A ditadura que não diz seu nome

O imaginário sobre a Amazônia e os povos indígenas, forjado pelo regime de exceção, é possivelmente a herança autoritária mais persistente na mente dos brasileiros de hoje, incluindo parte dos que estão no poder. E a que mais faz estragos na democracia

 

“Quando se quer fazer alguma coisa na Amazônia, não se deve pedir licença: faz-se.”

A declaração é do gaúcho Carlos Aloysio Weber, ex-comandante do 5º Batalhão de Engenharia e Construção, um dos primeiros a instalar-se na Amazônia na ditadura civil-militar. Em 1971, ele foi entrevistado para um projeto especial da revista Realidade sobre a Amazônia. O repórter fez ao coronel, apresentado como “lendário” em Rondônia, a seguinte pergunta: “Como é possível fazer as coisas na Amazônia e transformar a região?”. O coronel respondeu:

– Como você pensa que nós fizemos 800 quilômetros de estrada? Pedindo licença, chê? Usamos a mesma tática dos portugueses, que não pediam licença aos espanhóis para cruzar a linha de Tordesilhas. Se tudo o que fizemos não tivesse dado certo, eu estaria na cadeia, velho.

É uma declaração de sentidos explícitos – pelo tom em que foi dita, pela certeza da impunidade, pelo orgulho da falta de limites. Pela forma como o coronel vê a Amazônia como território a ser invadido e dominado pela força. O que a ditadura fez na Amazônia, tão longe dos centros de poder e das vozes de resistência, e o que fez com os povos indígenas, ainda precisa ser investigado com muito mais profundidade. Os horrores que já foram descobertos podem ser só a superfície. Mas, se o passado pede luz, o presente precisa ser iluminado com urgência.

Há vários entulhos autoritários corroendo nossos dias, como a Polícia Militar (que, se tem uma história anterior ao golpe de 1964, ganhou mais poderes na ditadura e os mantêm na democracia) e o “auto de resistência” (que serve para a polícia justificar a execução de suspeitos ou desafetos). Mas é no olhar tanto sobre a Amazônia quanto sobre os povos indígenas, ribeirinhos e quilombolas que o Estado autoritário persiste com mais força e menos resistência na mente da maioria dos brasileiros. Persiste da forma mais perigosa, porque traveste como verdade aquilo que é apenas uma imagem a serviço de interesses políticos e econômicos específicos. Talvez em nenhum outro campo o regime de exceção tenha conquistado tanto êxito ao impor seu ideário. E o mantê-lo na democracia.

A ditadura civil-militar enraizou no imaginário dos brasileiros a visão de que a floresta amazônica é um território-corpo para exploração. Se a lógica do explorador/colonizador norteou historicamente a “interiorização” do país, é na ditadura que ela ganha um pacote ideológico mais ambicioso. As peças de propaganda que o regime produziu continuam vivas, mesmo para aqueles que nasceram depois dela, como os slogans “Integrar para não entregar” e “Terra sem homens para homens sem terra”. É na ditadura que é cimentada a ideia da Amazônia como “deserto verde”, ignorando toda a riqueza humana, a diversidade cultural e biológica que lá existia, ignorando a vida. A disseminação dessa fantasia é tão bem sucedida que se torna verdade. E se torna uma verdade que continua verdade após a redemocratização. Tão verdade que cria uma realidade paradoxal: uma ex-guerrilheira, presa e torturada pelo regime, é quem, na democracia, leva adiante o modelo de desenvolvimento da ditadura para a Amazônia.

É primeiro no governo Lula, e com mais força e empenho a partir da posse de Dilma Rousseff, que grandes obras previstas pelos militares, como a hidrelétrica de Belo Monte, no Xingu – a mais polêmica, mas não a única – são impostas aos povos da floresta. O conturbado processo que forçou a construção de Belo Monte, entre outras arbitrariedades violou tanto a Constituição quanto tratados internacionais. A Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), assegura aos indígenas o direito de serem ouvidos em empreendimentos que vão afetar seu modo tradicional de vida – e não foram. Outras hidrelétricas estão em curso, com grande resistência de povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos, como as usinas previstas para o rio Tapajós, no Pará.

É nesse governo eleito que a Força Nacional baixa sobre as comunidades tradicionais que vivem há séculos na área dos megaprojetos com a justificativa, entre outras, de garantir a segurança dos pesquisadores que farão o inventário socioambiental. Na prática, é usada para reprimir a resistência legítima desses povos, cujos direitos são amparados pela Constituição. É na democracia que grandes empresas financiadas pelo dinheiro público do BNDES executam obras que alteram o ecossistema regional sem cumprir suas obrigações, na forma de condicionantes, causando estragos irreversíveis e aniquilando vidas, como se viu agora na enchente histórica do rio Madeira.

É também nesse período democrático que um instrumento criado na ditadura, a “Suspensão de Segurança”, tem sido usado para garantir a continuidade dos megaempreendimentos, como foi denunciado no último 28 de março na Organização dos Estados Americanos (OEA). O instrumento permite a tribunais superiores anular decisões judiciais de instâncias inferiores, independentemente do mérito, se as cortes entenderem que as sentenças representam risco de “ocorrência de grave lesão à ordem, à saúde, à segurança ou à economia públicas”. O mecanismo controverso tem sido usado para derrubar decisões favoráveis a comunidades afetadas por grandes obras, como Belo Monte e a estrada de ferro de Carajás.

E a maioria dos brasileiros não estranha – ou estranha muito pouco – essa versão do “Brasil Grande” da ditadura que se consolida com outros nomes na democracia. Não decodifica essa violência como violência, não decodifica o autoritarismo como autoritarismo. O mais perigoso é sempre aquilo que não detectamos como perigoso, aquilo que se naturaliza como inevitável – e na Amazônia a violência de Estado tornou-se natureza.

Poderia ser uma surpresa o fato de o mito amazônico forjado na ditadura persistir na democracia. Mas não chega a ser, porque é esse mito, convertido em verdade única, que permite que a Amazônia siga sendo tratada como objeto de espoliação, seja pelo Estado, seja pela iniciativa privada. Um corpo a ser violado, à disposição de exploradores de passagem, sejam eles técnicos do governo, políticos de amplo espectro partidário, grileiros, madeireiros, mineradores e empreiteiros. Quem nesse território permanece, nele nasce, tem raízes e constrói memória torna-se um obstáculo, como os povos indígenas. Um não-ser, como os ribeirinhos e quilombolas, os invisíveis entre os invisíveis. Um obstáculo não ao desenvolvimento, como se repete à exaustão, mas à manutenção desse mito – à continuidade do ideário que legitima, há décadas, a destruição da floresta e dos povos da floresta para acomodar os interesses dos centros de poder.

Esta é uma entre várias razões para que a afirmação de pertencimento dessas populações seja vista como ilegítima, já que a floresta não seria terra para a vida, mas para a exploração e o uso. Como reivindicar a construção de sentidos naquela que é objeto de passagem e de dilapidação? A Amazônia serve ao centro, numa lógica que ainda obedece, na segunda década do século 21, aos preceitos do sistema colonial, na qual a periferia serve à matriz.

Para muitos, incluindo burocratas do governo instalados em ministérios como o de Minas e Energia, a Amazônia é apenas uma fonte de matérias-primas e de energia para as grandes indústrias que produzem para exportação. Tem sido, também, uma fonte de pagamento de compromissos não pronunciados de campanha, na forma de grandes obras financiadas pelo BNDES. A floresta é também aquela que pode ser derrubada para expandir a fronteira agropecuária, num momento em que os ruralistas constituem a maior bancada suprapartidária, em um Congresso que se pauta pela chantagem, e alcançam níveis inéditos de influência em um governo que assegura apoio pela barganha. É ainda uma reserva simbólica para unir o Brasil que a desconhece num ufanismo tortuoso contra “os gringos que querem tomar a Amazônia”. Nada parece mais eficaz do que criar uma ameaça externa para engordar nacionalismos de ocasião, que só favorecem aos mesmos de sempre. Se é disso que se trata, convém perceber que há um tipo de “gringo” que há muito está lá, em megaprojetos de multinacionais que expulsaram as populações locais com o apoio de sucessivos governos. Na ditadura, mas também na democracia.

