clandestinidade, pegou em armas para lutar contra o autoritarismo e pagou pela sua coerência o preço altíssimo de ter sido torturada vira uma ministra, primeiro, uma presidente depois, que, em se tratando de políticas para a Amazônia e o meio ambiente, incorpora – e o pior, implanta – a mesma visão da ditadura militar que combateu. De novo, estamos de volta ao Brasil Grande que pensa pequeno – mas em plena democracia e numa imprensa sem censura oficial. Acho o paradoxo fascinante do ponto de vista humano, mas um desastre para o país.

Talvez, hoje, a presidente Dilma Rousseff passasse um pito na guerrilheira Dilma Rousseff: “Não há espaço para a fantasia”. E imediatamente esquecesse que foi essa “fantasia” que tornou possível não só a própria democracia, mas a ascensão de um operário à presidência do Brasil. E também a tudo o que veio depois – inclusive ela. Foi essa mesma frase, em minha opinião a mais infeliz de sua trajetória como presidente, possivelmente de sua vida, que Dilma Rousseff declarou aos ambientalistas que combatem Belo Monte, no início de abril, afirmando que não mudará sua política de “desenvolvimento” para a Amazônia. O que nos faz concluir que, diante dos Irmãos Villas Bôas, os indigenistas de ontem, Dilma Rousseff só poderia dizer o mesmo que diz para os indigenistas de hoje: “Não há espaço para a fantasia”.

Cara presidente, se não existisse “fantasia” não existiria humanidade – não existiria nem mesmo o conceito de nação. Como disse Fernando Meirelles, no site da produtora O2 Filmes: “Sonhe um pouco, presidenta. Ou ao menos escute o sonho dos que conseguem sonhar”.

(Publicado na Revista Época em 16/04/2012)

Belo Monte, nosso dinheiro e o bigode do Sarney

Um dos mais respeitados especialistas na área energética do país, o professor da USP Célio Bermann, fala sobre a “caixa preta” do setor, controlado por José Sarney, e o jogo pesado e lucrativo que domina a maior obra do PAC. Conta também sua experiência como assessor de Dilma Rousseff no Ministério de Minas e Energia

Se você é aquele tipo de leitor que acha que Belo Monte vai “afetar apenas um punhado de índios”, esta entrevista é para você. Talvez você descubra que a megaobra vai afetar diretamente o seu bolso. Se você é aquele tipo de leitor que acredita que os acontecimentos na Amazônia não lhe dizem respeito, esta entrevista é para você. Para que possa entender que o que acontece lá, repercute aqui – e vice-versa. Se você é aquele tipo de leitor que defende a construção do maior número de usinas hidrelétricas já porque acredita piamente que, se isso não acontecer, vai ficar sem luz em casa para assistir à novela das oito, esta entrevista é para você. Com alguma sorte, você pode perceber que o buraco é mais embaixo e que você tem consumido propaganda subliminar, além de bens de consumo. Se você é aquele tipo de leitor que compreende os impactos socioambientais de uma obra desse porte, mas gostaria de entender melhor o que está em jogo de fato e quais são as alternativas, esta entrevista também é para você.

Como tenho escrito com frequência sobre a megausina hidrelétrica de Belo Monte, por considerar que é uma das questões mais relevantes do país no momento, observo com atenção as manifestações dos leitores que comentam neste espaço ou em redes sociais como o Twitter. Anotei as principais dúvidas para incluí-las aqui e assim colaborar com o debate.

Desta vez, propus uma conversa sobre Belo Monte a Célio Bermann, um dos mais respeitados especialistas do país na área energética. Bermann é professor do Instituto de Eletrotécnica e Energia da Universidade de São Paulo (USP), com doutorado em Planejamento de Sistemas Energéticos pela Unicamp. Publicou vários livros, entre eles: “Energia no Brasil: Para quê? Para quem? – Crise e Alternativas para um País Sustentável” (Livraria da Física) e “As Novas Energias no Brasil: Dilemas da Inclusão Social e Programas de Governo” (Fase). Ex-petista, ele participou dos debates da área energética e ambiental para a elaboração do programa de Lula na campanha de 2002 e foi assessor de Dilma Rousseff entre 2003 e 2004, no Ministério de Minas e Energia. Célio Bermann foi também um dos 40 cientistas a se debruçar sobre Belo Monte para construir um painel que, infelizmente, foi ignorado pelo governo federal.

Vale a pena ouvir o professor a qualquer tempo. Mas, especialmente, depois de uma semana dramática como a passada. Na quarta-feira (26/10), o julgamento da ação movida pelo Ministério Público Federal reivindicando que os índios sejam ouvidos sobre a obra, como determina a Constituição, foi interrompida e adiada mais uma vez no Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em Brasília. Na mesma quarta-feira, chamado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) para explicar por que não suspendeu as obras de Belo Monte, o Brasil não compareceu, desrespeitando o organismo internacional e exibindo um comportamento mais usual em ditaduras. Em reportagem publicada em 20/10, o Estadão denunciou que, como retaliação por ter sido advertido sobre Belo Monte, o Brasil deixou de pagar sua cota anual como estado-membro.

