Quanto valem 20 centavos?

O que une os manifestantes de São Paulo é o movimento: o ato literal e simbólico de romper o imobilismo da cidade parada e andar

Vinte centavos não são vinte centavos. Vinte centavos tornaram-se ao mesmo tempo estopim e símbolo de um movimento tão grávido de possibilidades que foi reprimido a balas de borracha, a bombas de gás lacrimogêneo e também a golpes de caneta. O que começou com o aumento da passagem do ônibus, se alargou, se metamorfoseou e virou um grito coletivo que tomou a Avenida Paulista e ecoou nas ruas do Brasil. O que há de tão ameaçador nestes 20 centavos, a ponto de fazer com que governos da democracia protagonizem cenas da ditadura, é talvez algo que se acreditava morto por aqui: utopia. A notícia perigosa anunciada pelas ruas, a novidade que o Estado tentou esmagar com os cascos dos cavalos da polícia paulista, é que, enfim, estamos vivos.

A multidão que tomou as ruas de São Paulo, ecoando o que já vinha acontecendo em outras cidades do Brasil, está longe de ser homogênea. Há grupos organizados – e alguns deles acreditam que a depredação é um ato legítimo de defesa, diante da violência sistemática praticada pelo Estado e pelo capital –, há partidos políticos de esquerda e há uma massa de pessoas, a maioria jovens, que aderiram movidas por suas próprias aspirações. O que une “os vários movimentos dentro de um” são os 20 centavos. Mas os 20 centavos deixaram de ser 20 centavos para se tornar expressão de um descontentamento difuso, mas nem por isso menos profundo. Uma decepção com a vida que se vive e um anseio por sentido.

As manifestações de rua são talvez a melhor notícia da democracia, a prova maior de sua vitalidade, mas elas expressam o sentimento de que os políticos que aí estão, os partidos que aí estão, a concepção de mundo, de país e de política que eles representam, já não representam um número crescente de pessoas. Especialmente os jovens pós-internet, mas não só. Contra aquilo que não se entende, mas que ameaça o poder estabelecido, joga-se a polícia. O que se viu na quinta-feira (13/6) foram cenas que lembravam a ditadura militar. Mas as semelhanças acabam aí. A demonstração de força era a expressão de uma fragilidade com a marca deste tempo histórico, do hoje.

A prova mais eloquente, talvez, se revela nas frases postadas pelo governador Geraldo Alckmin (PSDB) no Twitter. Para qualquer pessoa que seguisse o governador e também pessoas que estavam na manifestação, a narrativa simultânea do momento era extremamente reveladora. Reproduzo aqui a sequência de frases de 140 caracteres de Alckmin e frases de diferentes manifestantes ou jornalistas que cobriam a manifestação, postadas ao mesmo tempo que as do governador. Todos estão identificadas com nome e sobrenome no Twitter, mas, depois do que vi na quinta-feira, por precaução, eu prefiro chamá-los aqui apenas de @manifestantes:

“@GeraldoAlckmin O direito à livre manifestação é um princípio basilar da democracia. Assim como o direito de ir e vir e a preservação do patrimônio público/@manifestante: Praça enchendo em paz… bonito/ @GeraldoAlckmin Depredação, violência e obstrução de vias públicas não são aceitáveis. O Governo de São Paulo não vai tolerar vandalismo/@manifestante: Repressão brutal, pessoas desesperadas, moradores com crianças correndo. Se o Haddad compactuar com isso é o fim definitivo do PT!! /@GeraldoAlckmin Participei hoje, em Santos, da comemoração aos 250 anos do nascimento de José Bonifácio Andrada e Silva, o patriarca da independência/@manifestante: Ônibus pegando fogo na Augusta. Milhares correndo, descendo a rua pedindo paz. PM segue com bombas. Motoristas encurralados por gás/@GeraldoAlckmin Ainda em Santos inaugurei nova delegacia de polícia do Porto de Santos, que ano passado recebeu 1.1 milhão de turistas /@manifestante: Tentei sair. Eles atiraram na minha frente. Virei, atiraram atrás. Fiquei cega, entrei num motel. Consegui me recompor/@GeraldoAlckmin No Guarujá inaugurei o novo Hospital Emílio Ribas e anunciei a implantação do Restaurante Bom Prato/@manifestante: Pra dispersar, faz sentido jogar uma bomba no começo, uma no fim? Fiquei presa entre duas bombas de gás. Muita gente machucada/@GeraldoAlckmin Para Cubatão liberamos R$ 21,5 milhões para construir 800 apartamentos e mais 1.448 apartamentos para Santos que receberá mais uma Etec/@manifestante: Eu nunca vi nada parecido. Muita gente ‘refugiada’ no hotel, sangrando/@GeraldoAlckmin Estive também em São Vicente p/ autorizar a recuperação da belíssima Ponte Pênsil, a construção de 1.120 moradias e a implantação da 2ª ETEC/ @manifestante: Augusta em chamas”.

O governador despediu-se no Twitter, na noite que já está assinalada na história de São Paulo, a maior cidade do país, como uma das mais violentas desde a volta da democracia, com a seguinte frase: “@GeraldoAlckmin Parabéns a toda a população de Guaratinguetá pelos 383 anos da cidade. Boa noite a todos!”.

A frase fala por si. A simultaneidade de realidades também. Se alguém quiser documentar essa noite histórica num livro/e-book, a melhor expressão me parece ser a reprodução das narrativas simultâneas do governador e de alguns narradores que estavam na manifestação. O mesmo vale para quem estiver sem tema para uma tese de doutorado. É um retrato do momento, que abre uma rica paleta de possibilidades de análise e de interpretação.

O prefeito de São Paulo, Fernando Haddad (PT), não se manifestou diretamente nas redes sociais na noite de quinta-feira. Mas sua ausência, em vários sentidos, esteve bem presente. Tão logo ficou claro que a violência policial era condenada até mesmo por aqueles que antes a haviam pedido em letras garrafais, o prefeito passou a se esforçar para se descolar do governador. Assim como o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, que, se hoje critica a ação da polícia paulista, antes de os ventos mudarem tinha se apressado a oferecer apoio “no que for necessário” ao governo de São Paulo. Desta vez, PSDB e PT estiveram unidos pela incompreensão do momento histórico que vivem, atarantados diante da força das ruas e de uma linguagem que não dominam, nem sequer entendem.

Quando Alckmin só consegue enxergar “vândalos” e “baderneiros”, é o que não enxerga que aparece. Quando Haddad tenta se amparar no discurso de que o aumento do preço do transporte público foi abaixo da inflação, é a sua dificuldade de compreender o discurso novo das ruas que se torna explícita. Não é mesmo fácil ser político neste momento histórico em que as ruas nas quais os movimentos se iniciam não têm mais chão. Desorientados diante da novidade, alguns quadros e militantes do PT têm repetido que é preciso resgatar bandeiras históricas do partido que se forjou nas ruas, mas agora se descobre apartado delas. Se isso já se torna cada vez mais difícil, dada as posições retrógradas do governo de Dilma Rousseff, é preciso perceber que essas bandeiras perdidas são do século XX. Ainda que as reivindicações estruturais, de fundo, permaneçam, algumas delas com suas raízes no Brasil Colônia, elas foram acrescidas de novos desafios e nuances e de uma forma inteiramente diferente de se relacionar com o mundo. O que está em jogo hoje são bandeiras do século XXI, em que até o conceito de bandeira já não é mais o mesmo.

A avassaladora velocidade das mudanças nos deixa a todos perplexos. E também a imprensa, que vive um momento delicadíssimo. A cobertura ao vivo das TVs era acompanhada por quem estava no Twitter, mas já com uma leitura crítica. E com a comparação imediata do que era dito pelos apresentadores com a narrativa polifônica, em primeira pessoa, feita pelos manifestantes que estavam no centro dos acontecimentos. Em seguida, o relato de quem testemunhava o protesto nas ruas era comentado e replicado pelos manifestantes que não estavam nas ruas, mas também se manifestavam. E não só em São Paulo, mas no Brasil e também fora do país.