A Amazônia é devastada em nome de várias manipulações, concretas e simbólicas. Para que continue a servir aos interesses dos centros de poder, é preciso que o modelo de exploração persista. E, para que persista, quando o aquecimento global e a destruição do meio ambiente se tornam temas vitais no mundo, quando a questão da água ascende ao topo da pauta, é preciso forjar novos inimigos. É nesse contexto que os povos indígenas passam a ser vendidos à população, predominantemente urbana do país, como “entraves ao desenvolvimento”. Isso no discurso tanto de setores conservadores da sociedade quanto em falas oficiais de setores do atual governo.

Aqueles que pertencem à terra são convertidos em despertencidos, o sentido mais profundo de “entrave”, para que a Amazônia se mantenha no mesmo lugar de corpo para violação. Em nome de “interesses nacionais”, quando, de fato, o que se mascara como nacional são, historicamente, projetos de poder de grupos políticos específicos e projetos de lucro de grupos econômicos privados. Estes, fazem alianças circunstanciais ou permanentes para manter a lógica de espoliação intacta. Fizeram na ditadura, fazem na democracia. Sem que se estranhe o suficiente, porque a distância da Amazônia não é apenas geográfica. Para compreendê-la é preciso se arriscar à alteridade – e nada mais perigoso para quem quer manter seus privilégios do que experimentar outras possibilidades de estar no mundo.

Os povos indígenas resistem desde 1500, mas nesse século ampliaram sua voz, pelas possibilidades abertas pela internet, e passaram a divulgar suas narrativas múltiplas. Em comum, a resistência ao genocídio que segue em curso e ganhou roupagens mais sofisticadas. É também por isso que os ataques contra esses povos se acirraram, não apenas na forma de agressões físicas e destruição de aldeias, mas nos vários projetos que tramitam no Congresso e que significam, na prática, sua aniquilação física e cultural. Como não é mais possível silenciar a sua voz, é preciso transformá-los em inimigos. O inimigo não se escuta, diga o que disser, porque não lhe é reconhecida a legitimidade para dizer. Esse é o objetivo da bem sucedida propaganda em curso, que coloca os mais de 200 povos indígenas, habitantes também de outros ecossistemas além da Amazônia, como “entraves ao desenvolvimento” do Brasil. Por estarem no caminho das grandes obras, por estarem coletivamente sobre as terras cobiçadas para lucros privados.

Nada é mais autoritário do que dizer ao outro que ele não é o que é. Essa também é parte da ofensiva de aniquilação, ao invocar a falaciosa questão do “índio verdadeiro” e do “índio falso”, como se existisse uma espécie de “certificado de autenticidade”. Essa estratégia é ainda mais vil porque pretende convencer o país de que os povos indígenas nem mesmo teriam o direito de reivindicar pertencer à terra que reivindicam, porque sequer pertenceriam a si mesmos. Na lógica do explorador, o ideal seria transformar todos em pobres, moradores das periferias das cidades, dependentes de programas de governo. Nesse lugar, geográfico e simbólico, nenhum privilégio seria colocado em risco. E não haveria nada entre os grandes interesses sem nenhuma grandeza e o território de cobiça.

Quando alguém, mesmo em círculos letrados, afirma que “sem Belo Monte não vai dar para assistir à novela das oito ou entrar no Facebook”, ou brada que “índio tem terra demais”, está cometendo muitas impropriedades. Mas está também mantendo vivo o ideário da ditadura sobre a Amazônia e os povos da floresta. No momento em que o Brasil disseca o golpe que completou 50 anos, tão importante quanto jogar luz sobre o passado é compreender o que dele permanece entre nós – com a nossa estreita colaboração.

(Publicado no El País em 31/03/2014)

Vagina

Será que a revolução sexual falhou? Não é curioso que, neste ponto da aventura humana, o órgão feminino ainda ameace tanto? Evelyn Ruman, Casey Jenkins e Naomi Wolf são algumas das artistas que questionam a naturalização da violência contra o desejo das mulheres

 

Evelyn Ruman conta que desembarcou no Vaticano sentindo-se uma espiã da Guerra Fria. Ela tinha se imposto uma missão arriscada, subversiva. Dentro do bolso da sacola de equipamento fotográfico havia um vidrinho com um líquido vermelho e um tanto viscoso. Evelyn se agachou, abriu a tampa e jogou seu conteúdo no chão. O fluido se espalhou sobre a calçada, as pedras. Ela sacou a câmera fotográfica e começou a documentar sua transgressão. Desenrolou a imagem de uma mulher nua, de costas, e a estendeu no chão. O vermelho agora escorria de interiores femininos. Nenhum guarda apareceu para impedi-la, nenhum turista a perturbou. Missão cumprida. Evelyn acabara de jogar sangue menstrual no centro do poder católico.

– Por que você quis fazer isso?, pergunto a ela. “Porque a Igreja Católica representa tudo aquilo que vem oprimindo as mulheres por séculos, tornando a vagina algo feio e fazendo do sangue menstrual uma coisa nojenta.”

Era janeiro de 2012 e Evelyn participava da Bienal Internacional de Arte de Roma. Durante dois anos ela armazenara seu sangue menstrual na geladeira de casa, em São Paulo, para realizar a exposição que chamou de Sangro, logo existo. Seu casal de filhos, hoje com 23 e 18 anos, brincava que era o “carnição da mamãe”. Ao fazer esse percurso artístico, Evelyn se preparava para um momento doloroso para uma mulher: ter seu útero arrancado devido a um mioma. “Sempre gostei muito de menstruar”, diz ela.

Evelyn Ruman/Divulgação

Evelyn Ruman (Divulgação)

Quando foi a Roma, Evelyn percebeu que sua menstruação estava atrasada. Para consumar seu objetivo, precisou pedir um pouco de sangue a uma feminista italiana, Sara Sacerdócio. Fez sua performance com sangue emprestado. A foto (acima) é uma das 27 imagens exibidas no EG2O (Escritório Galeria 2Olhares), na cidade histórica de Paraty, no litoral fluminense, até 6 de janeiro. Cinco delas ilustram esta coluna.

Evelyn trabalha desde 1988 com a autoimagem de mulheres. Presidiárias, internas de manicômios judiciários e instituições psiquiátricas comuns, camponesas de origem indígena, meninas com síndrome de Down, soropositivas para o vírus da Aids, ameaçadas por violência doméstica, velhas. Mulheres que a maioria prefere não enxergar. Nunca teve dificuldade para expor seu trabalho, premiado e reconhecido internacionalmente. Mas, quando tentou exibir sua obra moldada em sangue menstrual, encontrou as portas fechadas. Para mostrar o rosto de mulheres condenadas à invisibilidade, foi acolhida. Para mostrar seu corpo que sangra pela vagina não havia espaço. Talvez porque, ao expor o que se prefere escondido e envergonhado, a vítima tivesse virado o jogo. Em vez de compaixão, agora provocava medo.

Evelyn descobriu-se sozinha. Mesmo outras mulheres, amigas fotógrafas, em todo o resto libertárias, classificaram suas fotos como “nojentas”. “Só consegui fazer a exposição porque abri minha própria galeria”, diz Evelyn. “Dá vontade de botar uma câmera para filmar a reação de nojo das pessoas, muitas delas mulheres, quando veem as fotos e percebem que é sangue menstrual, sangue que saiu de uma vagina, a minha. Se o sangue saísse de um pinto, será que teriam tanto nojo?”

(Estou presumindo, claro, mas acredito que parte daqueles que leem este texto, a esta altura já soltaram alguns “que noooojo!”. Acertei? Ao comentar com alguns amigos que pretendia escrever sobre o tema, a reação foi: “Mas por quê?”. Por causa desta tua cara, respondi.)

Neste exato momento, a australiana Casey Jenkins realiza a performance que intitulou de Casting Off My Womb (em tradução livre, Tricotando o meu útero). A cada manhã, ela enfia um novelo de lã clara na sua vagina e tricota um cachecol. Ao menstruar, o tricô ganha rajados de vermelho sanguíneo e molhado. (vídeo aqui). O objetivo da intervenção, conforme ela declarou à imprensa, é tornar a vagina da mulher “menos chocante ou assustadora”. Casey queria mostrar que “a vagina não morde” ao ligá-la a um ato acolhedor e “quentinho”, identificado com avozinhas clássicas, como o de tricotar uma manta. O cachecol uterino que passa sensualmente pela vagina de Casey, acaricia seus grandes e pequenos lábios e faz cócegas no seu clitóris estará concluído ao final de 28 dias.