Na quinta-feira (27/10), centenas de pessoas, entre indígenas, ribeirinhos e moradores das cidades atingidas, ocuparam pacificamente o canteiro de obras de Belo Monte, no rio Xingu, pedindo a paralisação da construção da usina. Foram expulsos por ordem judicial. Enquanto o canteiro de obras era ocupado por uma população invisível para o governo de Dilma Rousseff, o cineasta Daniel Tendler apresentava no Seminário Nacional de Grandes Barragens, no Rio de Janeiro, o projeto de uma megaprodução cinematográfica que se propõe a documentar as obras de Belo Monte por cinco anos. O projeto é comandado pela LC Barreto, a produtora da poderosa família Barreto, a mesma que fez “Lula, O Filho do Brasil”. Tendler, aliás, foi um dos roteiristas do filme sobre a vida do ex-presidente. Entre as repercussões da megaprodução cinematográfica sobre a megaobra do PAC no Twitter, destacou-se uma: “Os Barreto estão para o cinema nacional como os Sarney para a política”.

Ainda na semana passada, o governo federal publicou um pacote de sete portarias ministeriais com o objetivo de “destravar a concessão de licenças ambientais no país para acelerar grandes empreendimentos, como rodovias, portos, exploração de petróleo e gás, hidrelétricas e até linhas de transmissão de energia”. Ou seja: o governo caminha para anular as conquistas socioambientais obtidas na redemocratização do país.

Dias antes, em 26/10, o Senado havia aprovado um projeto de lei que retira o poder do Ibama para multar crimes ambientais, como desmatamentos. Se não for vetado pela presidente, o poder de multar passará para estados e municípios, sujeito às pressões locais já bem conhecidas. A aprovação do projeto aconteceu quatro dias depois de mais um assassinato no Pará: João Chupel Primo, mais conhecido como João da Gaita, foi morto com um tiro na cabeça, depois de denunciar ao Ministério Público Federal, em Altamira, uma rota de desmatamento ilegal na reserva extrativista Riozinho do Anfrísio e na Floresta Nacional Trairão, área do entorno de Belo Monte. Como de hábito, o Congresso decide os rumos do país desconectado com o que acontece na vida real para além do aquário brasiliense.

No momento histórico em que recursos como água e biodiversidade se consolidam como o grande capital de uma nação, o Brasil, um dos países mais beneficiados pela natureza no planeta, corre em marcha à ré. O cenário que você acabou de ler tem no centro – como obra simbólica e estratégica – Belo Monte, a maior obra do PAC. A seguir, parte de minha conversa de quase três horas com o professor Célio Bermann, em sua sala no Instituto de Eletrotécnica e Energia da USP.

– Por que o senhor, assim como outras pessoas que estudam o setor, afirma que a área energética do país é uma “caixa preta”. Afinal, que caixa preta é essa?
Célio Bermann – A política energética do nosso país é uma caixa preta e é mantida dessa forma por uma série de razões. Primeiro, porque a baixa escolaridade da população brasileira não permite, por exemplo, que o leitor da Época entenda o que é terawatts-hora. Mas seria interessante que a população toda tivesse conhecimento e pudesse, com informação, começar a definir junto com empresas e governo os rumos que são mais adequados. Acho que a academia tem um papel fundamental nesse processo. Eu, particularmente, tento, na área do meu conhecimento, procurar as populações tradicionais, mostrar o que é uma usina hidrelétrica, por que alaga quando você interrompe o fluxo, o que é uma barragem, e como isso vai acabar transformando a vida da comunidade. Acho importante que a academia preste esse tipo de informação, já que governo e empresas não o fazem.

– Sim, mas por que o setor energético tem sido uma caixa preta por décadas?
Bermann – A governabilidade foi encontrada através de uma aliança que mantém o círculo de interesses que sempre estiveram no nosso país. É a mesma turma que continua na área energética. E isso é impressionante. A população não participa do processo de decisões. Não existem canais para isso. Ainda no governo FHC, durante a privatização, o governo criou um Conselho Nacional de Política Energética. Nos dois mandatos de FHC participavam os dez ministros, mas havia um assento para um representante da academia e um da chamada sociedade civil. Eles sentavam, discutiam as diretrizes energéticas de uma forma aparentemente saudável, mas, no frigir dos ovos, na prática não mudava nada. De qualquer forma, havia pelo menos esse sentido de escutar. Isso, com Lula, acabou. O resultado do governo “democrático popular” do Lula, nos dois mandatos, e da Dilma, agora, é a negação de escutar outros interesses que não sejam aqueles que sempre estiveram junto ao poder. A própria Dilma, no início do governo Lula, tinha uma dificuldade muito grande de ouvir, de sentar-se com os movimentos sociais e ouvir. Eu tive a oportunidade de vivenciar o primeiro mandato do Lula, lá, em Brasília.

– E qual era o seu papel?
Bermann – Era apagar fogo, este era o meu papel…

– Mas, oficialmente…
Bermann –  O meu papel era tentar amenizar um pouco os conflitos, mas, oficialmente, eu fui trabalhar com a Dilma como assessor ambiental no Ministério de Minas e Energia. A ideia inicial era criar uma Secretaria de Meio Ambiente dentro do ministério. Era a época em que tínhamos a Marina (Silva) falando em transversalidade, então havia um ambiente extremamente propício para aparar arestas e ver se a coisa poderia caminhar de uma forma mais adequada. Achei, então, que a melhor forma de fazer isso não era criar um lugar dos ambientalistas no ministério, mas colocar em todas as secretarias do ministério gente que pensasse o meio ambiente. Mas acabei ficando um ano lá em Brasília. Mesmo assim, foi extremamente interessante, porque me permitiu sair da academia e ter, na prática, a percepção de como as coisas se dão no dia a dia dentro do governo.