Quem tanto ironiza os “ativistas de sofá” precisa começar a entender que as fronteiras entre as ruas já não existem – ou pelo menos exigem outro tipo de interpretação. Mesmo jornalistas que estavam cobrindo o protesto para seus veículos, fizeram seu relato em tempo real no Twitter e no Facebook – e alguns escreveram artigos independentes depois. Para compreender melhor esse aspecto da manifestação de quinta-feira, sugiro a leitura da ótima análise de Fabio Malini, professor da Universidade Federal do Espírito Santo e coordenador do Laboratório de Estudos em Internet e Cultura (Labic) – aqui.

Os 20 centavos se alargam, sua teia de significados ganha dimensões cada vez maiores, superando qualquer fronteira física ou virtual. A violência da polícia paulista motivou a reação de outras camadas da população e de outras faixas etárias, levando novas adesões ao movimento. O que se vê nas redes agora é a soma daqueles que dizem ser preciso lutar pela democracia e pela liberdade de protestar. Esse sentimento é demonstrado nas quatro frases do Twitter mais republicadas, segundo a análise do professor Fabio Malini: “@LeoRossatto A tarifa virou a menor das questões agora. Os próximos protestos precisam ser, antes de tudo, pela liberdade de protestar/ @choracuica Não é mais sobre a tarifa. F…-se a tarifa. Isso ficou muito maior que a questão da tarifa/@gaiapassarelli Há algo grande acontecendo e é menos sobre aumento de tarifa e mais sobre tomar posição. Todo mundo deveria prestar atenção/ @tavasconcellos Não é mais uma discussão sobre tarifa. Transporte. Baderna. Sobre nada disso. É sobre o direito de se manifestar por qualquer causa”.

Tenho recebido e-mails de amigos e também de desconhecidos. Edson Natale, músico e produtor cultural, mandou o seguinte texto para o seu mailing, do qual também faço parte: “Vou pra rua na segunda (17/6). E vou porque acho que devo cuidar da rua e porque o Brasil não é só a rua por onde ando. Vou pra rua por minhas crenças e pelas crenças dos filhos: dos meus filhos e dos filhos dos outros. Não é muita coisa ir pra rua, mas não quero perder o direito de ir, quando quiser. Não tenho partido, nem religião, mas acredito sobretudo na vida, nas pessoas e no futuro, por exemplo. Tenho 51 anos e poderei (tentar) ajudar a evitar a violência ou a quebradeira, seja lá de quem for. Estarei lá para mostrar que não tenho gostado dos conchavos, das negociatas, das simulações e das dissimulações que têm acontecido tão intensamente nos bairros, cidades e estados; nas florestas, litorais e sertão, independentemente dos partidos responsáveis por elas. Tenho 51 anos e digo – com maturidade – que é preciso ir para a rua e levar as nossas crenças para passear um pouco e encontrar-se com outras crenças, diferenças e verdades. Acho que é assim que se faz um País e eu tinha me esquecido disso. Por isso agradeço aos que ocuparam as ruas antes de mim e por mim. E antes que alguém diga, ressalto que não vou para a rua defender partidos políticos, violência, quebradeira ou ódio… nem para impor a ‘minha’ verdade. E dessa forma encerro aqui o meu convite: vamos?”.

