Duas mulheres indomáveis

Aos 102 anos, Aracy e Margarethe encerraram uma vida de cinema

Margarethe Bertel Levy (à esq.) e Aracy Guimarães Rosa

Margarethe Bertel Levy (à esq.) e Aracy Guimarães Rosa

Quando Margarethe morria no hospital, em casa a respiração de Aracy começou a falhar. Como o da amiga, também o seu pulmão ameaçava afogar-se. Maria Margarethe Bertel Levy morreu no dia 21 de fevereiro – e Aracy Moebius de Carvalho Guimarães Rosa na madrugada de 3 de março. Ambas tinham 102 anos. E uma história espetacular. Aracy, funcionária do consulado brasileiro em Hamburgo, havia salvado Margarethe de morrer num campo de concentração nazista. Uma brasileira e a outra judia alemã, as duas belíssimas, iniciaram sua amizade ao tornarem-se duas mulheres contra Hitler. E fizeram dela um laço inquebrantável ao viverem no Brasil que para Aracy era a terra natal, para Margarethe a rota de fuga. Quando a morte tentou separá-las, fracassou como todos que antes tentaram obstruir o caminho destas duas. Morreram quase juntas, com diferença de dias. Deixaram como legado uma vida de cinema.

Conheci essas duas mulheres três anos atrás. Quando tinham apenas 99 anos. Aracy Guimarães Rosa, como o sobrenome revela, foi o grande amor do escritor João Guimarães Rosa. Grande Sertão Veredas, talvez a maior obra-prima da literatura brasileira, foi dedicado a ela. “A Aracy, minha mulher, Ara, pertence este livro”. Em cartas para Aracy, Rosa revela um furor sensual que ninguém diria ao olhar apenas para seu aprumo de diplomata. Como ao escrever: “Antes e depois, beijar, longamente, a tua boquinha. Essa tua boca sensual e perversamente bonita, expressiva, quente, sabida, sabidíssima, suavíssima, ousada, ávida, requintada, ‘rafinierte’, gulosa, pecadora, especialista, perfumada, gostosa, tão gostosa como você toda inteira, meu anjo de Aracy bonita, muito minha, dona do meu coração”. Para Aracy, o escritor que criou um mundo e reinventou a língua portuguesa era o seu “João Babão”.

Mas Aracy não era apenas – e não que isso fosse pouco – a mulher por quem Rosa se apaixonou e com quem viveu até a sua morte. Aracy foi autora e protagonista de seu próprio romance na vida real. Tornou-se o “Anjo de Hamburgo” – a funcionária do consulado brasileiro que salvou dezenas de judeus do nazismo ao contrariar a política de Getúlio Vargas, enganar o cônsul e dar vistos para o Brasil antes que fossem presos em campos de concentração de onde jamais sairiam vivos. Seu nome está em Jerusalém, no Museu do Holocausto, como “justa entre as nações”, a mesma honraria com que foi reconhecido Oskar Schindler, cuja história foi contada em “A Lista de Schindler”, blockbuster de Steven Spielberg.

Eu a conheci para escrever uma reportagem que se chamou A lista de Aracy. Na matéria conto o que aconteceu com homens e mulheres que puderam tecer uma vida – e gerar uma descendência que, sem Aracy, não existiria. Um deles, Günter Heilborn, deu o nome de Aracy à primeira filha mulher e o nome de sua mãe, Selma, queimada num forno nazista, a uma orquídea de pétalas brancas e amarelas que criou como botânico amador. Há um mundo inteiro que só existiu porque Aracy existiu. E teve a coragem de fazer o certo – contra quase todos.

Ao buscar Aracy, alcancei Margarethe. Estas duas mulheres se encontraram no consulado brasileiro de Hamburgo em 1938. Aracy para salvá-la, Margarethe para ser salva. Em comum tinham a beleza e o fato de não seguirem a cartilha feminina da época. Eram ambas indomáveis. Ninguém podia com elas. Aracy, por exemplo. Era desquitada, no Brasil dos anos 30 (!!!). Fluente em várias línguas, tivera o desplante de, aos 26 anos, pegar o filho de cinco anos pela mão e rumar para a Alemanha para construir uma nova vida.

Sozinha com um menino pequeno, estrangeira num país à beira da insanidade e da guerra, ela teve a ousadia de desafiar a política do seu próprio país e enganar o próprio chefe. Armou uma pequena rede clandestina com arianos contrários à perseguição aos judeus que envolvia até o dono da autoescola onde tinha aprendido a dirigir seu Opel Olympia. Chegou a passar a fronteira com um judeu no porta-malas do carro com placa diplomática. E no meio dessa confusão teve tempo para viver um tórrido romance com Guimarães Rosa, o cônsul-adjunto que havia deixado no Brasil a primeira mulher, duas filhas e uma ainda incipiente estreia literária.

Margarethe tampouco era uma judia comum. Filha de pais ricos e liberais, passou boa parte da infância e da juventude viajando. Falava sete línguas. Seduzira Hugo, seu marido, (ou foi seduzida) na cadeira de dentista. Apaixonaram-se enquanto ele, 16 anos mais velho, cuidava da bela paciente. Com a ajuda de Aracy e de vários clientes arianos, Margarethe e Hugo conseguiram embarcar no navio Cap Ancona e chegar ao Brasil com a fortuna intacta. Não faltaram nem mesmo as jóias de Margarethe. Viveram em São Paulo sem maiores relações com a comunidade judaica. Hugo teve uma sólida clientela formada entre famílias alemãs. E Margarethe seguiu com sua vida cosmopolita.

Depois que Guimarães Rosa morreu, Aracy continuou vivendo no apartamento do casal no Rio. Em 1968, ela escondeu nele o compositor Geraldo Vandré, perseguido pela ditadura militar por causa da canção “Caminhando (Pra não dizer que não falei de flores)”. No prédio, próximo ao Forte de Copacabana, moravam vários oficiais. Enquanto a repressão caçava Vandré, ele compunha no sofá de Aracy. Depois, seu neto, Eduardo Tess Filho, levou Vandré para São Paulo numa Kombi. E de lá para o exílio.

Aos 80 anos, Aracy acabara de retirar dinheiro no banco quando tentaram lhe arrancar a bolsa. Deu tantas bolsadas no ladrão que o deixou estirado na calçada de Nossa Senhora de Copacabana. Daquele dia em diante, porém, a cidade foi assolada por uma guerra que ela não tinha mais idade para combater. E ela acabou resignando-se a morar em São Paulo com o único filho, o advogado Eduardo Tess. Aos poucos, bem devagar, foi perdendo os fios de sua memória.

Depois da morte de Hugo, há cerca de 20 anos, Margarethe ficou só. Enquanto pôde, manteve a independência e dirigiu seu Corcel até os anos 90 pelas ruas de São Paulo. Sem filhos seus para apoiá-la na velhice, foi o de Aracy que a adotou, em mais uma delicadeza dessa história cinematográfica. Margarethe seguiu vivendo em seu próprio apartamento, mas amparada pelo carinho da família Tess, que a chama de “Margarida”.

Quando conheci estas duas mulheres, Aracy parecia não estar mais aqui. Margarethe pouco caminhava, tinha dificuldade para enxergar e quase não ouvia, mas mantinha a mente límpida. E afiada. Foi ela quem me disse: “Entre mim e Aracy foi um golpe de amor. Só que entre duas mulheres”. Perguntei a ela como era na juventude. “Eu era sexy”, disse. E Aracy? “Muito sexy, linda, provocante, um corpo maravilhoso, os moços saltavam.”

Do tanto que tinham em comum, elas só não compartilhavam a fé. Aracy era uma católica fervorosa. Margarethe uma judia sem religião. “Eu não tenho esse apoio (da fé). Nasci judia e vou morrer judia, mas não sei nada de religião”, afirmou. Quase virando um século de vida e ela era o que era, sem concessões.

Aos 99 anos, Margarethe me olhou com olhos que supostamente não me viam e disse: “Pegaram minha mãe em Varsóvia. Puseram minha mãe no forno. Ela queimou”. E acrescentou: “Com o tempo, a gente não esquece”. É uma grande frase, à altura desta mulher única.

Margarethe já não podia mais alcançar Aracy nas visitas que fazia a ela nos derradeiros anos de vida. A amiga parecia não reconhecê-la. Mas o laço invisível que as unia de algum modo seguia lá, intacto. Há tantos anos alheia de tudo e também de si mesma, de algum modo Aracy pressentiu que Margarethe estava partindo.

Pode ser apenas coincidência, afinal elas tinham 102 anos e Aracy completaria 103 no próximo 20 de abril. Mas prefiro acreditar que não. Na madrugada de domingo para segunda (21/2), Margarethe morria e Aracy, que até então estava muito bem, sentiu a respiração falhar. “Tiveram a mesma morte”, me disse Beatriz Tess, a nora de Aracy, que cuidou das duas como se fossem suas próprias mães. “A gente pensava que não, mas de algum modo Aracy sabia”.

Ao contemplar Aracy imóvel em sua morte, um século de história inscrito no corpo envelhecido, me emocionei ao pensar que poucas mulheres podem afirmar terem vivido com tanta intensidade. Com tanta aventura, tanta paixão, tanto risco. Tanta verdade. Por causa de Aracy, Margarethe teve pelo menos mais 70 anos de uma vida que ela soube honrar vivendo com voracidade. Seu testemunho foi decisivo para que Aracy ocupasse seu lugar no Museu do Holocausto. E quando a amiga desligou-se do passado e também do presente, era na memória de Margarethe que ambas viviam.

Conhecendo um pouco a biografia destas duas mulheres extraordinárias, que não se renderam nem aos costumes nem aos preconceitos e nem mesmo a Adolf Hitler, gosto de pensar que elas não se deixaram vencer nem pela morte que as separaria. Posso imaginar Aracy pensando: “O quê? Se Margarethe se vai, eu vou com ela”. E tratou de morrer. Do mesmo jeito. Na hora que quis. Juntas, menos pelos dias que separaram a partida de uma e de outra, mais pela inteireza de uma amizade que redime o mundo.