– E como as coisas se dão no dia a dia dentro do governo?
Bermann – É um horror. É uma lentidão. É um imobilismo. É incrível a capacidade da máquina de governo de fazer de conta que faz sem estar fazendo absolutamente nada. Eu falo isso com todos os pontos nos “is”. No início do governo se buscava um entendimento entre os chamados “ministérios fins” e o meio ambiente. Transportes, por causa da construção de estradas e portos, e Minas e Energia, por causa da atividade mineral, metalúrgica e energética, e as questões ambientais que são intrínsecas a essas atividades. Houve uma boa intenção de levar adiante a possibilidade do estabelecimento de pontos comuns. Fizemos, então, um acordo entre Ministério de Minas e Energia e Ministério do Meio Ambiente em função da definição de “pontos comuns”, de procurar verificar onde poderíamos estabelecer alguns consensos. Era um documento em que se definia uma agenda energética e ambiental comuns aos dois ministérios. Se bem me lembro, o documento foi concluído em setembro de 2003. Mas as duas ministras só foram assinar em 31 de março de 2004.

– Por quê?
Bermann – Boa pergunta. Por quê? Boas intenções… mas por quê? Eu realmente não consigo definir exatamente se era uma questão de veleidade… não sei. No final de 2003 a Marina começou a perceber a dificuldade de ela continuar, e o Lula, daquele jeito dele, deixando a coisa acontecer. Naquele momento, o governo poderia ter tido uma agenda comum, um processo extremamente positivo de entender que existem usinas hidrelétricas que não devem ser construídas.

“Em 2003, a Dilma estava feliz porque tinha conseguido afastar a turma do Sarney do setor elétrico”

– Imagino que não era fácil ser assessor ambiental da Dilma Rousseff…
Bermann – É, foi uma coisa meio… difícil. Como falei, eu tinha uma relação particular com os movimentos sociais e estava mais numa situação de bombeiro. Vou te contar uma coisa, como referência. Eu encontrei a Dilma na posse do (físico) Luiz Pinguelli Rosa, no Rio de Janeiro, como presidente da Eletrobrás. Ela estava extremamente satisfeita, alegre, contente, porque tinha conseguido, politicamente, afastar a turma do (José) Sarney da seara energética. (Luiz Pinguelli Rosa deixaria o cargo em 2004, a pedido de Lula, que precisava colocar alguém ligado ao PMDB e a José Sarney.) Para você ver. Na época, o (José Antonio) Muniz (Lopes) era diretor da Eletronorte… e depois tornou-se presidente da Eletrobrás (de 2008 a 2011).

– O José Antonio) Muniz (Lopes O José Antonio Muniz Lopes, um homem da cota do Sarney, é um personagem longevo nessa história de Belo Monte… Só para situar os leitores, em 1989, no último ano do governo Sarney, ele era diretor da Eletronorte e foi no rosto dele que a índia caiapó Tuíra encostou seu facão por causa da proposta de Belo Monte (então chamada de Kararaô), naquela foto histórica que correu mundo. O tal do Muniz já estava lá… Depois de deixar a presidência da Eletrobrás, no início deste ano, continuou lá, agora como diretor de Transmissão da Eletrobrás…
Bermann – Pois então. Naquela época, em 2003, era ele o diretor da Eletronorte que a Dilma tinha ficado feliz por ter conseguido afastar. Por isso que eu falo que não é o governo Lula, é o governo Lula/Sarney. E agora Dilma/Sarney. Constituiu-se um amálgama entre os interesses históricos do superfaturamento de obras, sempre falado, nunca evidenciado. Não se trata de construir uma usina para produzir energia elétrica. Uma vez construída, alguém vai precisar produzir energia elétrica, mas não é para isso que Belo Monte está sendo construída. O que está em jogo é a utilização do dinheiro público e especialmente o espaço de cinco, seis anos em que o empreendimento será construído. É neste momento que se fatura. É na construção o momento onde corre o dinheiro. É quando prefeitos, vereadores, governadores são comprados e essa situação é mantida. Estou sendo muito claro ao expor a minha percepção do que é uma usina hidrelétrica como Belo Monte.

– No momento em que o senhor encontrou a Dilma, logo na constituição da equipe do primeiro mandato de Lula, o senhor conta que ela estava feliz porque tinha conseguido tirar a turma do Sarney do comando da área energética. O que aconteceu a partir daí?
Bermann – A pergunta é: tirou mesmo?

– E qual é a resposta?
Bermann – Naquele momento, manter esse pessoal à distância era estratégico para reconstruir as relações e viabilizar algumas das diretrizes que tinham sido objeto da proposta de governo. O que aconteceu é que a vida dessa situação (de afastamento) foi extremamente curta devido às relações de poder. Eles não gostaram de se sentir afastados. E eu suponho que a percepção do problema da governabilidade no governo Lula foi uma ação desses setores que tinham percebido que estavam longe da teta da vaca e que não podiam continuar assim. Qual era o jeito de fazer? PMDB era oposição. Vamos conversar… E aí se reacomodam as questões. Eu não digo que seja um grupo de ladrões mercenários. Não é isso que está em jogo. Mas essa capilaridade do Sarney permite manter o usufruto do poder. Eu não sou psicólogo para entender o que o senhor Sarney pensa quando vê o Muniz voltar para o governo, ou quando se encontra diante da incapacidade técnica do senador Edison Lobão ao conduzir o Ministério de Minas e Energia no governo Lula e agora no de Dilma. Não há lógica para isso. Vou dizer de novo: não é possível a gente acreditar na capacidade gerencial de um governo que se submete a esse tipo de articulação política, colocando uma pessoa absolutamente incapaz de entender o que é quilowatt, quilowatt-hora. De ir a público sem saber a diferença entre tensão em volts e energia em quilowatts-hora.