É possível que seja de qualificação do desejo que esse movimento fale. Talvez seja esta a única coesão entre tantos anseios diferentes, organizados ou não. O sentimento de que essa vida é pouca, de que essa política pautada mais pela reprodução das relações de poder do que por ideias de um Brasil melhor já não motiva ninguém. Em São Paulo, mais do qualquer uma das outras capitais que também se levantaram e se levantam, a questão do transporte explicita todo esse desencanto. É muito simbólico que Alckmin e sua polícia tenham frisado tanto que defendiam “o direito de ir e vir” dos cidadãos, como se cidadãos também não fossem aqueles que se manifestavam. Mas o mais irônico dessa justificativa para a repressão é que “ir e vir” é o que não se consegue fazer em São Paulo, imobilizados em ônibus e carros no trânsito parado, uma oposição já cristalizada na linguagem. Talvez o que una os manifestantes tão diferentes de São Paulo seja o movimento – o ato mesmo de literalmente romper o imobilismo e se mover. A maior transgressão é andar – e por isso era também crucial andar na imensamente simbólica Avenida Paulista. Pessoas, não carros, não ônibus 20 centavos mais caros. Não mais como zumbis sustentando uma vida insustentável em passos claudicantes e limitados, mas como pessoas no movimento desejante em busca de uma vida que faça mais sentido.

Vinte centavos talvez sejam o tanto de morte que uma vida humana já não pode suportar. Em São Paulo, mas também em Porto Alegre, no Rio, em Brasília, em várias cidades e capitais. Assim como em outras partes do mundo – antes, agora, possivelmente depois –, em cada uma delas com contextos, peculiaridades e rostos próprios, mas com algo em comum que é possível reconhecer. Algo que revela de um mundo que apodrece, de um modo de vida que já não dá conta da vida.

Talvez quem melhor tenha sintetizado os protestos que hoje tomam conta do Brasil tenha sido um velho, o escritor uruguaio Eduardo Galeano, em outro canto do mundo, quase dois anos atrás. Ao falar aos jovens que tomaram as ruas de cidades da Espanha como Barcelona e Madri, ele disse uma frase que se disseminou pela internet, traduzida para várias línguas: “Este mundo de merda está grávido de outro”.

Tomara que esteja. E que tenhamos a grandeza de sonhar com um mundo em que exista espaço para a vida.

(Publicado na Revista Época em 17/06/2013)

Perdão, Aaron Swartz

A morte de um gênio da internet, aos 26 anos, é um marco trágico do nosso tempo. É hora de pensar sobre nossas ações – ou omissões

– Eu sinto fortemente que não é suficiente simplesmente viver no mundo como ele é e fazer o que os adultos disseram que você deve fazer, ou o que a sociedade diz que você deve fazer. Eu acredito que você deve sempre estar se questionando. Eu levo muito a sério essa atitude científica de que tudo o que você aprende é provisório, tudo é aberto ao questionamento e à refutação. O mesmo se aplica à sociedade. Eu cresci e através de um lento processo percebi que o discurso de que nada pode ser mudado e que as coisas são naturalmente como são é falso. Elas não são naturais. As coisas podem ser mudadas. E mais importante: há coisas que são erradas e devem ser mudadas. Depois que percebi isso, não havia como voltar atrás. Eu não poderia me enganar e dizer: “Ok, agora vou trabalhar para uma empresa”. Depois que percebi que havia problemas fundamentais que eu poderia enfrentar, eu não podia mais esquecer disso.

Aaron Swartz tinha 22 anos quando explicou por que fazia o que fazia, era quem era. Aos 26, ele está morto. Foi encontrado enforcado em seu apartamento de Nova York na sexta-feira, 11 de janeiro. Provável suicídio. Talvez a maioria não o conheça, mas Aaron está presente na nossa vida cotidiana há bastante tempo. Desde os 14 anos, ele trabalha criando ferramentas, programas e organizações na internet. E, de algum modo, em algum momento, quem usa a rede foi beneficiado por algo que ele fez. Isso significa que, aos 26 anos, Aaron já tinha trabalhado praticamente metade da sua vida. E, nesta metade ele participou da criação do RSS (que nos permite receber atualizações do conteúdo de sites e blogs de que gostamos), do Reddit (plataforma aberta em que se pode votar em histórias e discussões importantes), e do Creative Commons (licença que libera conteúdos sem a cobrança de alguns direitos por parte dos autores). Mas não só. A grande luta de Aaron, como fica explícito no depoimento que abre esta coluna, era uma luta política: ele queria mudar o mundo e acreditava que era possível.