(Publicado na Revista Época em 07/03/2011)

A vítima indigesta

Em livro, a austríaca Natascha Kampusch critica o maniqueísmo da sociedade e da imprensa – e de todos nós

Quase todos se lembram da austríaca que, em 23 de agosto de 2006, fugiu de seu sequestrador nos arredores de Viena. Natascha Kampusch terminava ali 3096 dias de um sequestro iniciado oito anos antes, em 2 de março de 1998. Naquele dia, sem se despedir da mãe depois de uma briga, ela caminhava até a escola quando foi agarrada e empurrada para dentro de uma caminhonete branca por Wolfgang Priklopil, engenheiro de telecomunicações, ex-funcionário da Siemens, jovem, educado, tímido e com enormes problemas com o mundo de fora. E, claro, com o de dentro.

Natascha viveu dos 10 aos 18 anos confinada no porão da casa de Priklopil. Depois dos primeiros tempos, ela alterou o porão com trabalhos duros na parte superior da casa que ajudava a reformar e a limpar. Sempre seminua e na maior parte do tempo com os cabelos raspados para não deixar vestígios. Nos últimos anos apanhava violentamente quase todos os dias e mal conseguia sustentar um corpo coberto por hematomas, cortes e lesões. A submissão era garantida ainda com a baixa ingestão de calorias e às vezes a suspensão total de comida por até dias. Aos 16 anos, Natascha media 1m75 e pesava 38 quilos.

Em 23 de agosto de 2006, Priklopil estava no bem protegido jardim da casa com Natascha, que aspirava os bancos da caminhonete, quando o celular dele tocou. Quando Priklopil precisou se afastar para atender à ligação por causa do barulho do aspirador, ela fez um enorme esforço para vencer a prisão psicológica que depois de tantos anos a paralisava mais do que os muros e escapou pelo portão. Desta vez, Natascha correu. Mais tarde, Priklopil se jogaria diante de um trem.

Este é o resumo da história. E era tudo o que eu sabia até agora porque quando começo a acompanhar esse tipo de caso no noticiário é sempre tão previsível que perco o interesse no segundo dia de cobertura. Há um monstro, louco e muito diferente de todas as pessoas boas e normais que habitam qualquer mundo, seja a Áustria ou aqui. E há uma vítima, frágil e confusa, que merece e precisa de toda a nossa pena. E há o resto de nós, que enquanto emite ahs e ohs diante da tela da TV, se regozija secretamente de que ainda bem que isso só acontece com os outros, que não há monstros morando dentro de nós nem vítimas habitando nossas almas. As tragédias cumprem seu papel de nos assegurar de nossa normalidade – assim como de nossa superioridade. E também por isso fazem um sucesso midiático tremendo.

Qual é a diferença aqui? A diferença é Natascha Kampusch. Para surpresa de seus conterrâneos e do mundo inteiro que disputava sua história (às vezes inventando detalhes sórdidos por achar que os verdadeiros ainda eram poucos), Natascha recusou-se a ocupar o lugar reservado a ela no espetáculo – o de vítima eterna.

Sim, ela dizia, eu fui uma vítima, mas isso não é tudo o que eu sou. Sim, Wolfgang Priklopil é um sequestrador e um criminoso, mas não é um monstro. “A simpatia oferecida à vítima é enganadora”, escreveria ela mais tarde. “As pessoas amam a vítima apenas quando se sentem superiores a ela”.

Natascha lutou para que não fizessem dela um produto de consumo em um show freak. Obviamente, perdeu logo a simpatia do público, que em muitos casos se transformou em ódio e ameaças pela internet. Chegou a ser acusada de cumplicidade e de ganhar dinheiro com a tragédia. Como assim, aquela menina loira e de olhos azuis, que deveria agradecer comovida a todas as manifestações de bondade vindas de todos os cantos de seu país e do mundo, ousava destruir a fábula moderna da cobertura midiática?

Pois ela ousou. E é por isso que seu livro 3096 dias – A impressionante história da garota que ficou em cativeiro durante oito anos, em um dos sequestros mais longos de que se tem notícia (Verus Editora) merece ser lido. Nas 225 páginas, Natascha Kampusch apropria-se de sua história e acerta suas contas – especialmente consigo mesma. Ao escrever a versão do que só ela viveu para contar, já que o outro protagonista está morto, eliminou qualquer possibilidade de transformarem sua vida num conto de fadas que, derrotada a fera, já teria o final feliz assegurado. Natascha Kampusch escolheu a vida, com todas as suas contradições, e não um pastiche dela – isto, quem desejava era o sequestrador.

Natascha, que leu muito no cativeiro, se expressa bem. Não é apenas a ajuda que teve para escrever o livro que garante a densidade da narrativa, mas sua capacidade de refletir e analisar o vivido torna-se bem clara também nas entrevistas que dá à imprensa. Escolhi alguns trechos do livro para que nos ajudem a entender o que Natascha nos diz. E é importante o que ela nos diz para entendermos a nós mesmos – e o nosso papel nas tragédias que se sucedem no noticiário e na vida.

Natascha Kampusch começa sua narrativa escapando do mito da infância feliz. Ela não era uma alegre e saltitante Chapeuzinho Vermelho engolida por um lobo malvado quando estava a caminho da casa da avó para mais um dia perfeito. Era uma menina que tinha dúvidas sobre o amor dos pais (como a maioria de nós, aliás), que fazia xixi na cama apesar de já ter 10 anos e sentia-se desconfortável com o próprio corpo gorducho. No dia do sequestro ela tinha conquistado a liberdade de ir sozinha à escola pela primeira vez, um trajeto de cinco minutos. Estava apavorada com a nova aventura, o que pode ter sido pressentido por Priklopil, um homem que conhecia muito bem o sentimento do medo em sua própria pele e se sentia totalmente deslocado no mundo exterior.

“Hoje acredito que, ao cometer um crime terrível, Wolfgang Priklopil queria apenas criar seu próprio mundinho perfeito, com uma pessoa que estivesse ali só para ele. Provavelmente ele nunca teria podido fazer isso do jeito normal e decidira, assim, forçar e modelar alguém para isso. Em essência, ele não queria nada mais do que as outras pessoas: amor, aprovação, calor. Queria alguém para quem ele fosse a pessoa mais importante do mundo. Ele parecia não ter visto outro modo de conseguir isso senão sequestrando uma menina tímida de 10 anos e a afastando do mundo exterior, até que ela estivesse tão psicologicamente alheia que ele pudesse ‘recriá-la’. (…)

Ele precisava daquele crime insano para concretizar sua visão de um mundo perfeito e intacto. Mas, no fim, realmente queria apenas duas coisas de mim: aprovação e afeto. Como se o objetivo por trás de toda aquela crueldade fosse forçar uma pessoa a amá-lo incondicionalmente.”

As torturas se intensificaram justamente quando Priklopil percebeu que, apesar de tirar-lhe o espelho para que não tivesse nenhuma imagem de si, batizá-la com um novo nome e proibi-la de pronunciar o antigo, ele não conseguia dobrar Natascha. E a vida idílica que esperava ter com sua mulherzinha/escrava dentro de casa, longe dos olhos do mundo, era impossível. Era impossível especialmente para ele, que se tornava cada vez mais temeroso do mundo lá fora. E mais desesperado com o de dentro, onde a menina crescia e se tornava mulher, algo com que ele nunca tinha lidado muito bem.

“Se eu tivesse apenas o odiado, esse ódio teria me consumido e me tirado a força de que eu precisava para sobreviver. Como naquele momento pude captar um lampejo do ser humano pequeno, desorientado e fraco por trás da máscara do sequestrador, pude me aproximar dele. Então, olhei em seus olhos e disse:

– Eu perdoo você, porque todo mundo erra às vezes.

Foi um passo que pode parecer estranho e doentio para muitas pessoas. Afinal de contas, o ‘erro’ dele custara minha liberdade. Mas era a única coisa a fazer. Eu tinha de conseguir conviver com aquele homem, caso contrário não sobreviveria.”

Em vários momentos do livro, Natascha mostra como o perdão tornou-se um instrumento poderoso nessa relação delicadíssima, em que o sequestrador tinha literalmente a vida dela nas mãos. Perdoar a tornava potente – e não apenas passiva. Alterava o equilíbrio de forças entre os dois. Ela passou oito anos e meio recusando-se a chamá-lo de “mestre” e a ajoelhar-se diante dele, mesmo que fosse espancada por isso.

O confronto de Natascha com o mundo de fora é revelador menos da vítima e do sequestrador – mais da sociedade, de nós. Imagine a cena. Ela corre para longe do seu sequestrador, depois de mais de oito anos de cativeiro. Diz às primeiras três pessoas que encontra, uma criança e dois homens adultos: “Vocês têm de me ajudar! Preciso de um celular para chamar a polícia! Por favor!”. A resposta foi: “Não podemos. Não trouxe meu celular”. Pense bem no que você faria diante da situação, antes de acusar a monstruosidade dessa resposta.

Em seguida ela atravessa vários jardins, salta cercas e vê uma mulher na janela da casa. Ela bate na janela e diz: “Por favor, me ajude! Chame a polícia! Fui sequestrada. Chame a polícia!” A mulher reage dizendo: “O que você está fazendo no meu jardim? O que você quer?”. Ela dá seu nome completo, explica que foi seqüestrada e que ela precisa chamar a polícia. A mulher retruca: “Por que você veio justo até a minha casa?” Então hesita: “Espere na cerca viva. E não pise no gramado!”. Antes de julgar a mulher da janela – e acho que devemos julgar, sim – vale a pena nos perguntarmos o que faríamos nessa situação.