– O senhor está falando do ministro de Minas e Energia, Edison Lobão?
Bermann – Edison Lobão.

– E Belo Monte ocupa que lugar nesse jogo?
Bermann – É a oportunidade de se fazer dinheiro e de se reconstituir as relações de poder. Essa obra tinha sido sepultada em 1989, por conta da mobilização da população indígena, e voltou à tona no governo Lula, aprovada pelo Congresso (em 2005) com o discurso de que era um novo projeto.

“O valor de Belo Monte aumentou em mais de R$ 20 bilhões em apenas cinco anos. E deverá ser maior ainda. Sem contar que 80% do financiamento é dinheiro público”

– A ameaça de retomar Belo Monte esteve presente também durante o governo Fernando Henrique Cardoso, mas só no governo Lula saiu mesmo do papel, o que ninguém imaginava que acontecesse, devido ao apoio massivo dos movimentos sociais da região à campanha de Lula. O senhor acha que o fato de Belo Monte ter saído do papel tem a ver com a denúncia do Mensalão, em 2005, e a recomposição das forças políticas para a eleição de 2006?
Bermann – Não tenho a mínima ideia. Mas vamos falar em cifras, agora. Em 2006 o projeto foi anunciado com um custo de R$ 4,5 bilhões. Você sabe, as cifras avançaram violentamente. Antes de ir para o leilão, a usina foi avaliada em R$ 19 bilhões. Foi feito o leilão e se definiu um custo fictício de geração de energia elétrica de R$ 78 o megawatt-hora.

– Por que fictício?
Bermann – Fictício porque esse custo não remunera o capital investido. É por isso que várias empresas caíram fora do empreendimento, sob o ponto de vista da geração da energia elétrica. Mas as grandes empreiteiras estão presentes, porque não é na venda da energia elétrica, mas sim na obra que se dá uma parte significativa da apropriação da renda. Com o consórcio constituído com 50% entre Eletrobrás e Eletronorte, as empreiteiras voltaram para fazer a obra. A elas interessa a obra – e não ficar vendendo energia elétrica. Essa situação é entendida pelos dirigentes, pelo governo, como normal. Para o governo federal, é uma parceria público-privada que está dando certo. Em que termos? A obra hoje está oficialmente orçada em R$ 26 bilhões. Imagine, de R$ 4,5 bilhões para R$ 26 bilhões…

– Em cinco anos, o valor da obra avançou em mais de R$ 20 bilhões?
Bermann – Oficialmente está hoje orçada em R$ 26 bilhões. Mas existem estimativas de que não vai sair por menos de R$ 32 bilhões. Isso sem falar em superfaturamento.

– Deste valor, quanto sairá do BNDES, ou seja, do nosso bolso?
Bermann – Oitenta por cento da grana para isso é dinheiro público. O que estamos testemunhando é um esquema de engenharia financeira para satisfazer um jogo de interesses que envolve empreiteiras que vão ganhar muito dinheiro no curto prazo. Um esquema de relações de poder que se estabelece nos níveis local, estadual e nacional – e isso numa obra cujos 11.200 megawatts de potência instalada só vão funcionar quatro meses por ano por causa do funcionamento hidrológico do Xingu. Então, é preciso entender que a discussão sobre a volta da inflação não se dá porque está aumentando o preço da cebola, do tomate, do leite… É por causa da volúpia de tomar recursos públicos que será necessário fabricar dinheiro. O ritmo inflacionário vai se dar na medida em que obras como Belo Monte forem avançando e requerendo que se pague equipamento, que se pague operários, que se pague uma série de coisas e também que se remunere com superfaturamento.

“Com Belo Monte, ganham as empreiteiras e os vendedores de equipamentos. E ganham os políticos que permitem que essa articulação seja possível”

– Quem perde a gente já sabe. Agora, quem ganha, além das empreiteiras envolvidas na obra?
Bermann – Há as pessoas que ganham pela obra – fabricantes de equipamentos, empreiteiras. E há quem ganhe não financeiramente, mas politicamente, por permitir que essa articulação seja possível, porque é esse pessoal que vai bancar a campanha para o próximo mandato. É a escolinha ou o posto de saúde que eventualmente aquele vereador, aquele prefeito vai dizer: “É obra minha!”. É isso que está em jogo. É dessa forma que a cultura política se estabelece hoje no nosso país. Isso precisa mudar. Como? É complicado.

– O senhor costuma usar a expressão “Síndrome do Blecaute” para se referir ao pânico da população de ficar à luz de velas devido a um apagão energético. Acredita que essa “síndrome” é manipulada pelo governo federal e pelos grandes interesses empresariais para emprestar um caráter de legitimidade a megaobras como Belo Monte?
Bermann – O que eu tenho chamado de “Síndrome do Blecaute” conduz à legitimação de empreendimentos absolutamente inconsistentes. Belo Monte, como foi provado pelo conjunto de cientistas que se debruçaram sobre o tema (painel dos especialistas), é uma obra absolutamente indesejável sob o ponto de vista econômico, financeiro e técnico. Isso sem falar nos aspectos social e ambiental. Mas se dissemina uma ideia do caos e, hoje, há 77 projetos de usinas hidrelétricas somente na Amazônia que utilizam a “Síndrome do Blecaute” para se viabilizarem. O fato de hoje o aquecimento global dominar a mídia e o senso comum, assim como a própria academia, ajuda a mostrar a hidroeletricidade como uma grande maravilha, independentemente do lugar em que a usina vai ser construída e dos impactos que ela vai causar. Mas o que é preciso compreender e questionar? Hoje, seis setores industriais consomem 30% da energia elétrica produzida no país. Dois deles são mais vinculados ao mercado doméstico, que é o cimento e a indústria química. Mas os outros quatro têm uma parte considerável da produção para exportação: aço, alumínio primário, ferroligas e celulose.