(Mais nojo?)

O que, afinal, Casey está tricotando, lá no outro lado do mundo? O que Evelyn está tentando nos dizer com seu sangue, no lado de cá do mundo?

Evelyn Ruman (Divulgação)

Evelyn Ruman (Divulgação)

É provável que a escritora americana Naomi Wolf, autora de Vagina: uma biografia, que acaba de ser lançado em português pela Geração Editorial, tenha razão ao dizer que “a revolução ocidental sexual falhou”. Ou, pelo menos, “não funcionou bem o suficiente para as mulheres”. A própria trajetória do livro é a prova de que a vagina segue sendo ameaçadora – como corpo, como imagem, como palavra. Me arriscaria a dizer que até mais ameaçadora do que em décadas passadas. Quando a obra foi lançada, em 2012, no mercado de língua inglesa, a loja virtual da Apple colocou asteriscos no título: V****a. A velha vagina, censurada pela marca que representa o ápice do avanço tecnológico do nosso tempo, foi quase uma performance da denúncia contida no livro. Mas involuntária, o que torna tudo mais interessante. Me parece que o episódio fala mais de um momento de potência da vagina do que de vitimização.

Em seu livro, Naomi Wolf compreende a vagina como “o órgão sexual feminino como um todo, dos lábios ao clitóris, do introito ao colo do útero”. Esse todo forma uma complexa rede neural, na qual há pelo menos três centros sexuais – o clitóris, a vagina, o colo do útero – e possivelmente um quarto – os mamilos. Naomi defende que a vagina não é apenas carne, mas um componente vital do cérebro feminino, ligando o prazer sexual amoroso à criatividade, à autoconfiança e à inteligência da mulher. A conclusão é óbvia e não é nova, nem por isso menos importante: massacrar a vagina – ignorando-a ou tornando-a algo sujo, proibido e chulo, seja pelas palavras ou pelas ações – massacra as mulheres na inteireza do que são. Ao aniquilar a vagina, aniquila-se a mulher inteira, sequestra-se a sua potência. “Ao contrário do que somos levados a crer, a vagina está longe de ser livre no Ocidente nos dias de hoje”, diz Naomi. “Tanto pela falta de respeito como pela falta de entendimento do papel que ela exerce.”

Criticada até mesmo por parte das feministas, a biografia da vagina faz um percurso bastante curioso. Mesmo quem a elogia tem sempre uma graça para dizer, uma piadinha, algo que garanta um distanciamento desta escritora que a certo momento chega a falar em “dança da deusa”. Parece continuar obrigatório ser engraçadinho com qualquer menção à palavra vagina. Adultos maduros se expressam como se fossem adolescentes soltando risadinhas, o que em si já diz bastante coisa. Ao anunciar que escrevia o livro, Naomi foi recebida para um jantar entre amigos com um cardápio temático: massa em forma de vaginas e grandes (bem grandes mesmo) salsichas. Como finalização, filés de salmão, referindo-se ao cheiro de peixe relacionado ao órgão sexual feminino. Para aqueles homens intelectualizados de Nova York, a obviedade, um tanto bocejante, parecia muito divertida. Depois da “homenagem”, Naomi amargou um bloqueio criativo: por seis meses não conseguiu escrever uma palavra do livro. “Senti que havia sido punida – tanto no nível criativo quanto no físico – por ir a um lugar aonde as mulheres não deviam ir”, conta.

Se o livro de Naomi Wolf apresenta generalizações e pode ser questionado em alguns ou vários aspectos, como todos os livros, aliás, acho difícil que alguém, seja homem ou mulher, não tenha a vida ampliada por questões mais interessantes depois de ler Vagina: uma biografia. Se não fosse por mais nada, pelo simples fato de que, para muitos, demais, a vagina ainda é uma fenda, uma ferida, um buraco.

Evelyn Ruman (Divulgação)

Evelyn Ruman (Divulgação)

A pergunta que Evelyn, Casey e a própria Naomi nos propõe, a partir da expressão de cada uma, é por que, no século 21, no Ocidente, a vagina ainda provoca tanto antagonismo. E que efeito isso tem sobre a experiência cotidiana das mulheres, principalmente, mas também a dos homens. Ou sobre como isso empobrece enormemente a nossa vida sexual e afetiva, assim como a nossa vida como um todo. O maior mérito de cada uma delas ao se arriscar ao escárnio público – e, neste caso, sempre se pode contar com ele – é o de questionar a naturalização de um olhar sobre a vagina e as mulheres que nos viola a todas. E talvez a todos. Ao naturalizá-lo, oculta-se a trama histórica e não linear em que esse olhar foi sendo tecido, assim como as relações de poder que o determinam.

Não é tremendamente instigante que, neste ponto da aventura humana, a vagina das mulheres ainda assombre tanto que a violência contra ela parece ter recrudescido? Na época em que as revistas femininas ocupam uma parte considerável de suas páginas com lições para melhorar a performance sexual das mulheres, a vagina, aquela que parece não caber neste discurso atlético, vive tempos de escândalo. No mesmo período em que a Apple censurou a vagina como palavra no título do livro de Naomi Wolf, no Brasil o crítico de arte Jorge Coli teve interrompida a transmissão pela internet de sua palestra pela Academia Brasileira de Letras. Foi censurado no momento em que pronunciou a palavra “buceta” e mostrou A origem do mundo, o famoso quadro do francês Gustave Courbet, que retrata uma vagina entre coxas abertas. Ao longo de sua acidentada trajetória, o quadro esteve coberto por um véu, fosse uma cortina ou mesmo uma outra pintura. Só foi exposto sem nada ocultando-o depois que a família de seu último dono, o psicanalista Jacques Lacan, o doou ao Museu D’Orsay. Em fevereiro deste ano, a revista francesa Paris Match anunciou um “furo de reportagem”: a descoberta do suposto rosto da vagina famosa. Desta vez, o rosto que tentaram lhe impor, como uma parte faltante, teria a função de um véu definitivo. (Escrevi sobre isso aqui e aqui.)

Evelyn, Casey, Naomi, assim como outras artistas mundo afora, têm corajosamente tentado nos chamar a atenção para o fato de que tanto a censura quanto a piada ocultam algo que precisa ser enfrentado. Enfrentado porque estreita a nossa vida psíquica, afetiva e sexual, mas também porque é gerador de violência. Nas universidades brasileiras, os trotes às calouras têm se transformado nos últimos anos em episódios chocantes de agressões contra mulheres. Na Universidade de Brasília (UnB), em 2011, calouras tiveram de lamber leite condensado numa linguiça encapada com camisinha. Em 2012, na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), duas estudantes foram amarradas a um poste. Os veteranos vestiram-se de policiais militares e colocaram camisinhas na ponta de cassetetes, obrigando-as a chupar os bastões. Em 2013, na UFMG, uma estudante com o corpo pintado de preto carregava um cartaz que dizia “caloura Chica da Silva”, em alusão à famosa escrava com este nome. As mãos estavam presas por uma corrente, que era controlada por um veterano. Também neste ano, uma caloura da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia denunciou à polícia ter sido obrigada a lamber pênis e testículos de bois. Ela desmaiou, sua boca sangrava. Na Universidade de São Paulo, no campus de São Carlos, realizou-se o concurso “Miss Bixete”, no qual as calouras são obrigadas a fazer um “desfile de beleza” repleto de situações humilhantes. Durante o trote, veteranos tiraram a roupa e simularam fazer sexo com uma boneca inflável.

Distribuíram ainda um panfleto parodiando o best-seller Cinquenta Tons de Cinza, com os seguintes dizeres: “Cinquenta golpes de cinta – a cura para o fogo no rabo dessa mulherada mal comida”. A série de violências sexuais contra as calouras torna-se ainda mais espantosa – e é preciso se espantar muito – se pensarmos que foram perpetradas por homens jovens e escolarizados, nascidos pós-revolução sexual, filhos de mulheres que usam anticoncepcionais e trabalham fora de casa.