Mais tarde, os próprios policiais tratariam Natascha com desprezo por ela não ter permitido que seguissem se comportando como seus salvadores. Pelo contrário. Ficaria provado, num escândalo posterior, que seu caso foi uma combinação de desleixo com incompetência. Que havia uma pista sólida sobre o sequestrador e a localização do cativeiro e que esta pista nunca foi investigada. Os documentos que atestavam o descaso desapareceram e só mais tarde a fraude foi desmascarada.

Enquanto isso, Natascha foi atormentada por interrogatórios infindáveis com o objetivo de obrigá-la a afirmar que estava sendo chantageada por cúmplices, que fora sequestrada por uma quadrilha – enfim, que a força policial não havia sido vencida por seus próprios erros e por um homenzinho tímido e frágil que esteve o tempo todo ali, a apenas alguns quilômetros da casa da vítima.

“As autoridades começaram a me tratar diferente com o passar do tempo. Fiquei com a impressão de que, de certo modo, eles se ressentiam do fato de que eu me libertara sozinha. Nesse caso, eles não eram os salvadores, mas aqueles que haviam falhado durante anos”.

Quando Natascha se recusou a representar o papel de vítima passiva do “monstro sexual”, foi odiada e ridicularizada. Os mais bonzinhos, com seus diplomas na parede e sua condescendência profissional, trataram de carimbar o diagnóstico definitivo na sua testa. A patologia de sempre: “Síndrome de Estocolmo”. Mas deixemos que Natascha fale, porque ela se defende com muita propriedade também dos bem intencionados.

“As coisas não são totalmente pretas ou brancas. E ninguém é totalmente bom ou mau. Isso também vale para o sequestrador. Essas são palavras que as pessoas não gostam de ouvir de uma vítima de sequestro. Porque os conceitos de bem e mau já estão claramente definidos, conceitos que as pessoas querem aceitar para não perder o rumo em um mundo cheio de tons de cinza.

Quando falo sobre isso, posso ver a confusão e o repúdio no rosto de muitas pessoas que não estavam lá. A empatia que sentem pela minha história se congela e se transforma em negação. Pessoas que não têm ideia da complexidade do cativeiro me negam a capacidade de julgar minhas próprias experiências ao pronunciar três palavras: ‘Síndrome de Estocolmo’.

Síndrome de Estocolmo é um termo usado para descrever um fenômeno psicológico em que os reféns manifestam sentimentos positivos em relação aos sequestradores. Esses sentimentos fazem com que as vítimas simpatizem ou mesmo colaborem com os criminosos – isto é o que dizem os compêndios. Um diagnóstico classificatório que rejeito enfaticamente.Por mais simpático que pareça ser o uso do termo, seu efeito é terrível, pois transforma as vítimas em vítimas novamente, ao tirar delas a capacidade de interpretar a própria história e ao transformar as experiências mais significativas em produto de uma síndrome. (o grifo é meu)

O termo aproxima de algo censurável o próprio comportamento que contribui significativamente para a sobrevivência da vítima. Aproximar-se do sequestrador não é uma doença. Criar um casulo de normalidade no âmbito de um crime não é uma síndrome. É justamente o oposto. É uma estratégia de sobrevivência em uma situação sem saída – e é muito mais verdadeiro que a ampla categorização dos criminosos como bestas sanguinolentas e das vítimas como cordeiros indefesos, na qual a sociedade quer se basear”.

Dá para entender por que, passado o clamor inicial, Natascha Kampusch tornou-se uma vítima indigesta.

Chegaram a sugerir a Natascha que trocasse de nome para não ser assinalada pelo que viveu. Como se isso fosse possível. E, caso fosse possível, como se anular seu passado não anulasse com ele uma parte essencial de si mesma. “Que tipo de vida seria essa, especialmente para alguém como eu, que durante os anos de cativeiro lutara para não perder a identidade?”, questiona.

Com surpreendente maturidade, Natascha entendeu que só tem uma vida aqueles que aceitam as suas marcas como parte do vivido, mas não como tudo o que são. E assim, ela não se fixou nas marcas nem se deixou paralisar pelo lugar de vítima eterna. Natascha Kampusch seguiu com seu corpo e sua vida marcada em direção ao futuro, pronta para ser tatuada por novas experiências. Como é, afinal, a vida de todos nós.

Natascha Kampusch não era Chapeuzinho Vermelho e, se Wolfgang Priklopil era um lobo, era um bem patético. Ela não teve a chance de ouvir os contos de fadas muitas e muitas vezes na hora de dormir para ter certeza de que o horror não aconteceria com ela, como se passa nas noites das crianças sortudas. Natascha foi arrancada da infância para ser a escrava de um adulto perturbado e talvez tão assustado quanto ela. E o horror continuava lá quando acordava presa em um porão escuro.

Aos 22 anos, Natascha precisou transformar o vivido em história contada. Para ser capaz de libertar-se e seguir adiante, porém, era fundamental ser fiel à complexidade da vida e às nuances dos personagens. Queriam dela mais um remake estereotipado do que costuma ser contado e recontado em tragédias espetaculosas. Ela respondeu com uma narrativa que nos implica a todos. É por ter se negado a dar respostas fáceis ao mundo que a assistia que não a perdoam. Mas esta é a história que a Natascha adulta pode contar a si mesma tantas vezes quanto forem necessárias e acordar no dia seguinte sabendo quem é.

Seu livro é uma boa leitura para todos, possivelmente essencial para policiais, advogados, promotores e juízes, para assistentes sociais, psicólogos, psiquiatras e psicanalistas – e, sim, para jornalistas. Se eu fosse professora de alguma faculdade de jornalismo consideraria bibliografia obrigatória. O testemunho de Natascha pode nos ajudar a cometer menos atrocidades nas coberturas das tragédias que se sucedem no noticiário.

Sobre sua relação com a imprensa, Natascha escreve o seguinte:

“Eu nunca abriria mão da minha identidade. E me apresentei diante das câmeras com meu nome completo e sem disfarces, e ofereci um vislumbre do tempo do cativeiro. Mas, apesar da minha franqueza, os meios de comunicação não me deixavam em paz. Eram dezenas de manchetes, e especulações cada vez mais absurdas dominavam o noticiário. Parecia que a verdade terrível não era terrível o bastante, então eles acrescentavam coisas muito além do suportável, negando, com isso, minha autoridade como intérprete do que eu vivera. (…)

Fui percebendo que caíra em outra prisão. Centímetro a centímetro, as paredes que substituíram o cativeiro se tornaram visíveis. Eram mais sutis, construídas com o interesse público excessivo, que julgava cada movimento meu. Assim, coisas simples como pegar o metrô ou ir ao shopping em paz se tornaram impossíveis para mim. Acreditei que, ao satisfazer a curiosidade da mídia, seria capaz de retomar minha própria história. Só depois descobri que uma tentativa como essa nunca teria êxito. Nesse mundo que buscava por mim, a questão não era eu. Eu me tornara conhecida por causa de um crime terrível. O sequestrador estava morto – não havia um caso Priklopil. Eu era o caso: o caso Natascha Kampusch.”

Ela vai mais além. Vai até o fim.

“Depois da fuga, fiquei surpresa – não pelo fato de que eu, como vítima, fosse capaz de fazer essa diferenciação, mas de que a sociedade na qual entrara após meu cativeiro não permitisse a menor nuance. Como se eu não pudesse refletir de maneira alguma sobre a pessoa que fora a única em minha vida durante oito anos e meio. Não posso nem aludir ao fato de que preciso desse recurso para tentar superar o que aconteceu sem despertar incompreensão.

Ao mesmo tempo, percebi que, em certa medida, também idealizei a sociedade. Vivemos em um mundo em que as mulheres apanham e são incapazes de abandonar o homem que bate nelas, embora, em tese, a porta esteja aberta. Uma em cada quatro mulheres é vítima de violência extrema. Uma em cada duas mulheres sofre assédio sexual durante a vida. Esses crimes estão em toda parte e podem ocorrer atrás de qualquer porta do país, em qualquer dia, e talvez só provoquem um dar de ombros ou uma indignação superficial.

Nossa sociedade precisa de criminosos como Wolfgang Priklopil para dar um rosto ao mal e afastá-lo dela mesma. É preciso ver imagens desses porões para que não se vejam os muitos lares em que a violência ergue sua face burguesa e conformista. A sociedade usa as vítimas desses casos sensacionalistas, como o meu, para se despir da responsabilidade pelas muitas vítimas sem nome dos crimes praticados diariamente, vítimas que não recebem ajuda – mesmo quando pedem.

Crimes assim, como o que foi cometido contra mim, formam a estrutura austera, em branco e preto, das categorias de Bom e Mau nas quais a sociedade se baseia. O criminoso deve ser um monstro, para que possamos nos ver no lado dos bons. O crime deve ser acrescido de fantasias sadomasoquistas e orgias selvagens, até que seja tão extremo que não tenha mais nada a ver com nossa própria vida.

E a vítima deve ficar destruída e permanecer assim, para que a externalização do mal seja possível. A vítima que se recusa a assumir esse papel contradiz a visão simplista da sociedade. Ninguém quer ver isso, porque, caso contrário, as pessoas teriam de olhar para dentro de si mesmas”.

A história que Natascha Kampusch escolheu contar foge de todas as simplificações. E por isso ela pagou – e vem pagando – um preço alto. Me pergunto de onde essa garota presa e torturada por um homem solitário e instável durante mais de oito anos conseguiu forças e lucidez para continuar brigando pela integridade do que é. Não mais agora contra Wolfgang Priklopil, mas contra todos nós que queremos reduzi-la às necessidades de nosso voraz apetite por vítimas. Ao nosso desespero por uma normalidade que só existe em nossas fantasias, à categorização simplista do bem e do mal – onde todos estamos, claro, sempre no lado do bem.