– As chamadas indústrias eletrointensivas…
Bermann – Isso. Eu não estou defendendo que devemos fechar as indústrias eletrointensivas, que demandam uma enorme quantidade de energia elétrica a um custo ambiental altíssimo. Mas acho absolutamente indesejável que a produção de alumínio dobre nos próximos 10 anos, que a produção de aço triplique nos próximos 10 anos, que a produção de celulose seja multiplicada por três nos próximos 10 anos. E é isso que está sendo previsto oficialmente.

– O que poucos parecem perceber e menos ainda questionam, quando essas metas são comemoradas, é a forma como o Brasil está inserido no mercado internacional em pleno século XXI. O quanto o fato de nossa economia estar baseada na exportação de bens primários tem a ver com a necessidade de grandes hidrelétricas?
Bermann – Desde a ditadura militar, passando pela redemocratização, pelos sucessivos governos até FHC, tem sido assim. Nós imaginávamos que, com Lula, essa questão ia ser reorientada. Porque o programa de governo em que eu me envolvi preconizava a necessidade dessa mudança. E o que aconteceu? Se você comparar os dados de 2001 com os dados de 2010, vai constatar que a economia brasileira está se primarizando cada vez mais. Isto é: cada vez mais são produzidos no Brasil bens industriais primários, sem agregação de valor. E são justamente os bens primários que consomem muita energia e geram pouco emprego. Além disso, satisfazem uma demanda marcada pelo consumismo. E o Brasil se mostrou incapaz de dizer: “Não, nós não vamos fazer isso”.

– E depois esses produtos retornam para o Brasil, via importação, com valor agregado…
Bermann – É. Eu sempre chamo a atenção para o fato de que, do alumínio primário que o Brasil produz, 70% é exportado. E o alumínio consome muita energia. Para se pegar um barro vermelho, que é a bauxita, e transformá-la em alumínio, é preciso um processo de produção extremamente devastador sob o ponto de vista ambiental. Há um primeiro refino para obter a alumina, que é um pó branco. Esse pó branco tem como consequência ambiental uma borra chamada de “lama vermelha”. Um ano atrás, na Europa, na Hungria, houve uma catástrofe em função do rompimento de uma barragem que continha essa lama vermelha e tóxica. Ela se espalhou pelo Rio Danúbio e foi um horror. E cada vez mais se faz isso no nosso país – e, claro, não se faz mais isso nos países centrais. Isso não está acontecendo agora no Brasil, está acontecendo desde os anos 70.

“Com Lula – e agora com Dilma – ocorreu a reprimarização da economia, com exportação de bens primários sem valor agregado, numa subordinação ao mercado internacional”

– Houve acentuação desse processo no governo Lula e agora no de Dilma Rousseff?
Bermann – O que acontece a partir de Lula é o que eu tenho chamado de “reprimarização da economia”. Nós já tivemos uma época em que a economia dependia basicamente da produção de bens primários: café, açúcar e também alguns bens industriais primários. Depois, tivemos Getúlio Vargas, Juscelino (Kubitschek), e nos anos 50 houve a substituição das importações com a vinda da indústria pesada. Aquele período marca um processo acelerado de industrialização da economia brasileira em que se buscava um desenvolvimento tecnológico para acompanhar o ritmo internacional. Agora, vivemos a reprimarização da economia. E não é uma questão do governo, simplesmente. O governo poderia tornar essa questão pública, dar condições para que a população compreendesse e debatesse o que está em jogo, e isso pudesse servir como base de apoio para uma tomada de decisão do tipo: “Olha, Alcoa (corporação de origem americana com grande presença no Brasil, é a principal produtora mundial de alumínio primário e alumínio industrializado, assim como a maior mineradora de bauxita e refinadora de alumina), vocês não vão continuar aumentando a produção aqui no Brasil. Procurem um outro lugar. A produção de energia elétrica gera um problema ambiental enorme, um problema social enorme, e nós vamos priorizar a demanda da população”. Mas, infelizmente, isso não é feito.

– Mas essa obstinação do governo Lula, e agora do governo Dilma, em fazer Belo Monte, mesmo já tendo um prejuízo de imagem aqui e lá fora, mesmo tendo mais de uma dezena de ações judiciais contra a obra movidas pelo Ministério Público Federal, fora as outras… Essa obstinação se dá apenas por causa do esquema de governabilidade, do esquema político para as eleições a curto e médio prazo, ou é por mais alguma coisa?
Bermann – Isso já não te parece plausível? Ou você acha que tem alguma coisa meio doentia, que precisa ser explicada? (risos)

– Doentia, não sei. Mas eu gostaria de compreender melhor por que o senhor e a maioria dos especialistas que estudaram o projeto afirmam que esta obra é ruim também do ponto de vista técnico.
Bermann – Divulgaram que esta será a única usina do Xingu. Inclusive, houve um seminário recente aqui na USP em que tive a oportunidade de discutir com o Mauricio Tolmasquim (presidente da Empresa de Pesquisa Energética, ligada ao Ministério de Minas e Energia). E ele veio com essa ladainha: “Vai ser a única…”. E eu disse a ele: “Com o perdão do poeta, o que você está afirmando, somente de papel passado, com firma em cartório e assinado: Deus”.