Na semana passada, o radialista Fabiano Gomes, da Rádio Correio, da Paraíba, afirmou no programa Correio Debate que a polícia não deveria perder seu tempo investigando os casos em que homens divulgaram na internet imagens de mulheres nuas ou em relações sexuais. Ele se referia a um caso ocorrido na cidade paraibana de Pombal e ao recente suicídio de Júlia dos Santos, de 17 anos, no Piauí. Júlia e a gaúcha Giana Fabi, de 16 anos, enforcaram-se em outubro depois de sofrerem linchamento moral por terem fotos e vídeos íntimos postados nas redes sociais. Algumas das frases usadas pelo radialista: “Sem-vergonha é quem manda foto nua para o namorado”, “Foram pro espelho mostrar o chibiu”, “A cocotinha tirou foto nua pro namorado bater punheta”.

Se houve reação formal de repúdio ao episódio, vale a pena prestar atenção também na gravação, para escutar a opinião dos ouvintes, homens e também mulheres, ao apoiar as agressões do radialista. Se os comentários são uma amostra do senso comum, as meninas que mostraram seus corpos nus a homens em quem confiavam são “vagabundas”. É aterrador constatar que, às vésperas de 2014, depois de todas as conquistas feministas, num país governado pela primeira vez por uma mulher, duas adolescentes tenham sido tão humilhadas por terem seus corpos e seu desejo sexual expostos que preferiram morrer. Ao sacrificarem-se (ou serem sacrificadas), seguem sendo humilhadas. Na segunda década do século 21, no Brasil associado ao mito da liberação sexual dos trópicos, o corpo e o desejo feminino são tão ameaçadores que a morte não basta.

Evelyn Ruman (Divulgação)

Evelyn Ruman (Divulgação)

A violência contra a vagina é disseminada no cotidiano, dentro de casa, no trabalho, no percurso entre a casa e o trabalho, em todos os espaços, mesmo os de lazer. As mulheres estão tão habituadas a ela desde que nascem que já a internalizaram como “normal”. Ou reagem muito menos do que deveriam, resignadas por uma vida inteira de agressões tão corriqueiras que fingem não ligar. Que neste contexto ainda consigam ter desejo sexual e prazer com suas vaginas é um tanto impressionante.

Como ilustração, um resumo de alguns – só alguns – momentos da minha trajetória pessoal. Na primeira vez em que fui tocada por um homem, eu era criança. O homem era um menino ainda menor do que eu. Ao passar por mim na rua da cidade pequena, deu um tapa forte na minha vagina e disse: “bucetuda”. Foi meu primeiro contato. Voltei para casa chorando, mas me sentia tão envergonhada por ter uma vagina que não contei a ninguém. Adolescente, ao caminhar no centro de Porto Alegre de minissaia, um homem cuspiu nas minhas coxas. No ônibus lotado da faculdade, tentaram se masturbar na minha bunda mais de uma vez. Num Dia das Mães levei minha filha de nove anos ao cinema. Um homem sentou-se ao nosso lado e começou a se acariciar. Adulta, no trabalho, nas redações por onde passei, ouvi de tudo sobre a vagina, assim como minhas colegas. A melhor de todas: “A mulher é a parte chata da buceta”. Era dita por um homem inteligente e realmente gentil, que acreditava estar fazendo uma graça com colegas “sem frescura”. Nós ríamos para não sermos “a parte chata – e ainda por cima sem humor – da buceta”. Toda vez que escrevo algo que contraria algum grupo, como determinada polícia, recebo ameaças como: “vou te estuprar” ou “quero ver tua buceta”. Quando um líder evangélico discordou de um artigo que escrevi sobre as mudanças no Brasil provocadas pelo crescimento das igrejas neopentecostais, ao dar uma entrevista para o New York Times, entre todas as palavras disponíveis para me definir, ele escolheu esta: “tramp”. E lá estava eu, tomando café tranquilamente num sábado pela manhã, na minha casa, com minha família, quando o telefone começou a tocar: “Você viu que foi chamada de vagabunda no Times?”.

Assim é. Hoje, agora. E não me parece que a resposta para a violência naturalizada contra a vagina e o desejo sexual feminino seja transformar-se numa atleta sexual com orgasmos performáticos. Este é possivelmente um padrão para o consumo e para o mercado, muito mais à imagem, também estereotipada, do que seria um comportamento masculino na cama. Soa como uma resposta à repressão histórica, mas na prática está mais para uma embalagem palatável e enganadora para a mesma repressão, na medida em que não deixa de ser mais uma tentativa de controle sobre o corpo e o desejo feminino. A imagem da atleta sexual, determinada e agressiva, pode ser só uma outra prisão para as mulheres. A vagina e o desejo feminino, diferentes em cada uma, são muito mais complexos e potentes do que isso. Vale a pena lembrar que, na pornografia, a mulher que expõe sua vagina, seu ânus, sua nudez em cada detalhe e em close é aquela da qual menos sabemos.

Evelyn Ruman (Divulgação)

Evelyn Ruman (Divulgação)

Por tudo isso Evelyn, Casey e Naomi são tão importantes. O livro de Naomi costuma peregrinar por diferentes seções das livrarias, da pornografia a assuntos gerais, já que parece não haver lugar para encaixar a vagina. Evelyn precisou abrir uma galeria para conseguir expor suas fotos com sangue menstrual. E as matérias sobre Casey, na internet, em geral são colocadas em seções da vida “bizarra”, misturada a outras “bizarrices” como, por exemplo, vender carne de rato. A revista Time, que teve a clarividência de colocar sua performance como “arte”, decidiu fazer um título engraçadinho: Not Available on Etsy: This Woman Knits With Her, Uhhh Yeah (em tradução livre: “Não disponível na Etsy: esta mulher tricota com sua, hããã… Isso mesmo”) Sim, a vagina parece continuar impronunciável.

Quem escreve sempre tem um desejo. O meu é que talvez, em vez de dizer “que nojo!”, ao ler este texto você contenha a agressão ou a piada, sempre mais fáceis porque calam a possibilidade de reflexão. E comece a pensar sobre a vagina e o papel que cada um de nós desempenha, tanto nos atos quanto nas palavras quanto nas omissões, mesmo naqueles comentários que você acredita ser apenas uma mostra de humor, na reprodução de uma cultura de estupro e morte das mulheres. Morte física, mas também psíquica e criativa. Morte do desejo. Uma cultura que tem se ampliado e alcançado parâmetros novos com o poder de difusão da internet.

Se a violência contra a vagina tem aparecido – e em alguns casos aumentado – em diferentes espaços da sociedade, é legítimo pensar que o ímpeto de fortalecer a resposta repressiva ao desejo feminino possa revelar que as mulheres estejam assumindo um controle maior sobre seus corpos e a sua sexualidade. Neste sentido, a necessidade de fazer vítimas seria uma reação ao fato de as mulheres se recusarem com maior veemência a ocupar o lugar de vítimas. Nesta hipótese, a “Marcha das Vadias”, que começou no Canadá e ganhou o mundo e também o Brasil, é um exemplo contundente de uma ação feminina que desloca o imaginário, ao se apropriar da palavra da violência e transformá-la numa afirmação de potência, embaralhando a lógica machista. Mais uma vez, a vagina vive tempos turbulentos. Que são tempos de violência, já sabemos. Que sejam tempos de libertação, depende de nós.

(Publicado no El País em 09/12/2013)

 

Três histórias reais e uma despedida

Depois de 233 segundas-feiras, minha última coluna

Ele subia a rua em passos descalços, a sujeira da cidade tinha se plantado no solo dos seus pés e criado raízes escuras. A calça pertencia a um corpo maior, a camisa a braços mais curtos. A barba e o cabelo eram seus e eram livres. Ele subia a rua, mas seu rosto me dizia que poderia estar descendo. Não parecia importante para onde estava indo. O importante era o que segurava com firmeza entre as mãos encardidas: uma embalagem amassada de alumínio com arroz. Talvez tivesse mais do que arroz, mas no ângulo de onde eu o observava não podia ter certeza. Eu me perguntava se ele procurava um lugar para comer seu almoço tardio quando, de repente, ele freou os pés. Vi seu olhar se habitar em uma face que se tornava outra. Era um homem, agora, parado no meio da calçada, subitamente presente. Perplexa com a repentina mudança, segui o seu olhar.