Suponho que, logo após a fuga, Natascha Kampusch tenha percebido que não podia se deixar sequestrar novamente – agora não mais pelo criminoso de um só rosto, mas pela sociedade que tentava aprisioná-la em rótulos fáceis, convenientes para todos menos para ela. Assumiu o preço sempre custoso da liberdade e vem tentando ditar suas próprias regras. Algo como: “Ah, vocês esperavam ser salvos? Desculpa, mas não à custa da minha vida”.

Este livro é um manifesto de afirmação de sua identidade. Com toda a inteireza de sua experiência. À Natascha Kampusch, meu máximo respeito. Espero que ela continue nos mandando passear e siga com a sua vida.

(Publicado na Revista Época em 21/02/2011)

“Eu fiz o parto do meu filho, não o médico”

A luta de uma mulher para conseguir um parto natural nos dias de hoje

Sempre quis entender por que uma mulher prefere passar por uma cirurgia que exige um corte transversal de 10 a 15 centímetros e atravessa sete camadas de tecido do que ajudar seu filho a nascer da forma mais natural. Segundo a Organização Mundial da Saúde, apenas 15% dos partos têm indicação de cesariana. Mas, no Brasil, oito de cada 10 partos na rede privada são cirúrgicos. E, assim, os bebês brasileiros cujas mães têm plano de saúde nascem em horário comercial e o que era natural virou exceção. Por quê? E para o benefício de quem?

Já ouvi dezenas de vezes a justificativa de que a cesariana “é mais prática, cômoda e indolor”. Prática, cômoda e indolor para quem? Talvez seja mais prática, cômoda e indolor para o médico, que não vai ser acordado no meio da noite nem ter de desmarcar compromissos e consultas para acompanhar um processo natural durante horas. Mas, para a mulher, os fatos provam que não. Ainda que o parto natural leve mais tempo, assim que a criança nasce não há mais dor. Já a recuperação da cesariana pode levar semanas e até meses, quando tudo dá certo. Sem contar os riscos inerentes a uma cirurgia de grande porte. Há poucos dias, ao visitar uma amiga que acabou de ter seu segundo filho por cesariana, ela me disse: “A dor que senti ao tentar levantar depois da cesárea foi muito maior do que todas as dores do parto natural do meu primeiro filho. Não entendo como alguém pode achar que isso é melhor”.

Também já perguntei a alguns obstetras por que fazem tantas cesarianas. E a resposta de todos foi: “Porque nenhuma das minhas pacientes quer ter parto natural”. Será? Sempre desconfiei que parte dos médicos não sabe fazer parto natural. E, além de ser mais prático para eles, escolhem a cesariana porque também têm medo. Em uma reportagem sobre mortalidade materna publicada na Época em 2008, o obstetra Nelson Sass, professor da USP, afirmava exatamente isso: “Os estudantes de Medicina das melhores faculdades quase não têm contato com parto natural. É uma deformação das escolas. Como os casos mais complicados são encaminhados aos hospitais universitários e resolvidos com cesáreas, os alunos não treinam o parto natural”.

Este obstetra, que não foi treinado para o mais fácil e mais natural, vai convencer aquela gestante que, no caso dela, uma cesariana é a melhor opção. Quando uma mulher está com um filho na barriga e um médico diz que é necessário cortá-la para que ele saia, dificilmente ela vai desafiar a autoridade do médico e contestá-lo. Se o médico diz que é mais seguro, como ela vai discutir e correr o risco de comprometer a vida do seu filho? Nesses casos, mesmo mães que desejaram e se prepararam para um parto natural recuam diante da autoridade daquele que sabe. Mas, às vezes, aquele que sabe só tem medo. Ou, pior, tem um compromisso social em seguida ou apenas quer ganhar mais.

Quando uma mulher engravida e a barriga começa a crescer, dá medo, às vezes até pânico, saber que aquele bebê que está dentro dela vai ter de sair. E é ela quem vai ajudá-lo nisso. E que esse processo inclui dor. É natural ter medo. Isso não significa que essa mulher não possa lidar com esse medo e com todas as fantasias a respeito desse momento e, mesmo assim, viver o que tem para viver. A maior fantasia – e a que mais atrapalha todas as mulheres – é justamente a ideia de que a maternidade é sagrada e só envolve bons sentimentos. Então, para ser uma boa mãe, supostamente uma mulher teria de achar tudo lindo e elevado.

Poucas crenças são mais perniciosas para as mulheres – e depois para os seus filhos – do que o mito da maternidade feliz. A escritora francesa Colette Audry disse uma frase genial sobre o que é um filho: “Uma nova pessoa que entrou na sua casa sem vir de fora”. Como não ter medo e sentimentos conflitantes a respeito de algo assim? Engravidar e parir dá medo mesmo. E uma mulher não vai amar menos aquele bebê por sentir pavor, raiva e sentimentos supostamente menos nobres – ou supostamente proibidos. Ao contrário. Ela pode ser uma pessoa pior e uma mãe pior se sufocar esses sentimentos em vez de aceitá-los e lidar com eles. O que também implica lidar com o medo da dor do parto e da responsabilidade de ajudar o filho a nascer. É claro que auxilia bastante encontrar um obstetra responsável que converse com ela sobre seus sentimentos – em vez de abrir a agenda para marcar a cesariana.

É por medo de viver e porque ninguém as ajuda a lidar com seus piores pesadelos que muitas mulheres preferem não sentir – literalmente – um dos momentos imperdíveis da vida que é o parto de um filho. Acredito que a saída para esse medo não é ser anestesiada e cortada em data previamente marcada. E, principalmente, sem necessidade. Como me disse uma grávida um dia: “Prefiro a cesariana porque aí não tenho de passar por isso. Eu fico ali, sem sentir nada, e de repente meu filho já está do lado de fora”. Essa mulher nunca soube o que perdeu, porque perdeu.

Hoje há um movimento forte em defesa do parto natural e há crianças nascendo em salas humanizadas de hospitais e mesmo dentro de casa nas grandes cidades, como São Paulo, enquanto lá fora o trânsito para e os carros buzinam. Existem grupos semanais onde as mulheres e também os homens podem falar abertamente sobre todos os medos e trocar experiências sobre parto e amamentação. E poder falar sobre isso e dizer que eventualmente está apavorada faz bem para todo mundo e também para o bebê que vai ter uma mãe que consegue falar de seus sentimentos. E falar do que sentimos e do que não sentimos, por pior que nos pareça sentir o que não queríamos sentir – ou não sentir o que achamos que deveríamos sentir –, nos ajuda a amar melhor.

Algumas ressalvas, porém. A luta pela volta do parto natural é um bom combate. Mas é preciso não cair no outro extremo e virar xiita, já que dogmas não fazem bem à vida. Às vezes percebo com pena esse traço em alguns movimentos que poderiam ser melhores se deixassem a soberba de lado. A cesariana é uma ótima saída nos casos em que é indicada e pode salvar a vida da mãe e do bebê. O problema não é optar por ela quando claramente é a melhor alternativa diante de uma complicação – e sim fazer a cirurgia sem necessidade, um comportamento epidêmico no Brasil.

Nenhuma mulher é menos mãe ou menos mulher porque não conseguiu ter um parto natural. Assim como nenhuma mulher é menos mulher porque decidiu que não quer ser mãe. Já testemunhei mães orgulhosas de seu parto natural esmagar com sua suposta superioridade uma outra que precisou de cesariana. Este é um comportamento lamentável, quando não ridículo. Nesses casos, além de ter sido submetida a uma cirurgia e estar cheia de dores e pontos, a mulher é punida porque não foi uma superfêmea. Como se ter de fazer uma cesariana fosse uma nova modalidade de fracasso. Superfêmeas, assim como supermães, para o bem da humanidade é melhor que não existam. As mulheres mais bacanas e as que possivelmente serão melhores mães são as que assumem seus medos e não punem o medo das outras. E compreendem que na vida, assim como no parto, a gente tenta fazer o melhor possível. E o melhor possível tem de ser o suficiente.

Para nos ajudar a pensar sobre tudo isso, entrevistei uma amiga que teve seu primeiro filho há uns poucos meses, perto dos 40 anos. Eu a escolhi porque ela desejou muito um parto natural. E se preparou muito para o nascimento do seu filho. E conseguiu o seu parto. Mas, para isso, passou por um tremendo estresse desnecessário em seu embate com a cultura predominante da cesariana e o medo de que os profissionais escolhessem por ela ao longo do trabalho de parto.

Quando fui visitá-la no hospital, no dia seguinte ao nascimento do bebê, ela tinha necessidade de contar sobre o pavor vivido não por causa das dores do parto, mas pelo medo de que roubassem dela esse momento. Seu bebê era saudável, ela ajudava a dar nele o primeiro banho e amamentava-o sem nenhum incômodo. Mas o embate com a equipe de saúde a tinha marcado. E teria sido melhor se ela tivesse a certeza de que sua decisão seria respeitada – e uma cesariana só seria feita se realmente houvesse necessidade.

Há cerca de um ano ela deu outra entrevista para esta coluna, sobre seu desejo e suas dificuldades de engravidar, e os mitos de fertilidade que atrapalham a vida das mulheres. Agora, ela nos conta o capítulo seguinte. A experiência de cada mulher é única. Esta é a da minha amiga. Nem certa nem errada, nem melhor nem pior, apenas a dela.

ÉPOCA – Você queria muito ter parto natural. Por quê?
Me parecia uma experiência mais completa do que uma cesariana, mais natural e menos passiva. Queria fazer força, ajudar meu filho a vir ao mundo. Não queria alguém tirando ele com um bisturi sem que eu visse, por trás de uma cortininha hospitalar, em 10, 15 minutos. A cena tinha de ser maior, mais demorada e curtida. Me via puxando/empurrando meu filho pra vida. A gente tomava fôlego de vez em quando e ele continuava a sair. Algo pra se ir absorvendo aos poucos. Ao longo da gravidez, também fui construindo em mim a ideia de que um parto normal seria algo mais meu, sobre o qual eu teria mais controle do que uma cirurgia. Eu faria o parto – não o médico.