– O senhor não acredita que será a única usina do Xingu, então?
Bermann – Me diga alguma coisa no nosso país que vigorou como cláusula pétrea. Me fale alguma coisa aqui no nosso país que foi dito de uma forma e se manteve ao longo do tempo. VAI ser necessário construir outras usinas. No atual projeto, esta é uma usina que vai funcionar à plena carga, no máximo, quatro meses por ano, por causa do regime hidrológico. Se ela estiver sozinha, o volume de água para rodar as turbinas dependerá da quantidade de chuva. E aquela região tem a seguinte característica: quando chove, quando tem água, quando desce a água dos tributários para o Xingu é muita água, é um volume enorme de água. Mas isso só acontece durante quatro meses por ano. Só nesse período os 11.200 megawatts vão estar operando. Em outubro, na época da estiagem, será apenas 1.100 megawatts, um décimo. Então, a pergunta é: por que construir uma usina desse porte, se, na média anual, ela vai operar com 4.300 megawatts? Necessariamente vão vir as outras quatro. Eu estou afirmando isso, infelizmente. Tecnicamente, eu tenho absoluta certeza. Porque as usinas rio acima vão segurar a água e aí Belo Monte não vai depender da quantidade de chuva. É o único jeito dessa potência instalada de 11.200 megawatts existir de fato.

“O conceito do governo e das empresas não é o de população atingida, mas o de população afogada”

– O senhor está dizendo que o governo federal está mentindo ao afirmar que será apenas uma usina, para conseguir vencer as resistências ao projeto e aprová-la, e depois fará mais três ou quatro?
Bermann – Estou dizendo que, da forma como esta usina está colocada, é uma aberração técnica tão grande que é totalmente ilógico construí-la.

– E essa afirmação, discutida hoje na Justiça, de que os povos indígenas não serão atingidos?
Bermann – A noção que as empresas e o governo federal têm é a noção de população afogada – e não atingida.

– Agora, digamos que nós concordássemos que a obstinação de construir Belo Monte, ainda que atropelando a população e talvez a Constituição, se devesse à necessidade de energia elétrica. E digamos que Belo Monte fosse de fato um projeto de engenharia viável e inteligente. As usinas hidrelétricas são as melhores opções para a geração de energia no Brasil de hoje? Quais são as alternativas a elas?
Bermann – Não podemos olhar a questão da produção de energia sem questionar ou considerar o outro lado, que é o consumo de energia. Parece meio prosaico, porque envolve hábitos culturais da população. E a população sempre entendeu que energia elétrica se resume a você apertar o botão e ter eletricidade disponível. E por isso fica em pânico com a “Síndrome do Blecaute”. Mas é preciso pensar além disso. Não estou dizendo para fechar as fábricas de alumínio, de aço e de celulose no Brasil. O que estou dizendo é o seguinte: parem de ampliar a produção. Parem, porque diversos países desenvolvidos já fizeram isso. O Japão fez mais do que isso. O Japão produzia, em 1980, 1,6 milhões de toneladas de alumínio. Nós estamos produzindo quase 1,7 milhões de toneladas hoje. Só que a energia elétrica necessária para produzir alumínio tornou-se da ordem do absurdo. Então o governo japonês, as empresas japonesas produtoras de alumínio e os trabalhadores da indústria do alumínio realizaram um debate que culminou com o fechamento de todas as usinas de produção de alumínio primário no Japão, exceto uma. Isso ainda nos anos 80. Hoje, o Japão produz apenas 30 mil toneladas. De 1,6 milhões para 30 mil toneladas. Diante da necessidade de gerar muita energia para produzir alumínio, o que o Japão fez? O governo e a sociedade japonesa disseram: “Vamos priorizar a eficiência, o maior valor agregado. Nós não precisamos produzir aqui. Tem o Brasil, tem a Venezuela, tem a Jamaica, tem os lugares para onde a gente pode transferir as plantas industriais e continuar a assegurar o suprimento para a nossa necessidade industrial. A gente pega esse alumínio, agrega valor e exporta na forma de chip. Parece uma coisa tão besta, né? Mas foi isso o que os japoneses fizeram. Eles mantiveram o crescimento econômico e reduziram a demanda por energia. Nós estamos caminhando no sentido inverso. Estamos aumentando o consumo de energia a título de crescimento e desenvolvimento, e, numa atitude absolutamente ilógica, porque a gente exporta hoje a tonelada de alumínio a US$ 1.450, US$ 1.500 dólares. E, para se ter uma ideia, hoje falta esquadrias de alumínio no mercado interno, no mercado de construção brasileiro. O preço foi aumentado por indisponibilidade. Hoje, e fizemos um estudo recente sobre isso, é preciso importar esquadrias de alumínio porque a oferta no mercado interno é insuficiente. E, enquanto o Brasil exporta o alumínio por US$ 1.450, US$ 1.500, o preço da tonelada de esquadria importada é o dobro: cerca de US$ 3 mil a tonelada.

– Para o senhor, a questão de fundo é outra…
Bermann – Nós temos pouca capacidade de produzir alumínio com valor agregado. Então, não estou dizendo para fechar essas fábricas, botar os trabalhadores na rua, mas dizendo para parar de produzir alumínio primário, que exige uma enorme quantidade de energia, e investir no processo de melhoria da matéria-prima para satisfazer inclusive a demanda interna hoje insatisfeita. Agora, vai perguntar isso para a ABAL (Associação Brasileira de Alumínio). Veja se eles estão pensando dessa forma. Billiton, Alcoa, mesmo o sempre venerado Antônio Ermírio de Moraes, com a Companhia Brasileira de Alumínio. A perspectiva desse pessoal é a cega subordinação ao que define hoje o mercado internacional, o mercado financeiro. E é assim que o nosso país fica desesperado com a ideia de que vai faltar energia.