Diante dele, uma moça bonita saía de uma agência bancária com uma amiga. Era para ela que ele olhava. A beleza dela o havia despertado. Estacionado no meio da calçada, ele não era apenas um homem, mas um homem tocado por um encantamento. E talvez não tantas mulheres assim tenham recebido alguma vez um olhar como aquele. Seu corpo fez então pequenos movimentos hesitantes, o que ele iria fazer?

Só existia o tempo de uma respiração antes de ela passar por ele sem vê-lo. Ele estendeu os braços e ofereceu sua pobre marmita.

Nenhum traço de vulgaridade, nada no seu gesto era barato. Era apenas tudo o que ele tinha. Pude ouvir a sua voz: “Você quer?”.

Meio assustada, meio constrangida, ela disse que não, obrigada, e saiu dando risadinhas com a amiga.

Ele apagou o olhar e começou a descer a rua, sem lembrar que antes estava subindo.

Tudo isso aconteceu em um minuto. Um minuto de São Paulo. Era início da tarde da quinta-feira passada, na rua Teodoro Sampaio, entre a Lisboa e a João Moura. Ao espiar seus passos pensei que alguém que cruzasse com ele, se o visse, veria apenas o que não era dele. As calças, a camisa, a sujeira. Sem saber que um minuto atrás ele havia empreendido um gesto desmedido: tinha oferecido tudo o que possuía e sido recusado.

Quis compartilhar esse minuto, transformá-lo em palavra, mesmo que a palavra jamais dê conta do movimento da vida. E com essa pequena história real me despedir desta coluna. Tem sido dias de muitos acontecimentos, às vezes de grandes tragédias, para onde se olha tudo parece grandioso. São tempos em que os fatos reivindicam o adjetivo de “histórico” antes de o dia acabar. Quis encerrar minha trajetória de mais de quatro anos neste espaço com um desacontecimento, a delicadeza mesmo nas horas brutas.

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Na semana de 30 de setembro a 5 de outubro, indígenas de diferentes povos e regiões do país planejam se reunir em Brasília para uma mobilização em defesa da Constituição. Escutar ou não o que têm a dizer definirá uma ideia de Brasil. Hoje, a bancada ruralista é a mais influente do Congresso Nacional. Suprapartidária, representa não a massa de agricultores, mas os grandes latifundiários. Se corresponde a uma minoria no conjunto da população, seu poder no Congresso é enorme. Um dos principais focos de sua atuação é avançar sobre as terras públicas, fazendo com que se tornem disponíveis para ganhos privados. Para isso, mira nas terras públicas destinadas aos povos indígenas, cujo direito originário a essas terras é reconhecido e assegurado pela Constituição de 1988. E trabalha para difundir entre a população três máximas: 1) a de que é necessário disponibilizar mais terras para a agricultura se o Brasil quiser se desenvolver; 2) a de que os índios têm terra demais e são um entrave ao desenvolvimento; 3) a de que só é um bom brasileiro aquele que “produz” – e produz em um modelo determinado, que limita a terra à condição de mercadoria.

Nenhuma dessas máximas se sustenta, mas seus defensores contam com a desconfiança de parte da população com os indígenas para transformá-las em “verdades” repetidas sem questionamento (leia aqui). Desconfiança que permitiu os genocídios que mancharam de sangue os últimos séculos e chegam aos nossos dias (leia aqui). Uma pesquisa da Embrapa já mostrou, para citar apenas um exemplo, que há 58,6 milhões de hectares só de pastos degradados pela pecuária, o equivalente a 53% da área total de terras indígenas. Hoje há tecnologia para aumentar a produtividade dessas áreas – e a melhoria da produtividade é o que separa os setores competentes do agronegócio dos incompetentes, já que a terra não é ilimitada. Acreditar que há muita terra nas mãos dos índios, que têm sido os grandes protetores da biodiversidade, é quase uma afronta à inteligência da população. Basta verificar a quantidade de terras nas mãos privadas de alguns membros da bancada ruralista e fazer as contas.

É bastante interessante que o direito à terra seja tão vorazmente defendido quando se trata da posse privada, mas, no caso dos povos indígenas, esse mesmo direito seja constantemente contestado, ainda que eles estivessem aqui muito antes da chegada do primeiro europeu. O ponto é que os povos indígenas têm direito ao usufruto dos recursos de terras públicas – e o que os ruralistas querem garantir é a posse privada dessas mesmas terras e recursos. Assim, elas deixariam de ser públicas, destinadas à posse permanente dos indígenas, para a reprodução do seu modo de vida – ou, as muitas ainda não demarcadas, jamais voltariam a ser públicas para o usufruto coletivo dos indígenas.

Para alcançar esse objetivo, é preciso esvaziar o artigo 231 da Constituição de 1988, que assegura aos povos indígenas suas terras originárias. No parágrafo sexto desse artigo, está previsto que apenas em condições excepcionais, “ressalvado relevante interesse público da União”, esse direito pode ser afetado. Cabe a uma lei complementar definir em quais casos excepcionais isso pode acontecer – ou o que é “relevante interesse público da União”. A proposta que tramita no Congresso é o Projeto de Lei Complementar 227/2012. Nele, os casos em que o interesse “público” se sobrepõe aos direitos dos povos indígenas são tantos (mineração, assentamentos agrários, faixas de fronteiras com núcleos populacionais, posses anteriores à Constituição de 1988, entre outros), que, na prática, as Terras Indígenas não seriam mais dos povos indígenas. E o que era regra vira exceção, violando a carta constitucional.

Para complementar o golpe contra os direitos dos povos indígenas, está em curso, entre outros projetos, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215/2000. Ela retira do Executivo a prerrogativa de demarcar as Terras Indígenas e a transfere para o Congresso. A comissão que vai analisá-la já é dominada pela bancada ruralista. Somados, o PLP 227 e a PEC 215 vão, na prática, tornar remota a possibilidade de demarcar e homologar Terras Indígenas ainda não amparadas pelo Estado e, ao mesmo tempo, desamparar as já asseguradas. Completa-se o esquema perfeito para que as terras públicas de usufruto dos povos indígenas tornem-se disponíveis para ganhos privados.

É para barrar essa versão mais sofisticada de genocídio que lideranças de diferentes povos indígenas estarão em Brasília no aniversário de 25 anos da Constituição de 1988. Cada povo representa uma visão de mundo, uma cosmogonia particular, uma forma de se relacionar com a terra e com os recursos naturais. Um jeito diverso de ser brasileiro que, junto com o jeito de ser brasileiro dos ribeirinhos e dos quilombolas, permitiu a preservação do que ainda existe de floresta em pé. Se uma parte significativa da população brasileira continuar acreditando que nada disso lhe diz respeito e que a bancada ruralista a representa, os povos indígenas estarão sozinhos.

É uma escolha. Mas é importante que essa escolha seja consciente, porque é um projeto de nação e de futuro que está em jogo.

É também com esse questionamento que encerro esta coluna. Busquei ocupar este espaço com o sentido de iluminar os cantos escuros dos acontecimentos e, principalmente, para acrescentar dúvidas novas ao cotidiano de quem me lê. Acredito que mais importante do que concordar ou discordar é estar aberto para qualificar as questões de nosso tempo histórico e, com elas, alargar o mundo de dentro e o de fora.