ÉPOCA – Este desejo, que é natural, afinal é assim que as crianças nascem ou deveriam nascer quando não há nenhuma complicação, acabou sendo difícil de botar em prática, porque toda a cultura ao redor empurrava você para uma cesariana. E isso deu a você uma carga extra de tensão. Como foi?
– Eu tive de fazer uma verdadeira maratona para conseguir meu parto. Sabia que as cesarianas eram regra, mas não que era tanto assim. Os médicos te dizem: “Vamos tentar um parto normal”, como se fosse o mais difícil, como se exigisse condições. Ora, o “normal” não é ser normal e a cirurgia só acontecer se algo der errado? O fato é que eu tive de convencer, barganhar, ameaçar trocar de médico para conseguir que fosse normal. Percebi que precisaria me informar horrores, me apropriar do processo, para que quando chegasse o momento ninguém pudesse me enrolar com desculpas como as que eu ouvia de amigas justificando cesáreas. E nesta viagem eu aprendi muitas coisas sobre parto. Tantas que teria sido capaz de fazer o meu sozinha. Descobri que bastava amparar meu filho na saída e secá-lo. Não existe nenhum procedimento imprescindível nem durante o parto, nem no nascimento – quando tudo está bem, é claro. Não deixa de ser um absurdo ter de descobrir como funciona algo tão ancestral e natural como um parto. Este processo parece que foi transformado em um mistério pela medicina moderna – um mistério até para as mulheres.

ÉPOCA – Por que você acha que a medicina tornou o parto um mistério? E por que você acha que as mulheres preferem cesarianas? Do que elas têm tanto medo, afinal?
Primeiro, por falta de informação. Os médicos dão pouca informação. Chegam a perguntar o que a mulher prefere, em vez de irem direto para o normal e partirem para a cesárea apenas quando necessário. Já ouvi de um médico que cesariana era mais “prático”. O ponto de partida é que já está errado. Se os médicos não esclarecem, as possibilidades de parto normal já ficam reduzidas. Por exemplo, o parto normal dói, mas tem a opção da anestesia no momento em que a paciente quiser, embora o ideal seja mais para o final. Acho que se as mulheres conhecessem melhor o processo, optariam menos por cesarianas. Há vários mitos envolvidos. Acho que algumas mulheres consideram o parto normal algo pouco civilizado, pouco moderno. Muitas têm medo de ficar com a vagina alargada depois que passar um bebê. Tem também a questão da falsa praticidade, de poder marcar o parto. Digo falsa porque não é nada prático ficar com pontos na barriga de uma cirurgia considerada de porte, fora o risco de ter um bebê nascido antes do tempo, antes de ficar pronto. Há mulheres que querem acabar logo com o processo do nascimento, como se ele não pudesse ser demorado e maravilhoso, sentido, como se esta demora não tivesse também as suas delícias. É como sexo: você sua, se esforça, quanto mais demora, melhor. Não combina ser asséptico, rápido, cirúrgico. O parto também não. Mas acho que o que mais pega é o medo da dor. Nosso mundo tem medo da dor. Mesmo a inevitável, a necessária, a que ajuda a trazer um filho pra vida. A dor de parto não é como outras dores. Não é como uma dor de ouvido, por exemplo. Ela vem aos poucos, para que a mulher se recupere nos intervalos. É forte, mas é uma dor de vida, não de morte. Vai trazer uma coisa boa. Isso te ajuda a suportar. Se não, tem a possibilidade de analgesia. Prefiro dizer que não são dores de parto, mas contrações, movimentos.

ÉPOCA – O que você aprendeu em sua busca de conhecimento, quase se armando para que não roubassem de você um dos grandes momentos da sua vida?
No fim, aprendi que havia vários tipos de parto normal – natural, normal, induzido, humanizado… E percebi que eu não queria apenas um parto “vaginal”. Queria um parto com o mínimo de intervenções, o mais natural possível. Nos últimos anos (ou décadas) foram estabelecidas tantas intervenções como rotina que, na maioria dos partos normais urbanos, de classe média, você toma uma superanestesia e fica inepta pra ajudar seu filho a nascer. Então tem de tomar hormônio pra estimular as contrações reduzidas pela anestesia. Na hora H alguém empurra sua barriga com uma manobra horripilante e desnecessária para que o bebê saia. E, no fim, quase que obrigatoriamente, cortam a entrada da sua vagina para ajudar o bebê a sair, mesmo que não precise. Eu não queria nada disso. Queria um parto meu, comandado pelo poder de dar à luz que a natureza me deu, apenas assistido pelos profissionais de saúde.

ÉPOCA – Em sua incursão pelo mundo da militância do parto natural, você participou de grupos e ouviu histórias de todo tipo. Quais foram essas narrativas e como elas ajudaram a construir a sua?
Eu tinha guardado na memória o relato especial de uma amiga que teve a filha ainda adolescente no hospital, mas sem anestesia, sentindo as dores do parto. Era minha história inspiradora de nascimento. Descobri na internet um grupo para grávidas, o Gama (Grupo de Apoio à Maternidade Ativa), para ajudar as mulheres a ter experiências assim. Frequentei esse grupo semanalmente com meu marido. Lá ouvi outros relatos de partos naturais, ou seja, sem anestesia nem intervenções, muitos ocorridos em casa. Quase todo dia tinha uma história incrível de uma mulher que tinha dado à luz deitada em sua própria cama, usando os lençóis guardados no armário, comovendo os vizinhos com o choro de bebê novo que de repente interrompia os gemidos do parto como se estivessem todos num século remoto, muitas vezes escandalizando a família com sua escolha “precária”. Não me lembro de um relato exato porque eles se pareciam muito, mas de detalhes misturados de nascimentos em apartamentos apertados no caos de São Paulo. Um casal contou que teve o filho num cômodo sem janela, na parede apenas o quadro pintado por um amigo imitava a paisagem de fora. Que loucura alguém parir sem janela, pensei. Eu adorava esses detalhes curiosos e muito humanos. Teve o marido assustado que se refugiou na cozinha para fazer comida enquanto a mulher se contorcia pra dar à luz no quarto, como se nada de extraordinário estivesse acontecendo na casa enquanto ele cozinhava. Teve a história da mulher que berrou no meio de uma contração para o marido não entregar pra parteira as toalhas de banho brancas, e sim as estampadas, se não estragaria o enxoval dela. Teve o caso de uma que ficou muito brava com o companheiro porque ele ficava contando os intervalos das contrações e isso a deixava nervosa. Ela pedia que ele parasse e ele continuava contando. Teve a que achou que tinha defecado no parto, mas era só a placenta saindo depois do bebê. E teve uma que de fato defecou. Nunca tinha imaginado que coisas assim pudessem acontecer. Além dessas histórias do grupo, fui também buscar histórias mais próximas. Uma amiga contou que teve o bebê quase no saguão do hospital, antes de a médica chegar, porque o marido não acreditou que o trabalho de parto estivesse tão avançado. A filha nasceu enquanto ele estacionava. Essa história me fez pensar que eu deveria conhecer bem os estágios do parto, para o caso de uma emergência. Outra me contou como se sentiu traída ao final de um trabalho de parto normal e tranquilo, quando o anestesista a agulhou pelas costas sem que ela quisesse, apenas para justificar sua ida ao hospital numa antevéspera de ano novo. E de como ela se sentiu dolorida nos dias seguintes por causa da peridural e da traição. Me fez pensar em como era importante eu deixar claro meus desejos e manter em minhas mãos o comando da situação. E também a importância de deixar claro para o meu marido o que eu queria – e não queria. Ouvi também um relato triste da minha irmã, que sempre quis parto normal e acabou levada a uma cesárea que ela acreditava desnecessária. Ela não viu os filhos saírem, não sentiu nada. E quando fui resgatar essa história, senti como isso tinha deixado nela uma ferida aberta. Uma ferida que eu não queria aberta em mim. Fui escutando essas histórias para ver como era, saber o que eu queria, o que eu não queria, e para tentar aceitar o que talvez estivesse além do meu querer.

ÉPOCA – Quando seu filho nasceu, você disse que ficou muito tensa durante o processo porque a todo momento tinha medo de que os médicos pudessem dar uma anestesia, fazer algum procedimento ou mesmo uma cesariana contra a sua vontade. Como foi isso?
Ao longo da gravidez, fui decidindo o que eu queria e o que não queria pra mim e para o bebê. Coisas muito importantes, pelas quais eu e meu marido faríamos todo o possível, e outras que nos importaríamos menos se escapassem do planejado. Meu maior terror era passar por uma cesariana. Ainda mais se fosse desnecessária. Não sei em que pedaço de mim isso pegava, mas pegava. Nas últimas semanas, minha obstetra falou: “Querida, se rolar cesariana serão dez anos de terapia pra você, não é?”. Eu disse: “Exatamente. Você entendeu o tamanho da coisa”.

ÉPOCA – Por que tanto horror à cesariana? Embora exista um abuso de cesarianas no Brasil, boa parte delas desnecessária, há casos em que pode ser a melhor escolha e mesmo fundamental para salvar a vida da mãe e do bebê. Se fosse este o caso, não estaria tudo bem para você?
Acho que se fosse o último recurso, tudo bem. Mas eu gostaria de ter certeza de que era realmente necessário e não uma conveniência ou inabilidade do médico, coisa que ficou muito difícil identificar hoje em dia. Acho que eu também mitifiquei o parto normal. Eu nasci de cesárea. E estou aqui, viva, sem traumas. Não tenho problemas com isso. Mas era um desejo meu ter o filho naturalmente. Só aceitaria a cesárea se tivesse muita clareza da necessidade.