“Não é Programa Luz para Todos, mas Luz para quase Todos ou Conta de Luz para Todos”

– Além de ser um modelo de desenvolvimento que prioriza a exportação de bens primários, sem valor agregado, é também um modelo de desenvolvimento que ignora o esgotamento de recursos. Enquanto tem, explora e lucra. Alguns poucos ganham. O custo socioambiental, agora e no futuro, será dividido por todos…
Bermann – Isso. Os recursos naturais são limitados. Por isso, no meu ponto de vista, a discussão do aquecimento global obscurece o entendimento da hidroeletricidade em particular. Ficamos às cegas. Para transformar o barro da bauxita naquele pó branco do alumínio, que depois é fundido através de uma corrente elétrica, é uma quantidade de energia enorme, absurda. Essa possibilidade você não vai conseguir com energia solar, com energia eólica. São processos produtivos que exigem a manutenção do suprimento de energia elétrica 24 por 24 horas. A solar não consegue fazer isso na escala necessária. Uma tonelada de alumínio consome 15 a 16 mil kilowatts-hora. Para se ter uma ideia, na média, o consumidor brasileiro consome, por domicílio, 180 kilowatts-hora por mês, o que é baixo. Nós ainda estamos vivendo uma situação muito próxima da miserabilidade em termos energéticos para a população. Nós temos uma demanda a ser satisfeita com equipamentos eletrodomésticos. Satisfeita não construindo grandes usinas hidrelétricas para as empresas eletrointensivas, mas para conseguirmos equilibrar a qualidade de vida, que se deve fundamentalmente a uma herança histórica: a de sermos um dos países com a pior distribuição de renda do mundo.

– Uma das piores distribuições de renda e uma das piores distribuições de eletricidade do mundo…
Bermann – Eu chamo o programa de universalização de “Luz para quase todos”. Não é para todos, é para quase todos. Desde que estejam próximos da rede para extensão, tudo bem. Mas, para o sujeito distante, só agora é que se começa a pensar em sistemas de produção descentralizada. A percepção ainda é, infelizmente, de pegar e estender a rede. Mas o custo de extensão da rede é muito alto. Principalmente, se você pegar e atravessar 15 quilômetros para atender duas, três casas. O lógico seria a adoção de energia descentralizada em escala menor, que seja mais bem controlada pela população. Mas isso não passa pela cabeça porque define inclusive uma outra relação social. Eu também chamo esse programa de “Conta de luz para todos”, porque de repente você fica refém de uma companhia e necessariamente paga conta de luz, quando você poderia criar uma situação de autonomia energética.

– O senhor poderia explicar melhor quais são as alternativas para a população, já que todos nós crescemos dentro de uma lógica em que recebemos a conta da luz e pagamos a conta da luz; apertamos um botão na parede e a luz se faz. A realidade está exigindo que sejamos mais criativos e tenhamos mais largura de raciocínio. Quais são as alternativas para o cidadão comum, especialmente o de regiões mais afastadas?
Bermann – Depende muito do acesso à tecnologia existente no local ou na região. Hoje, por exemplo, temos no Rio Grande do Sul uma experiência de queimar casca de arroz para gerar energia. O calor da queima da casca de arroz aquece a água, a água se transforma em vapor e esse vapor é injetado num tubo e gira uma turbina produzindo energia elétrica. Não tem nada de fantástico nisso, esse processo é conhecido há muito tempo, mas, puxa vida, eu estou tão acostumado a simplesmente acender e apagar o botão… Vou ficar agora me preocupando se tem combustível? Existe um lado meio trágico da população em geral que é o comodismo: deixa que resolvam por mim. Então, quando você me pergunta sobre alternativas, depende do que a gente está falando. Existem alternativas promissoras deixando de produzir mais mercadorias eletrointensivas. Como também é promissor ter esquemas de financiamento para que o pequeno empresário adquira um painel fotovoltaico (placa que transforma luz solar em energia elétrica) ou uma usina de geração eólica (transformação de vento em energia elétrica). E use essa tecnologia que está disponível para satisfazer as suas necessidades, sem necessariamente ficar ligado a uma grande linha de transmissão, de distribuição, puxando energia não sei de onde.