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Meus tios buscavam as horas a cavalo, como contei uma vez aqui. Na casa da zona rural era missão dos mais velhos dar corda no relógio de parede. Mas acontecia de alguém esquecer sua tarefa e, no espaço de uma batida, o som da passagem da vida cessava. De fato não fazia falta porque a natureza marcava o tempo e eles dela eram parte. Mas a ausência do tique-taque com os dias ia se tornando uma presença de mau augúrio, porque vida vivida é vida marcada. Antes que o mundo se desarranjasse, meu avô despachava um filho para a cidade. Dava a ele seu relógio de bolso, sempre parado até essas emergências temporais. Um dos meus tios encilhava o cavalo, só usado em ocasiões de importância, e lá se ia galopando por 13 quilômetros no encalço das horas. Sabia onde encontrá-las. Na praça central de Ijuí, de um lado postava-se a igreja católica, de outro a evangélica, a dividir almas e poderes. Mas só a evangélica ostentava na torre um relógio que dominava a cidade. Meu tio dava as costas para a sua fé, com a certeza de que o padre o perdoaria, e com as mãos desajeitadas pela enxada guardava as horas no relógio de bolso. Galopava de volta com o tempo enfiado nas calças. E o coração da casa voltava a bater lembrando que a vida acaba.

Esse relógio seguiu tiquetaqueando enquanto as mortes se sucediam, assim como as estações, e a casa lentamente foi virando terra. Chegou a minha vez de buscar o tempo para colocá-lo na minha parede, em cima da escrivaninha xerife. Não mais a cavalo, agora são mil quilômetros, mas de avião, um carro, talvez um ônibus. Tentarei não me esquecer de dar corda.

Compartilho essa memória pessoal para dizer que o tempo que passei aqui com vocês me ajudou a inventar uma vida com sentido. E agradeço – profundamente – pelo tempo que cada um me deu ao ler esta coluna, porque sei o quanto esse gesto é largo. Escolhi me despedir das segundas-feiras. E buscar novos dias.

(Publicado na Revista Época em 23/09/2013)

 

Heróis e vilões não cabem na reportagem

O debate que a Mídia Ninja tornou visível é maior do que Pablo Capilé e o Fora do Eixo

As ruas, as de paralelepípedos e as de bytes, foram tomadas nas últimas semanas por um debate que opôs o que se tem chamado de “mídia tradicional” ou “grande mídia” a esta que se apresenta como “Mídia Ninja (Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação). Em especial a partir do momento em que ficou clara a ligação entre o coletivo Fora do Eixo e a Mídia Ninja, no programa Roda Viva, da TV Cultura, que colocou Pablo Capilé e Bruno Torturra no centro da roda. Pessoas que conheciam o Fora do Eixo por dentro deram depoimentos arrasadores nas redes sociais. Artigos sobre o funcionamento do grupo, que a maioria dos brasileiros desconhecia, ganharam destaque na imprensa. É importante conhecer o Fora do Eixo e pensar a Mídia Ninja em toda sua complexidade e com todas suas contradições. Mas também é igualmente importante escapar de uma luta colocada em termos do bem contra o mal, que parece ter se imposto de parte a parte em alguns espaços, porque é nesse maniqueísmo que a complexidade se esvai. O maniqueísmo funciona como silenciador de sentidos, ao virar uma armadilha que nos desvia de um caminho mais penoso e menos imediato, povoado por dúvidas, em que cada um precisa confrontar seus próprios dogmas e assumir a tarefa, sempre trabalhosa e cheia de percalços, de construir conhecimento. Em momentos tão ricos como o que vivemos hoje, ganhamos possibilidades se formos capazes de ampliar e complicar as perguntas, em vez de encontrar respostas rápidas e fechadas que as matem antes de nascer.

A Mídia Ninja colocou no centro um debate sobre jornalismo que até então fluía nas bordas. Esse debate é anterior a ela. É travado por vários protagonistas, individuais e coletivos, inclusive dentro das redações da imprensa tradicional. Ao tornar-se visível nas manifestações de junho, destaque na imprensa brasileira e internacional, a Mídia Ninja o tornou visível. Esse talvez seja o seu maior mérito.

Será uma pena se o debate sobre jornalismo for calado, como tem acontecido, em nome de saber se Pablo Capilé é herói ou vilão, visão que tem variado conforme o narrador. Nesse debate, não há respostas únicas nem fechadas, muito menos detentores da verdade absoluta, a mais inverossímil das invenções humanas. Se é importante conhecer em profundidade o Fora do Eixo e sua figura central – e acho que é –, também é importante não reduzir um debate que é maior. Tratando aquele que é apenas um dos protagonistas como se fosse o único, ao desqualificá-lo, desqualifica-se toda a discussão. Isso é uma modalidade de silenciamento. Sem esquecer que o jornalismo se engrandece na medida em que se afasta dos heróis e dos vilões, sempre pobres de humanid ade. É ao debate sobre jornalismo – e especialmente sobre reportagem – q ue me parece importante voltar.

Ao longo do século 20, a imprensa consolidou uma hegemonia na tarefa de documentar sua época. Tornou-se a principal, às vezes a única, versão sobre os acontecimentos. Definiu o que era um acontecimento que merecia ser contado e o que não era e poderia ser apagado, na medida em que não virava narrativa. É importante sublinhar que, para a maioria dos homens e das mulheres que constroem o país, o mundo ou a aldeia em sua existência cotidiana, não ser reconhecido na narrativa da História tinha – e tem – um efeito brutal. A invisibilidade é, talvez, a violência que inaugura todas as outras.

A imprensa cumpriu bem o papel de documentar sua época sempre que ampliou as vozes e alcançou uma narrativa múltipla, complexa e contraditória do seu tempo. Cumpriu mal seu papel quando reduziu as versões e deixou de contar capítulos inteiros. Falhou miseravelmente todas as vezes em que tentou se colocar como totalmente isenta, imparcial e objetiva – ou como detentora de uma verdade única.

Essa relação entre quem conta e quem é contado – ou não é contado – nunca foi tranquila nem pacífica, já que é feita por homens e mulheres, não por uma entidade acima e ao largo de tudo. As batalhas foram e são travadas dentro e fora das redações, num embate necessário entre visões de mundo. Dentro das redações sempre existiram focos de discordância da posição editorial do veículo – e eram melhores os veículos em que essa disputa se dava como parte do cotidiano. Outros espaços foram criados para transformar em acontecimentos as pessoas, os fatos e as denúncias ignorados pela imprensa tradicional, como ocorreu na época da ditadura militar com a “imprensa al ternativa”. Soa um tanto estúpido acreditar que a imprensa pudesse não ser afetada pela vida e pelas vidas. E a vida e as vidas sempre vazaram dentro e fora das redações. A documentação da história em movimento – a matéria do jornalismo – é um embate no campo da política. E também é disso que se trata agora.

A internet quebrou a hegemonia da imprensa, na medida em que criou novos espaços de documentação, para além dos tradicionais, e permitiu a ampliação dos narradores numa escala antes impossível de ser atingida. E na medida também em que eliminou uma mediação, antes feita principalmente por jornalistas. Aqueles que não eram contados passaram a ter os meios para contar e ser escutados por outros também não contados. Aqueles que eram contados, mas discordavam da versão sobre si mesmos – e não falo apenas de indivíduos, mas também de grupos e de linhas de pensamento – passaram a produzir outras narrativas em resposta, no minuto seguinte. Sobre esse aspecto, talvez o episódio recente em que isso tenha ficado mais claro seja a declaração de morte de um grupo de guaranis caiovás, no ano passado. A carta foi amplamente divulgada nas redes sociais. Brasileiros urbanos passaram a falar, pelo Twitter e pelo Facebook, diretamente com as lideranças indígenas. Essa narrativa, construída à parte dos veículos tradicionais, impôs a questão tanto à pauta do governo quanto à da própria imprensa (escrevi sobre isso aqui e aqui).

A ampliação das narrativas e a democratização do acesso aos meios de narração, pelo surgimento da internet, são compreendidas em alguns espaços como o fim do jornalismo. Discordo totalmente dessa tese. No meu ponto de vista, para que essa tese pudesse ter consistência seria preciso encarar o jornalismo como algo imutável e dado, algo que teria sido sempre como hoje o conhecemos – e já estamos desconhecendo. O processo histórico mostra que o jornalismo é um campo em construção, dissolução e transformação, como tudo. E não poderia ser diferente, na medida em que está em disputa a narrativa do presente — algo que causa enorme impacto tanto sobre o próprio presente como também sobre a forma como ele será interpretado no futuro.