ÉPOCA – Então conta como foi seu processo nessa luta com os profissionais de saúde ao longo do trabalho de parto…
Meu trabalhou de parto ativo durou 13 horas. Isso é considerado normal, mas as pessoas se assustam. Muitos médicos se assustam, inclusive. Meu pavor, quando eu via o relógio andando depressa demais, era que eles se cansassem e dissessem: “Bom, vai ter de ser cesárea”. E me empurrassem uma desculpa qualquer goela abaixo, com o poder da autoridade deles. Eu cheguei ao hospital com contrações fortes e ritmadas, num bom intervalo. Mas a dilatação era frustrantemente pequena ainda. Meu filho estava com a cabeça defletida, ou seja, virada pra cima, mirando o céu, então não descia. E minha vagina tinha uma reborda, uma espécie de dobra que se forma muitas vezes e também dificulta a saída. Eu sabia que nenhuma das duas coisas era motivo para cesárea, mas podiam tentar usá-las para fazer uma. Eu tinha chamado uma doula, uma acompanhante de parto, que na hora me ajudou com exercícios, posições e apoio emocional. Mas, depois de oito horas, acabei pedindo uma analgesia porque não aguentei a dor, estava dobrada, apagando nos intervalos das contrações. Tive medo que isso animasse os médicos a fazer cesárea, afinal, eu já estava anestesiada, ainda que de leve. Chorei muito porque não imaginava que a dor fosse maior do que eu. E chorei de medo. Lá pelas tantas entrou uma obstetra na sala e começou a conversar com minha médica. Ela dizia que o parto que ela fazia na sala ao lado estava demorando muito então ia virar uma cesárea porque ela já estava cansada. Entrei em pânico e comentei com a doula que não queria que todos se cansassem daquele momento meu e quisessem ir embora inventando uma cesárea. Minha médica ouviu e disse: “Temos todo o tempo do mundo para esperar”. Era verdade. Ela começou a me pedir pra fazer certas posições, me virava na cama, com muita delicadeza, até que o bebê se acertou e começou a sair. Nessa hora, de novo entrei em pânico, fiquei selvagem porque começaram a montar uma mesa de instrumentos e eu temi de novo uma cesárea. Pra que tudo aquilo? A pediatra, acostumada com partos humanizados, naturais, me disse que era normal, uma prevenção em caso de ocorrer uma emergência. Mas a cada barulhinho de metais mexendo eu gritava, perguntando o que iam fazer. Felizmente, o que fizeram foi apenas esperar meu filho sair, naturalmente, sem cortes, inteiros nós dois.

ÉPOCA – Qual foi o sentimento quando seu filho nasceu?
Eu parecia um bicho. Estava meio agressiva, assustada e ao mesmo tempo me sentindo a dona da cena. Queimava tudo quando ele estava saindo. Parecia que as tripas iam sair por baixo, apesar da analgesia, que era leve justamente pra eu sentir. Daí ele saiu, roxinho, com o cordão enrolado no pescoço e na mão, sem nenhum problema. Veja que os cesaristas adoram dizer que isso é motivo pra cortar uma mulher. Alguém que estava perto da vagina esticou os braços me entregando aquele pacotinho. Me escapou um: “O que eu faço com isso?”. Mas imediatamente eu soube e puxei ele pra mim, pro meu peito. Veio a pediatra e ajeitou-o pra mamar. E ele mamou. Eu chorava, chorava. Chorava e sorria. Parecia que não existia nada além dali. Que o momento era aquele. Que a vida começava e terminava naquela sala. Que ali dentro estava tudo que me importava. Senti orgulho de mim, do meu filho. Me senti poderosa, cheia de muita coisa boa. Talvez algumas mulheres se assustem com a intensidade de dor e de medo no relato do parto do meu filho e achem que não vale a pena. Primeiro, eu acredito que as coisas importantes não são necessariamente leves e indolores. Nem que as coisas boas só são boas se forem leves, rápidas e indolores. Meu parto foi forte. Em alguns momentos foi tenso e doloroso. Em alguns momentos tive medo. E, mesmo assim, foi uma delícia. Mesmo assim, tive um prazer indescritível. Tudo junto, como a vida é. Não trocaria isso por nada. Poucas vezes me senti tão viva. Poucas vezes estive tão viva. E completa.

ÉPOCA – Como é ser mãe? Fico observando você e percebo que, embora existam as angústias, e elas são muitas nesse início da vida de um filho, você parece estar sempre numa espécie de estado de completude. Volta e meia olha para o seu filho e chora de alegria…
Eu estou em estado de graça desde o momento em que meu filho nasceu. Eu tinha um medo, que para algumas pessoas pode parecer idiota, de ter um filho feio e burro. Bem, ele é lindíssimo. Meu bebê nasceu lindíssimo, como eu jamais poderia imaginar que seria. Tem orelhas perfeitas, nariz lindo. Ele é todo bonito. Tudo nele é bom. Senti algo indescritível quando saí da maternidade com ele nos braços, apresentando a rua lá fora, o sol, os carros, o barulho, as pessoas, a vida. Me senti a pessoa mais importante do mundo. Chorei quase todos os dias do primeiro mês de vida dele. De alegria, de plenitude. Chorei de ver que era tudo verdade, que ele estava ali. E ainda choro. A maternidade está além da minha maior expectativa.

ÉPOCA – Me parece, pela minha própria experiência e pela de outras mulheres que escuto por aí, que o afeto e o amor pelo filho não é algo dado, mas construído. De repente, há uma pessoinha nova fora da gente, na casa da gente, exigindo coisas com o seu choro. Mesmo que a gente a carregue por nove meses, fora do nosso corpo é outra história. Me parece que amamos aos poucos, num afeto que vai se construindo e se fortalecendo ao longo dos dias, até se tornar a ligação mais forte e profunda da nossa vida. E não como um amor que vem do além e cai como um raio na hora em que o bebê nasce, como somos ensinadas a acreditar que é o certo. Como foi para você?
É interessante porque, embora a maternidade seja atávica, o afeto não é automático, imediato. Eu não senti assim, pelo menos. Fui me apaixonando pelo meu filho. É algo que é construído da rotina com o bebê, que é uma das coisas mais intensas que alguém pode viver. Um dia aparece um serzinho estranho de dentro de você para você cuidar. Invade seu mundo, sua vida, com um cheiro novo, barulhos novos, hábitos novos. Surge um novo prolongamento de você, algo que não existia antes e que precisa de você para existir. No começo é ternura, curiosidade, encantamento. Acho que a natureza faz bebês fofos para a gente se encantar e cuidar deles. Aos poucos vai virando amor, delícia, intimidade. Você ama “aquele” bebê. Eu comecei a ficar mais mãe aos poucos. E acho que vou ser cada vez mais mãe, conforme o tempo passar.

ÉPOCA – Um de seus conflitos é a aproximação do momento de voltar ao trabalho, depois da licença-maternidade. Por um lado você tem vontade de largar seu emprego e virar mãe em tempo integral. Por outro, tem sonhos de que está trabalhando em grandes projetos. Não é fácil ser mulher, não é? Como você está se virando?
Não gosto nem de imaginar a volta ao trabalho. Parece que ele vai precisar de mim e não vou estar. Dizem que quem mais sente a dor dessa primeira separação é a mãe. Eu não consigo imaginar meu filho desamparado. Uma neura de que não cuidarão tão bem dele, de que eu não estarei lá vendo cada sorriso ou respiro. Acho que ainda sinto que ele é um pedaço de mim que ficaria pra trás algumas horas, doendo. Tenho um trabalho flexível, que me permitiria estar com ele em vários intervalos do dia. Ao mesmo tempo, já fiz as contas pra ver quanto tempo eu poderia ficar em casa só acompanhando ele crescer, mudar. Provavelmente, voltarei a trabalhar. Acho que ficaria tensa de não ter segurança financeira e talvez me cansasse, com o tempo, de ficar apenas em casa. Afinal, é uma rotina desgastante. Meu plano ideal seria que me dessem uma licença de um ano ou que meu emprego me liberasse e estivesse lá quando eu voltasse. Pra mim, seria o tempo ideal pra eu me dedicar ao meu filho, curtir cada minutinho, cheirar ele o dia inteiro. É importante trabalhar, mas é melhor ser mãe, ao menos nesse momento. Acho que o modo como as coisas são estruturadas no nosso mundo, no nosso universo brasileiro, não facilita muito a vivência dessas coisas. Poderíamos ter a opção de voltar logo ou não ao trabalho. Eu queria muito ficar mais. Mas dá medo chutar tudo e viver de economias. Eu não gosto de pensar nisso. Me incomoda, estraga meu dia. Meu filho fez parar meu tempo. Mas as coisas fora de nós não pararam. Não sei como resolver.

ÉPOCA – Quais são as alegrias e os conflitos desse momento muito particular que você está vivendo?
As alegrias são todas. O sorriso dele quando acorda, as dobrinhas, o cocô sem cheiro. Os gemidos, o choro, o beicinho, a respiração, o espirro. Mas a maior felicidade é ele mamar no meu peito. Ele se alimentar de mim. Isso é uma loucura. E eu me alimento de olhar ele mamando, toda torta, querendo chorar de alegria. A mãozinha no meu peito. Algo indescritível. Não tenho muito tempo pra mim, o que me angustia, mas só um pouquinho. Me sinto bonita, forte, poderosa, e tenho conseguido administrar as dificuldades porque tenho uma boa rede de apoio – marido superparticipativo, empregada, família, grana. Talvez eu não seja a melhor referência, porque a maternidade nem sempre é fácil. E pra mim está sendo uma delícia. Meu maior conflito é querer às vezes ficar só eu, meu filho e o pai dele juntos, feito bichos, num ninho, nos lambendo. Mas o planeta não é vazio como eu queria que fosse agora. O que também tem um lado bom: muita gente pra eu mostrar a coisa mais linda que eu já vi.