E queria mudar o mundo como alguém da sua geração vislumbra mudar o mundo: dando acesso livre ao conhecimento acumulado da humanidade pela internet. E também usando a rede para fiscalizar o poder e conquistar avanços nas políticas públicas. Movido por esse desejo, Aaron ajudou a criar o Watchdog, website que permite a criação de petições públicas; a Open Library, espécie de biblioteca universal, com o objetivo de ter uma página na web para cada livro já publicado no mundo; e o Demand Progress, plataforma para obter conquistas em políticas públicas para pessoas comuns, através de campanhas online, contato com congressistas e advocacia em causas coletivas. Em 2008, lançou um manifesto no qual dizia: “A informação é poder. Mas tal como acontece com todo o poder, há aqueles que querem guardá-lo para si”.

Indignado com a passividade dos acadêmicos diante do controle da informação por grandes corporações, ele conclamava a todos para lutar juntos contra o que chamava de “privatização do conhecimento”. Baixou milhões de arquivos do judiciário americano, cujo acesso era cobrado, apesar de os documentos serem públicos. Chegou a ser investigado pelo FBI, mas sem consequências jurídicas. Em 2011, porém, Aaron foi alcançado.

Em alguns dias, ele baixou 4,8 milhões de artigos acadêmicos de um banco de dados chamado JSTOR, cujo acesso é pago pelas universidades e instituições. Aaron usou a rede do conceituado MIT (Massachusets Institute of Technology) para acessar o banco de dados, fazendo download de muitos documentos ao mesmo tempo, o que era – é importante ressaltar – permitido pelo sistema. Não se sabe o que ele faria com os documentos, possivelmente dar-lhes livre acesso. Mas, se era esta a intenção, Aaron não chegou a concretizá-la. Ao ser flagrado, ele assegurou que não pretendia lucrar com o ato e devolveu os arquivos copiados para o JSTOR, que extinguiu a ação judicial no plano civil.

Havia, porém, um processo penal: Aaron foi enquadrado nos crimes de fraude eletrônica e obtenção ilegal de informações, entre outros delitos. “Roubo é roubo, não interessa se você usa um computador ou um pé-de-cabra, e se você rouba documentos, dados ou dólares”, afirmou a procuradora dos Estados Unidos em Massachusetts, Carmen Ortiz (United States Attorney). Aaron seria julgado em abril. E, se fosse acatado o pedido da acusação, esta seria a sua punição: 35 anos de prisão e uma multa de 1 milhão de dólares.

Aaron Swartz morreu antes, aos 26 anos. E, como disse Kevin Poulsen, na Wired: “O mundo é roubado em meio século de todas as coisas que nós nem podemos imaginar que Aaron realizaria com o resto da sua vida”. Na The Economist, ele assim foi descrito: “Chamar Aaron Swartz de talentoso seria pouco. No que se refere à internet, ele era o talento”. Susan Crawford, que foi conselheira de tecnologia do governo de Barack Obama, afirmou, como conta John Schwartz, no The New York Times: “Aaron construiu coisas novas e surpreendentes, que mudaram o fluxo da informação ao redor do mundo”. E, acrescentou: “Ele era um prodígio complicado”.