Nem me parece que a crise se restrinja a um modelo de negócios que precisa ser reinventado. Também é isso, mas não só. Estamos diante de uma mudança mais ampla, sobre a qual temos poucas pistas e certezas muito frágeis. Ao mesmo tempo que essa mudança ultrapassa o jornalismo, é também contada por ele. Isso mostra não sua decadência, mas sua força. Parece mais claro é que esta é uma crise de hegemonia. Terá mais chance de se reinventar quem aceitar que as narrativas agora se dão em múltiplos espaços.

Se é fato que hoje todos podem contar e se contar, que a definição do que é acontecimento se tornou território de um conflito com um número maior de participantes, travado para muito além das redações e dos espaços tradicionais de poder, também é fato que se fazer ouvir/ler/assistir tornou-se mais trabalhoso, e sem nenhuma garantia. O leitor – aqui entendido não apenas como leitor de textos escritos, mas como um leitor de realidades múltiplas – é hoje também um escritor de realidades. Não só na medida da sua produção pessoal, mas também porque continua a escrever os textos com sua opinião, discordância, sugestões, teses, ponderações e dúvidas, mesmo nos espaços tradicionais do jornalismo. Com esse aumento de poder de escolha e de intervenção, o lei tor tem se tornado mais seletivo ao escolher com que e com quem gastará seu tempo – e faz essa seleção numa paleta mais ampla. Esse deslocamento do lugar do leitor, antes um receptor até certo ponto passivo, provoca uma desacomodação geral.

Minha hipótese é de que o jornalismo, nos meios tradicionais e também nos novos, terá importância nesse mundo em aberto se for capaz de fortalecer e qualificar aquilo que é sua carne, sua espinha e também sua alma: a reportagem. Se, em vez disso, quiser competir com as narrativas ligeiras e superficiais que abundam na internet, perderá seu ponto de diferença. Pode até conseguir aumentar o número de acessos para suas páginas de imediato, mas, a médio prazo, perderá reputação e, por consequência, espaço e relevância.

Não sei como os espaços de reportagem, tradicionais e novos, serão financiados no futuro próximo. Essa e outras respostas estão em construção no mundo inteiro, não só no Brasil. É preciso fazer parte dessa construção como protagonista. O tempo de esperar que alguém diga como funciona já passou. Para que essa construção e esse debate sejam qualificados, é fundamental escaparmos, mais uma vez, do maniqueísmo, útil apenas para enevoar o olhar. Grandes reportagens, crônicas, artigos e ensaios foram produzidos pela imprensa tradicional, e muito do que hoje se discute se tornou possível a partir dessas reflexões. Transformar a imprens a tradicional em vilã, como alguns têm feito, demonstra apenas igno rância sobre o processo histórico e os embates dentro dele. Assim como reduzir as novas iniciativas a menoridades demonstra o mesmo tipo de ignorância. As oposições são menos óbvias do que parecem. O que soa novo às vezes é bem velho. E o que é velho nem sempre é ruim, pelo contrário. Tanto o novo quanto o velho não são bons ou ruins por definição. Os sentidos são algo em disputa.

De que lugar falo? Essa é sempre uma pergunta cuja resposta é preciso ficar tão clara quanto possível. Não sou uma pesquisadora acadêmica sobre o tema nem tenho uma investigação teórica sobre este e outros momentos da imprensa. Para isso, há gente mais habilitada que eu. Meu conhecimento sobre essas questões foi construído pela reflexão cotidiana, ao longo de 25 anos de reportagem – os últimos quatro também como colunista de opinião, algo que não se confunde com a reportagem, embora a use em parte. Quero concluir esta coluna com a reflexão sobre o que é reportagem, como a compreendo, porque esta, talvez, seja minha melhor contribuição para o debate.

Cada repórter, antes de sair de casa, da redação ou do seu umbigo para as ruas do mundo, precisa primeiro atravessar a rua de si mesmo. Este é um movimento profundo e constantemente aprimorado, que cada um encontra seu próprio jeito de fazer. Mas é um movimento obrigatório se quisermos ter a chance de encontrar o outro. Nesse movimento, nos esvaziamos de nossa visão de mundo, de nossos preconceitos, de nossos julgamentos, para irmos o mais vazios possível em direção ao mundo que é o outro, para que possamos ser preenchidos por ele e então empreendermos a viagem de volta, o que está longe de ser fácil. Quando voltamos para casa somos outros, transformados por essa experiência de ser um outro . Nesse movimento de ida e volta, em que aquele que foi já não é o mesmo q ue retorna, nosso desafio é decifrar a narrativa ou as narrativas daquela pessoa, daquele grupo, daquele mundo ou daquele acontecimento.

A reportagem é sempre uma decifração do outro e do mundo do outro. Por mais que pesquisemos antes, e precisamos pesquisar, é fundamental partirmos de um não-saber. É preciso saber muito para ser capaz de se perder – e, diante do outro, nos colocamos sempre perdidos. Quando acreditamos conhecer essa realidade antes de buscá-la, fechamos o espaço da descoberta e voltamos para o lugar de onde nunca saímos, com aquilo que nunca saberemos. Iludidos de que partimos e chegamos, mas de fato cimentados na mesma posição, pela ausência do gesto essencial.

Desvendar as narrativas do outro exige uma postura de humildade. A começar pela consciência de que somos seres falhos. Acreditar que ser repórter nos faz pairar acima da sociedade, encarnando uma isenção e uma imparcialidade que sabemos impossível, é perigoso para si mesmo e principalmente para quem abre a porta da sua vida para nos contar de si. Só o fato de decidir contar uma história já altera aquela história. É preciso ter a humildade de saber que atuamos lambuzados de cultura, com os dois pés enfiados no tempo. Sabendo-nos parte – e falhos –, podemos tomar as precauções possíveis para que tenhamos chance de chegar mais perto das verdades todas.

Depois do movimento interno de esvaziamento, o instrumento do repórter é a escuta. É a qualidade dessa escuta que garante a qualidade da reportagem. Como escutadores da narrativa de um outro, escutamos não só o que é dito como aquilo que não é dito, não só a voz, mas o silêncio, não só as palavras, mas os gestos, os cheiros, as expressões, os móveis e os objetos da casa, assim como suas rachaduras. Essa é uma escuta que se faz não só com os ouvidos, mas com todos os sentidos, em que só conseguimos descobrir a linguagem habitada pelo outro se, por um momento, nos desabitarmos.

Nos episódios em que deixamos esse lugar de escuta, porque às vezes não o sustentamos, é preciso contar ao leitor. É assim que nos precavemos de nossa condição humana e falha, dessa condição de ser na História e para a História. E conseguimos honrar a dignidade desse pacto em que alguém abre a porta da sua casa e dos seus interiores para se deixar decifrar como narrativa. É só por causa desse movimento que nos tornamos capazes de escutar um torturador, um pedófilo, um serial killer, para além do rótulo ocultador de “bandido”. Assim como a “vítima”, para além de uma circunstância que é apenas parte do que ela é.

Se não formos capazes desse movimento, deixamos de fora da história não só grandes porções de uma mesma pessoa, mas uma enorme porção de pessoas. Para o repórter, cada ser humano é uma experiência única e irrepetível, que será escutado em suas singularidades. É nesse movimento de decifração que nos tornamos capazes de compreender que não há vidas comuns, apenas olhos domesticados – e esse olhar domesticado não pode ser o nosso. É no olhar que se lança para além das camadas enganadoras de uma pretensa banalidade e dos muros impostos pelos discursos fechados que se faz a resistência cotidiana do repórter.

Ser repórter não é dado pelo fato de atuar na imprensa tradicional ou nas novas mídias, não é dado por ter diploma ou não, não é dado por títulos e por prêmios. Ser repórter simplesmente não está dado, na medida em que é um modo de estar no mundo. É mais do que um fazer – é um ser. E um ser que só é ao arriscar-se a ser outro.

(Publicado na Revista Época em 19/08/2013)

 

“Dom Ciccillo” e o fim do mundo

Tudo indica que isso que estamos vivendo não é a realidade

Quando o sol nasceu com a indiferença de sempre em 22 de dezembro, perguntei a um insistente apocalíptico das minhas relações como ele explicava que o mundo não havia acabado, tal qual ele havia repetido durante o ano inteiro como um mantra. Ele me desferiu um olhar de pena e respondeu, altivo: “E você achou que o mundo acabaria em fogo e fumaça”?