ÉPOCA – Hoje, olhando para trás, o que o parto natural deu a você?
O meu não foi 100% natural porque eu tomei analgesia. Meu parto normal me deu a maior lembrança da minha vida. Uma longa cena que me mudou completamente. Me sinto uma mulher completa agora. Me sinto uma mulher feita. Acho que, por ter sido um parto normal, me sinto mais do que se fosse de outra forma.

ÉPOCA – Você tem medo do futuro? De seu filho estar aqui, de ter de educá-lo com um mundo inóspito lá fora…
Tenho todos os medos, os mais absurdos. De ele sofrer, de não ser feliz. Medos que eu sempre tive da vida, como todo mundo. Mas meus olhos estão tão cheios da visão linda do meu filho e meu coração transborda de uma alegria tão grande que não cabe mais nada. Essas visões ruins de futuro se apagam rapidamente. Uma ternura louca espanta os medos, tão logo eles chegam. E me enche de esperança a idéia de criar um ser humano lindo e feliz. De apresentá-lo ao mundo e o mundo a ele.

ÉPOCA – O que é ser mãe, afinal?
Para mim, ser mãe é me sentir completamente mulher, fêmea, em todas as possibilidades. Já li que não é a maternidade que te faz uma mulher. Mas há uma dimensão que a gente só conhece sendo mãe. É mais para sentir do que explicar. Me sinto maior do que eu era antes. Bem maior.

P.S. – Se você quiser, conte aqui a sua experiência de parto. Nem certa nem errada, nem melhor nem pior – apenas a sua.

(Publicado na Revista Época em 24/01/2011)

Onde está Wally Sarney?

É prudente seguir este velho personagem, mas atualíssimo, na intrincada paisagem de Brasília

A imagem simbólica da transmissão da faixa presidencial de Lula para Dilma Rousseff não foi nem um nem outro – mas sim José Sarney com os dois. Quem acompanhou, viu. Estava tudo ali, como em geral está nestes grandes momentos em que os personagens se movem pelo palco e é preciso prestar uma atenção tão grande em quem se esgueira pelos cantos como em quem está no centro. O primeiro presidente operário transmitindo o cargo à primeira mulher presidenta. O discurso correto, mas pouco empolgante de Dilma. A cor da sua roupa, pérola em vez de vermelho. A filha como acompanhante da presidenta divorciada. O espalhafato com a mulher 42 anos mais jovem de Michel Temer. Hugo Chávez logo atrás de Hillary Clinton nos cumprimentos à nova governante. José Dirceu dizendo que não falaria porque a mulher não deixava. Erenice Guerra na posse (como assim?) levando seu abraço amigo à ex-chefe. A presidenta torturada pela ditadura militar passando as tropas em revista. Tudo bem significativo – por razões diversas. Mas o mais revelador era José Sarney. Para compreender a política brasileira e o Brasil é preciso saber onde está Wally. E o nosso Wally, com bigode e intenções muito diferentes, se chama José Sarney.

E onde estava Wally Sarney? Depois de passar o ano de 2009 levando chumbo como alvo de denúncias cabeludas, tanto que alguns chegaram a apostar que ele e sua dinastia tinham chegado ao fim, José Sarney estava ali, em 1º de janeiro de 2011, na presidência do Senado, dando posse a Dilma Rousseff como determina a Constituição. De quem era a voz de taquara rachada que se ouvia pelas TVs do país cantando o hino nacional? Adivinha. Quem tivemos de ouvir depois de Dilma? Sim. Tudo estritamente segundo a Constituição. Já que José Sarney teve o apoio decisivo de Lula para se manter no cargo quando as denúncias de corrupção tornavam indecente para o país que ficasse.

Onde estava Sarney depois? Pegando carona no Aerolula, o avião oficial. Carona para São Paulo e para outras geografias menos palpáveis e mais nebulosas. Para estupor das centenas de pessoas que se aglomeraram diante do apartamento dos Lula da Silva em São Bernardo do Campo para homenagear o presidente mais popular desde Getúlio Vargas, lá estava Sarney entre Lula e o prefeito Luiz Marinho. Em casa, como se viu. Chegou ali, segundo ele mesmo, “pelos caminhos da amizade e pelo reconhecimento”. E discursou: “Nele (Lula) descobri o homem de grande densidade humana, generoso, de patamar internacional. Nunca se viu antes no Brasil um presidente que falasse bem do outro. Mas eu vim aqui falar bem e dizer que ele sai consagrado por tudo o que fez”.

Não é pouca coisa que, no fim de tudo, depois de oito anos, tenha sido José Sarney a levar Luiz Inácio Lula da Silva de volta para casa ao som do Tema da Vitória – a música imortalizada nas homenagens a Ayrton Senna. “Quero agradecer ao companheiro Sarney que, quatro anos atrás, me disse que quando terminasse meu mandato ia vir até a porta do meu apartamento me entregar e veio”, disse Lula.

Na madrugada deste mesmo dia, a filha de José Sarney, Roseana (PMDB), tomou posse, pela quarta vez, como governadora do Maranhão. Com o apoio de Lula, que para isso atropelou as pretensões do PT local. E assim, como acontece há tempo demais na história deste país, o Maranhão segue sob o domínio do clã Sarney, que há décadas consegue o feito de manter o estado miserável – sempre disputando com êxito a liderança dos piores índices socioeconômicos do Brasil. No Amapá, estado pelo qual Sarney é senador, seus desmandos de coronel tem alimentado a crônica amazônica contada pelos corajosos blogueiros da região.

Até aí estava bem fácil localizar Wally Sarney, bem disposto sob os holofotes, saracoteando no centro do palco. Já na primeira semana do governo de Dilma Rousseff era importante descobrir onde ele não estava. Como, por exemplo, na posse do ministro das Relações Institucionais, Luiz Sérgio, responsável por negociar a divisão de espaços na máquina pública e a liberação de emendas parlamentares. A posse do ministro foi boicotada pelo PMDB como forma de mostrar seu descontentamento com a partilha dos cargos. E o que fez o ministro no dia seguinte ao boicote de sua posse? Defendeu a reeleição de Sarney à presidência do Senado: “Ele é um dos quadros mais experientes da política brasileira, foi parceiro do presidente Lula e certamente terá uma contribuição muito importante para o governo Dilma”.

E onde estava então o homem que não estava lá? Articulando, claro. De quem foi a ideia de defender um valor maior para o salário mínimo como forma de pressionar Dilma Rousseff na barganha por cargos? Segundo a jornalista Renata Lo Prete, da Folha de S.Paulo, foi José Sarney quem sugeriu ao PMDB abraçar a bandeira do aumento do mínimo como forma de retirar do foco a disputa por cargos no governo de Dilma Rousseff, real interesse do partido. “É só falar do salário que vai virar manchete”, teria instruído o presidente do Senado em reunião com correligionários no apartamento do vice-presidente Michel Temer. O PMDB salta na garganta de Dilma e ainda faz bonito diante da população ao defender causa tão nobre.

Onde estava Wally Sarney nas últimas décadas? É uma longa ficha corrida de serviços prestados à nação. Quase sempre afinadíssimo com o poder. José Sarney apoiou a ditadura militar e foi beneficiado por ela. Abandonou o PDS (ex-Arena) que presidia por discordar da escolha de Paulo Maluf para disputar a presidência nas eleições indiretas de 1985. Ao perceber a fragmentação do PDS, dividido por disputas internas, fez uma manobra habilíssima e acabou como vice de Tancredo Neves na vitoriosa chapa de oposição. Como Tancredo adoeceu antes da posse e mais tarde morreria, Sarney virou o primeiro presidente da redemocratização. Durante os últimos 50 anos da vida do país, de um jeito ou de outro, Sarney sempre esteve no poder ou muito perto dele. E agora, aos 80 anos de idade, lá está ele, a sombra entre o operário que deixa o governo e a mulher que o assume.

A era Lula, autoproclamada como fundadora de um novo tempo, na qual “o povo brasileiro fez a travessia para uma outra margem da história”, como afirmou Dilma Rousseff em seu discurso de posse, termina assombrada pelo que há de mais arcaico na política brasileira, encarnado na figura do oligarca José Sarney. E é o PMDB de José Sarney que consome boa parte da primeira semana do governo de Dilma Rousseff em sua disputa com o PT por cargos e pelos orçamentos mais polpudos. Se o lulismo é algo novo na história do país, há algo de muito velho – e algo estrutural – que continua bem aqui, que nunca deixou de estar bem aqui. Apenas que forte e desenvolto como há tempos não se via. E que tem na figura de José Sarney sua imagem mais eloquente.

Entre os ensaios publicados sobre a história recente do país, destacam-se os do cientista político André Singer sobre o lulismo e o do filósofo Marcos Nobre na revista Piauí de dezembro. Neste último, Nobre fala sobre o fenômeno do pemedebismo – um jeito de ser e estar na política que transcende o próprio partido. “O fim da polarização. Nem petistas, nem tucanos: o pemedebismo no poder”.

Vale muito a pena ler o ensaio para compreender as últimas décadas da vida política brasileira e também as cenas a que estamos assistindo no atual momento. Ao traçar a genealogia e a linha do tempo do pemedebismo, o filósofo afirma: “De maneiras diferentes, tanto o Plano Real como o ‘lulismo’ foram tentativas de controlar o pemedebismo de fundo da política brasileira. Por isso, por mais importantes que pareçam e de fato sejam, são momentos de inflexão em uma linha de força muito mais duradoura e consistente”.