– O que o senhor diria para a parcela da população brasileira que faz afirmações como estas: “Ah, se não construir Belo Monte não vai ter luz na minha casa”, ou “Ah, esses ecochatos que criticam Belo Monte usam Ipad e embarcam em um avião para ir até o Xingu ou para a Europa fazer barulho”. O que se diz para essas pessoas para que possam começar a compreender que a questão é um pouco mais complexa do que parece à primeira vista?
Bermann – Não é verdade que nós estamos à beira de um colapso energético. Não é verdade que nós estamos na iminência de um “apagão”. Nós temos energia suficiente. O que precisamos é priorizar a melhoria da qualidade de vida da população aumentando a disponibilidade de energia para a população. E isso se pode fazer com alternativas locais, mais próximas, não centralizadas, com a alteração dos hábitos de consumo. É importante perder essa referência que hoje nos marca de que esse tipo de obra é extremamente necessário porque vai trazer o progresso e o desenvolvimento do país. Isso é uma falácia. É claro que, se continuar desse jeito, se a previsão de aumento da produção das eletrointensivas se concretizar, vai faltar energia elétrica. Mas, cidadãos, se informem, procurem pressionar para que se abram canais de participação e de processo decisório para definir que país nós queremos. E há os que dizem: “Ah, mas ele está querendo viver à luz de velas…”. Não, eu estou dizendo que a gente pode reduzir o nosso consumo racionalizando a energia que a gente consome; a gente pode reduzir os hábitos de consumo de energia elétrica, proporcionando que mais gente seja atendida, sem construir uma grande, uma enorme usina que vai trazer enormes problemas sociais, econômicos e ambientais. É importante a percepção de que, cada vez que você liga um aparelho elétrico, a televisão, o computador, ou a luz da sua casa, você tenha como referência o fato de que a luz que está chegando ali é resultado de um processo penoso de expulsão de pessoas, do afastamento de uma população da sua base material de vida. E isso é absolutamente condenável, principalmente se forem indígenas e populações tradicionais. Mas também diz respeito à nossa própria vida. É necessário ter uma percepção crítica do nosso modo de vida, que não vai se modificar amanhã, mas ela precisa já estar na cabeça das pessoas, porque não é só energia, é uma série de recursos naturais que a gente simplesmente não considera que estão sendo exauridos e comprometidos. É necessário que desde a escola as crianças tenham essa discussão, incorporem essa discussão ao seu cotidiano. Eu também tenho uma dificuldade muito grande de chegar aqui na minha sala e não ligar logo o computador para ver emails, essas coisas. Confesso que tenho. Mas eu também percebo uma grande satisfação quando eu consigo não fazer isso. E essa percepção da satisfação é uma coisa cultural, pessoal, subjetiva. Mas ela precisa ser percebida pelas pessoas. De que o nosso mundo não existe apenas para nos beneficiarmos com essas “comodidades” que a energia elétrica em particular nos fornece. Agora isso exige um esforço, e a gente vive num mundo em que esse esforço de perceber a vida de outra forma não é incentivado. Por isso é difícil. E por isso, para quem quer construir uma usina, quer se dar bem, quer ganhar voto, quer manter a situação de privilégio, seja local ou nacional, para essas pessoas é muito fácil o convencimento que é praticado com relação a essas obras. Por mais que eu tenha sempre chamado a atenção para o caráter absolutamente ilógico da usina, das questões que envolvem a lógica econômico e financeira dessa hidrelétrica, para o absurdo que é a utilização do dinheiro público para isso, para a referência à necessidade de se precisar, num futuro próximo, enfrentar um ritmo violento de custo de vida, emitindo moeda para sustentar empreendimentos como esse, é muito difícil fazer com que as pessoas compreendam a relação dessa situação com as grandes obras. E Belo Monte é mais um instrumento disso. Eu não sou catastrofista, não tenho a percepção maléfica da hidroeletricidade. Não demonizo a hidroeletricidade. Eu apenas constato que, da forma como ela é concebida, particularmente no nosso país nos últimos anos, é uma das bases da injustiça social e da degradação ambiental. Se não é pensando em você, você necessariamente vai precisar pensar nas gerações futuras. Este é o recado para o leitor: é preciso repensar a relação com a energia e o modelo de desenvolvimento, é preciso mudar o nosso perfil industrial e também é preciso mudar a cultura das pessoas com relação aos hábitos de consumo. Nós precisamos mudar a relação que nos leva a uma cega exaustão de recursos.

“Em Brasília há um vírus letal que se chama ‘Brasilite’. É um verme que entra pelo umbigo e faz com que a pessoa se ache o centro do universo”

– O senhor acha que a Dilma tem essa obstinação com Belo Monte, em parte, por teimosia?
Bermann – Ela é muito cabeça dura.

– Às vezes eu acho que as questões subjetivas têm um peso maior do que a gente costuma dar. Não sei…
Bermann – É, mas eu também não sei, não tenho nenhuma proximidade maior com o que ela está pensando agora. O que eu sei é que, no dia a dia, lá no ministério, ela demonstrava uma capacidade muito reduzida de ouvir. Ela pode até ouvir, mas as coisas na cabeça dela já estão postas.

– Por que o senhor saiu do governo em 2004?
Bermann – Porque venceu o contrato, e eu achei que não valia a pena continuar. Há conhecidos meus que foram na mesma época que eu e estão até hoje em Brasília. Não estão mais no ministério, mas estão em Brasília. Acho que Brasília é uma cidade com um vírus letal, que é a “Brasilite”. A “Brasilite” se compõe de um verme que entra no umbigo e toma a barriga da pessoa de forma a ela achar que é o centro do universo. A partir daí, mudam as relações pessoais, o que a pessoa era e o que ela passa a ser. Eu mesmo perdi muitos amigos que começaram a empinar o queixo. Fazer o quê? E isso faz parte do “modus vivendi” brasiliense. Basta você ter um terno e uma gravata que você é doutor. Eu acho que a gente não vai muito longe alimentando isso.

– O senhor participou da elaboração do programa de Lula na campanha de 2002 e participou do primeiro ano de governo. Está desiludido?
Bermann – Eu não aceito quando me definem como: “Ah, você também é daqueles que estão desiludidos, estão chateados…”. Tem essa conotação, né? Em absoluto. Eu não estou desiludido, chateado, bronqueado. Eu estou indignado!

– Quando o senhor se desfiliou do PT?
Bermann – Ah, quando o bigode do Sarney estava aparecendo muito nas fotos.

(Publicado na Revista Época em 31/10/2011 e atualizado em 16/11/2011)

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