Achei a resposta um tanto 171, mas os primeiros meses deste ano começam a me assombrar. E se ele tinha razão, o mundo acabou, e eu agora me encontro numa espécie de realidade paralela? O primeiro sinal apareceu dias depois do apocalipse que parecia não ter acontecido, quando José Sarney (PMDB) defendeu, numa entrevista publicada na Folha de S. Paulo de 31 de dezembro, que ex-presidente deveria ser proibido de disputar eleição. “Acho que deveríamos ter uma legislação que não permitisse a nenhum ex-presidente da República, deixando o governo, que voltasse a qualquer cargo eletivo”, afirmou o homem que chegou à Câmara dos Deputados em 1955. Depois de deixar a presidência da República, em 1990, foram três mandatos como senador e mais de duas décadas ininterruptas no Congresso. Agora, em vias de aposentamento, defendia que para os outros deveria ser proibido. Estranho, muito estranho, desconfiei. O ano virou, e a realidade continuou ainda mais fantástica do que o habitual. Fantástica demais para ser confiável.

Uma série de acontecimentos tem me feito duvidar da realidade. E, na quarta-feira da semana passada, 13 de março, simplesmente parei de acreditar. Nesta data, a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei 6167, de 2009, batizando de “Rodovia Cecílio do Rego Almeida” o trecho da BR-277 localizado entre as cidades de Paranaguá e Curitiba, um dos principais da região sul do país. Ao ler a notícia, puxei da memória: “Cecílio do Rego Almeida, conhecido desde a ditadura militar como ‘Dom Ciccillo’? Aquele que foi chamado pela imprensa de ‘o maior grileiro do mundo’”? Não, claro que não.

Procurei o nome do autor do projeto: deputado André Vargas, atual vice-presidente da Câmara. Não, tive certeza que não. Como um deputado do PT, partido apoiado por boa parte dos movimentos sociais da Amazônia (hoje com bem menos afinco que na década passada), faria uma homenagem póstuma ao homem acusado de grilar uma área quase equivalente à soma dos territórios da Bélgica e da Holanda, na Terra do Meio, no Pará? Um reconhecimento público ao homem que se apossou de terras públicas, terras indígenas e até de assentamentos do Incra? Impossível, eu já concluía, quando vi no Twitter uma manifestação do deputado José Mentor, também do PT, anunciando, aparentemente com orgulho, que havia sido o relator do projeto, aprovado nessa última comissão.

Senti aquela vertigem cada vez mais familiar, sem saber se acreditava na lógica, que me dizia ser impossível, ou no que tentam me fazer acreditar que é a realidade. Entrei no site da Câmara e lá estava o projeto, aprovado em três comissões (a de Educação, a de Viação e Transportes e a CCJC). Fui conferir a justificativa do autor, deputado André Vargas: “A denominação que se pretende conferir ao trecho citado é uma justa homenagem ao Sr. Cecílio do Rego Almeida, empresário fundador e presidente do Conselho de Administração do Grupo CR Almeida, que reúne mais de 30 empresas e atua nas áreas de construção pesada, concessão de rodovias e logística de transporte, química e explosivos”. E, ao final: “Seu trabalho foi perseverante em seu objetivo, e agora, após a sua morte (…), este benemérito cidadão poderá receber a merecida homenagem”.

Me parecia evidente que eu estava sofrendo de alucinações. “Dom Ciccillo” seria homenageado por sua “perseverança”? Qual “perseverança”? Com certeza não a de se se apropriar de cerca de 6 milhões de hectares de floresta amazônica, num reino apelidado como “Ceciliolândia”. Merecida homenagem a “Dom Ciccillo”? O mesmo homem que, numa entrevista à revista Caros Amigos, chamou Marina Silva, então ministra do Meio Ambiente, de “uma indiazinha totalmente analfabeta e doente”?

Assim como definiu o ex-governador do Rio Grande do Sul Olívio Dutra como “um bicha, que é veado”? E se referiu a Chico Mendes como “esse seringueiro que se fodeu”? (Os leitores me perdoem a deselegância, mas as frases são do homenageado e, portanto, se justificam no contexto.) Na mesma entrevista, de 2005, “Dom Ciccillo” assim se refere à ditadura militar, que muitas grandes obras concedeu à sua empreiteira – e também ao partido do autor do projeto de lei, que agora faz a ele uma homenagem póstuma: “Entendo que foi uma ditadura, mas a mais leve das ditaduras. Hoje existe uma ditadura no PT mais forte que a dos militares”.

Não é óbvio, evidente, claríssimo que o projeto de lei não é real? Eu estou com a página da Câmara aberta diante de mim, mas só pode ser uma conspiração. A página verdadeira deve ter sido substituída por esta, falsa. Não acreditei nem por um minuto. “Dom Ciccillo”, homenageado pelos serviços prestados ao Brasil? Fiquei imaginando a cara de Raimundo Belmiro e muitos outros da Terra do Meio, que testemunharam a atuação de “Dom Ciccillo” na Amazônia, ao tomar conhecimento de que essa piada circulava no país como coisa séria. Quem seria o néscio que acreditaria numa coisa dessas? Eu é que não. E acreditei ainda menos quando li na Gazeta do Povo, do Paraná, que, por coincidência, a rodovia batizada com o nome de “Dom Ciccillo” é a mesma em que uma das empresas da CR Almeida administra o pedágio. Não, é claro que isso não está acontecendo.

Já não tinha acreditado no que me garantiam ser a realidade quando o Incra destinou um lote de terra à mulher do homem que será julgado pelo assassinato de José Cláudio Ribeiro e Maria do Espírito Santo. Para quem não lembra, os dois líderes extrativistas foram mortos numa tocaia, em maio de 2011, em Nova Ipixuna, no Pará. Tiveram pulmões e corações perfurados, e uma orelha de José Cláudio foi arrancada para comprovar a execução. O julgamento de José Rodrigues Moreira, acusado como mandante, e dos dois supostos executores do crime está marcado para 3 de abril. Mas no início de março foi divulgado que o Incra havia concedido um lote de terra à mulher de Moreira, a mesma área da qual ele tentou expulsar três famílias e só não conseguiu por causa da resistência de José Cláudio e Maria. Em resumo: o homem acusado de ordenar um duplo homicídio ganhou do Estado a concessão da terra que motivou o conflito. Uma espécie de prêmio.

Alguém acredita que o Incra cometeria uma barbaridade dessas? Eu nunca acreditei. E, como já não acreditava, também não levei a sério quando o Incra afirmou ao Ministério Público Federal que a concessão do lote foi um “equívoco” – e que a área seria retomada pela via jurídica.

Minha resistência em acreditar numa realidade que parece ficção de quinta categoria já havia sido testada antes, quando o deputado Marco Feliciano (PSC), pastor evangélico de sua própria igreja, a “Catedral do Avivamento”, se tornou presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara. Marco Feliciano? Eu só conhecia um. Este, entre outros barbarismos, havia afirmado o seguinte: “Os africanos descendem de ancestral amaldiçoado por Noé”. E ainda diria: “O reto não foi feito para ser penetrado”. Logo, não poderia ser este Marco Feliciano o presidente de uma comissão destinada a zelar pelos direitos de, entre outras minorias, negros e homossexuais. Portanto, é óbvio que eu não podia acreditar. E não acreditei.

Se fosse do tipo crédulo, como tantos por aí, eu acreditaria não só que o deputado Marco Feliciano é presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara, mas também que o senador Blairo Maggi (PR), ruralista que chegou a ganhar o “Motosserra de Ouro”, troféu do Greenpeace destinado a quem mais colabora com a devastação, é o presidente da Comissão de Meio Ambiente do Senado. Teria de acreditar inclusive que o deputado João Magalhães (PMDB), que responde a três inquéritos no STF (peculato, tráfico de influência e crime contra o sistema financeiro), é o presidente da Comissão de Finanças e Tributação da Câmara. E teria de acreditar até mesmo que Renan Calheiros (PMDB), que em 2007 renunciou à presidência do Senado por suspeita de corrupção, é hoje de novo o presidente do Senado.

Quem acredita nisso? Eu não.

(Publicado na Revista Época em 18/03/2013)

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