E, em outro momento: “O marco do novo surto pemedebista pode ser representado pela resistência de José Sarney na presidência do Senado apesar de uma saraivada de denúncias, em 2009. O apoio decisivo de Lula à permanência de Sarney na presidência do Senado selou a aliança com o PMDB para a eleição presidencial de 2010 e, ao mesmo tempo, marcou a volta do pemedebismo à disputa pela hegemonia da gramática política brasileira. Ao contrário de casos anteriores, que resultaram em renúncia ou cassação de mandatos, a permanência de Sarney mostrou que o centro político ganhou tal amplitude e poderio que pode em grande medida ignorar protestos sistemáticos e generalizados da sociedade”.

Nos acontecimentos a que se refere Marcos Nobre, Lula produziu uma de suas frases mais simbólicas das muitas de seu período no poder. Simbólica pelo que há de chocante no que disse e por ser ele a dizê-lo. E simbólica pelo que revela do momento nacional. Recordem-se. O presidente de origem sertaneja e nordestina, o ex-torneiro mecânico, o governante do povo, afirmou o seguinte: “Sarney tem história no Brasil suficiente para que não seja tratado como se fosse uma pessoa comum”.

Aí está.

Enquanto sonhamos com uma reforma política, para compreender o país precisamos continuar procurando nas intrincadas cenas de Brasília, na complexa paisagem do Brasil, onde está Wally Sarney. E também – convém jamais esquecer – onde ele não está.

(Publicado na Revista Época em 10/01/2011)

Tapas e beijos

Podemos chamar de amor uma relação violenta?

O novo filme de João Jardim, “Amor?” (Prêmio do Júri Popular no Festival de Brasília), narra histórias reais de violência nas relações de casal. Depois de ouvir 60 depoimentos de homens e mulheres anônimos que cometeram ou foram vítimas de agressões, o diretor escolheu oito para serem interpretadas por atores famosos. Quando assisti à “Amor?”, numa sessão especial promovida pelo Instituto Avon e Copacabana Filmes, em São Paulo, deixei a sala pensando ter visto um filme bom com alguns momentos excepcionais, como as interpretações de Lilia Cabral e Julia Lemmertz. Depois, o filme colou em mim. Passei dias me interrogando a partir de questões suscitadas por ele. A força de “Amor?” está em fugir da simplificação tão mais fácil para todos nós: a da pobre mulher submissa espancada por um homem mau.

Os depoimentos nos envolvem e falam com partes mais ou menos invisíveis de nós. Os papéis de vítima e algoz têm contornos menos definidos do que gostaríamos. É nos detalhes que vamos pressentindo a aproximação da violência. Acho difícil que em algum momento, diferente para cada um, quem assiste não se identifique com alguma frase, algum ato, deste laço entre amor e violência que prende duas pessoas adultas.

É aí que o filme acerta mais. Ao fugir dos casos que viram manchete de jornal, aqueles com os quais podemos nos horrorizar e respirar aliviados porque jamais seríamos os protagonistas, ele fala de algo mais insidioso, de uma violência que também é nossa. Com isso, não permite que, ao assisti-lo, permaneçamos descolados, achando que aquilo é de um outro e acontece a um outro que nada tem a ver com a gente ainda bem.

Como disse a atriz Silvia Lourenço, durante o debate: “O filme mexe com o nosso lado sombrio. Me fez pensar sobre o quanto eu me submeto nos meus relacionamentos. Todo mundo tem o lado A e o lado B. Quem assiste ao filme se identifica com ele. Por isso é poderoso e transformador”. Silvia vive uma mulher numa relação homossexual em que o amor vai se tornando violento. Como o depoimento é longo, é dividido com outra atriz. Mas ambas vivem a mesma personagem.

Quando um homem agride uma mulher está cometendo um crime. A Lei Maria da Penha, que criou mecanismos mais eficientes e penas mais rigorosas para reprimir a violência doméstica contra a mulher, é uma grande conquista. Disso todos sabemos. O que é pouco discutido, me parece, é a contribuição da vítima para a violência. Aqui não me refiro a psicopatas que perseguem ou colocam suas vítimas em cárcere privado nem a casos extremos como o da própria Maria da Penha. Me refiro a histórias muito mais frequentes do que costumamos admitir e que permeiam a vida de amigos próximos, quando não a nossa.

Em um casal não existe agressor sem que exista uma vítima. Sabemos disso, mas nem sempre lembramos. Em algum momento agressor e vítima tiveram um encontro – e os encontros só acontecem quando um tem o que o outro busca. Entender o que permitiu este encontro – e, principalmente, o que faz com que ambos permaneçam numa relação destrutiva – é essencial para poder quebrar o ciclo de violência ou criar uma outra identidade na relação que não seja a de vítima nem de agressor.

Ao me referir à contribuição da vítima não estou dizendo que a mulher é culpada, “pediu”, como dizem tantos cretinos por aí. Estou falando sobre algo mais importante que a culpa. O que de meu engatou no que é do outro e permitiu que uma relação amorosa se tornasse também uma relação violenta. E o que me fez permanecer apesar da violência já desvelada.

É ruim para a mulher se ela só for vista como vítima – e só se enxergar como vítima. É verdade, ela foi vítima. Mas ser vítima não é tudo o que ela é. Me parece fundamental que cada mulher metida numa relação violenta consiga buscar dentro de si – e tenha ajuda para buscar dentro de si – qual é ou foi a sua parte nessa arapuca. Acho difícil conseguir romper com a violência se não encontrarmos o que há de ativo mesmo na nossa passividade. Ao se apropriar do que é nosso é possível nos tornarmos mais inteiras – mulheres melhores para nós mesmas. É possível também criarmos enredos mais interessantes para a nossa vida afetiva.

No filme, em pelo menos dois depoimentos de homens, aparece o que poderia ser chamado de “violência da vítima”. Em um deles, um dentista que hoje espanca as mulheres e namoradas, conta que sua mãe era espancada pelo seu pai. Mas que antes de o pai levantar a mão pela primeira vez, a mãe o humilhava diariamente. Este filho – entre o pai e a mãe possivelmente até hoje – justifica a violência física do pai com uma violência anterior da mãe, psíquica e verbal. Em outro depoimento, o homem que tinha esfaqueado uma namorada, fala de sua humilhação. Diz que gostaria de criar uma lei com o nome dele para proteger os homens da violência da mulher.

Nos casos denunciados é comum este tipo de justificativa. Não serve como atenuante. Nada justifica um espancamento ou qualquer outra agressão física. Quem pratica a violência tem de ser impedido, denunciado, julgado e punido. Mas acredito que seja importante escutar o que dizem os agressores – e escutar para além do pensamento que descarta narrativas como esta como mera canalhice.

Existe uma violência que se não se expressa fisicamente. E ela também é destruidora. Algumas mulheres costumam manipular com maestria esta arma subjetiva que não deixa hematomas visíveis. Raramente um homem espanca uma mulher no primeiro dia. Em geral há um longo balé protagonizado por ambos até a primeira vez. E aí as seguintes ficam mais fáceis e, em geral, mais frequentes e violentas.

O primeiro depoimento do filme é interpretado por Lilia Cabral – extraordinária. Ela conta como o casamento se transformou e recomeçou a partir de um rompimento provocado por uma agressão física. Ao contar a história, ela enxerga a violência que é do marido, mas também assume a violência que é sua. E talvez por isso tenha se tornado possível, depois de algum tempo, reinventar a relação. A anterior tinha acabado no momento em que ela foi jogada contra a parede pelo marido. A nova, depois de muita reflexão e namoro, só se tornou viável porque ambos criaram um casamento onde era possível mudar identidades cristalizadas que sufocavam a ambos. Mas, para que isso pudesse acontecer, foi preciso primeiro romper, separar.

Ao abrir com um depoimento fora do padrão da vítima tradicional e do desfecho mais ainda, o filme já inquieta e mostra que não veio para repetir clichês ou apontar culpados. São vários os méritos neste sentido. Um deles é o de retratar histórias de classe média, contrariando a falsa crença de que a violência doméstica é coisa de pobre. Pode ser que ela seja mais visível nas periferias e favelas, até pelo tipo de moradia e a proximidade dos vizinhos. Mas a violência doméstica está em toda parte. E também nos palácios, de onde às vezes é mais difícil escapar e onde os gritos são abafados pelos muros e pelas convenções. Outro mérito é contar a trajetória de agressões em uma relação entre duas mulheres, embaralhando a crença de que a violência pertence aos homens. Poucas coisas são tão perniciosas para a vida das mulheres, aliás, do que a crença de que não somos violentas. Esta é uma das grandes mentiras que, incrivelmente, se sustentam até hoje.

Amor?” é uma boa pergunta em forma de filme. A primeira manifestação da plateia, assim que as luzes se acenderam, foi de uma mulher, uma psicanalista, afirmando que aquelas histórias não tratavam de amor, mas da “patologia da paixão”. Achei muito significativo. É muito reveladora a necessidade de definir se é amor ou não é. E deixar claro que não é. Desqualificando assim o discurso de homens e mulheres envolvidos em relações violentas quando dizem que, mesmo ao bater ou apanhar, ainda amam. Ou que permanecem na relação “por amor”.

Minha opinião é que amor é como arte. É muito difícil definir o que é. E o senso comum ou mesmo o dos “especialistas” vai mudando ao longo do tempo. Dizer que uma relação não é amorosa porque contém violência ou que quem ama não bate é querer tornar o amor algo da esfera do sagrado, limpinho e imune às contradições humanas. Este discurso, pelo avesso, legitima a violência. Se fosse amor, então, a violência estaria justificada, porque o amor é maior do que tudo ou vence tudo, por ele valeria qualquer sacrifício, até apanhar. É colocar o amor, de novo, no âmbito do sagrado, que nos eleva mesmo quando é ruim. E por isso teríamos de suportar qualquer coisa, inclusive agressões.

Não. Sendo amor ou não, pouco importa. Caia fora o mais rápido possível. A violência aniquila a vida. Quando não acaba, literalmente, com ela.

(Publicado na Revista Época em 13/12/2010)

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