Li em vários artigos que Aaron seria depressivo. Em alguns textos, a suposta depressão foi citada como causa de sua decisão, como se a doença pudesse estar isolada – e não associada aos possíveis abusos cometidos contra ele no curso do processo judicial. É evidente que qualquer pessoa, e especialmente se ela for saudável, sofreria com a perspectiva de passar as próximas três décadas na cadeia – mais ainda se isso significasse um tempo superior à toda a sua vida até então. Esta é uma possibilidade capaz de abater até o mais autoconfiante e otimista entre nós, o que não equivale a dizer que todos lidariam com esse pesadelo da mesma forma. Se é perigoso encontrar um culpado para uma escolha tão complexa quanto o suicídio, também é perigoso quando a depressão é vista como algo apartado da vida vivida – e a patologia é colocada a serviço da simplificação. Se as doenças falam do indivíduo, falam também do seu mundo e de seu momento histórico. (leia mais sobre a trajetória de Aaron aqui e aqui.)

Se Aaron Swartz encerrou a própria vida, esta foi a sua decisão. Tornar-se adulto é também bancar as suas escolhas – e, neste sentido, estar só. Digo isso para que a nossa dor não esvazie de protagonismo o último ato de Aaron, o que equivaleria a desrespeitá-lo. Aaron é responsável por sua escolha, por mais que ela possa ser lamentada. E só ele poderia afirmar por que a fez.

Isso não significa, porém, que vários atores do caso judicial que envenenou a vida de Aaron nos últimos dois anos, com aparentes excessos, não precisem também assumir responsabilidades e responder por suas respectivas escolhas.Um dos mentores de Aaron, Larry Lessig (escritor, professor de Direito da Universidade de Harvard, cofundador do Creative Commons) afirmou que ele tinha errado, mas considerou a acusação e a possível punição uma resposta desproporcional ao ato. Logo após a morte de Aaron, escreveu: “(Ele) partiu hoje, levado ao limite pelo que uma sociedade decente só poderia chamar de bullying”.

Colunistas como Glenn Greenwald, do Guardian, acreditam que o processo penal era uma resposta do governo dos Estados Unidos contra o seu ativismo libertário: “Swartz foi destruído por um sistema de ‘justiça’ que dá proteção integral aos criminosos mais ilustres – desde que sejam membros dos grupos mais poderosos do país, ou úteis para estes –, mas que pune sem piedade e com dureza incomparável quem não tem poder e, acima de tudo, aqueles que desafiam o poder”. Em declaração pública, a família afirmou: “A morte de Aaron não é apenas uma tragédia pessoal. É produto de um sistema de justiça criminal repleto de intimidações”. A família também responsabilizou o MIT pelo desfecho.

Em comunicado, o presidente do MIT, L. Rafael Reif, anunciou a abertura de um inquérito interno para apurar a responsabilidade da instituição nos acontecimentos que levaram à morte de Aaron. Reif escreveu: “Eu e todos do MIT estamos extremamente tristes pela morte deste jovem promissor que tocou a vida de tantos. Me dói pensar que o MIT tenha tido algum papel na série de eventos que terminaram em tragédia. (…) Agora é o momento de todos os envolvidos refletirem sobre suas ações, e isso inclui todos nós do MIT”.

É tarde para o MIT, é tarde para nós. Mas, ainda assim, necessário. É importante pensar sobre o significado da tragédia de Aaron Swartz. E, para começar, só o fato de ela poder significar algo para todos, sendo ele um jovem americano encontrado morto num apartamento em Nova York, é bastante revelador desse mundo novo que Aaron ajudava a construir. Esse mundo que nos une em rede, simultaneamente, que faz o longe ficar perto. Nesse contexto, a tragédia de Aaron Schwartz não é apenas um episódio, mas o marco de um momento histórico específico. Nele, diferentes forças econômicas, políticas e culturais se batem para impor ou derrubar barreiras no acesso ao conhecimento na internet. E este é, junto com a questão socioambiental, o maior debate atual. E é ele que está moldando nosso futuro.

Como disse Tatiana de Mello Dias, em seu blog no Estadão, “poucas pessoas traduziram tão bem a época em que nós estamos vivemos quanto Aaron Swartz”. Isso faz com que possamos pensar que sua morte é também, simbolicamente, um fracasso da geração a qual pertenço. Essa geração que testemunhou o nascimento da internet, que está decidindo – na maioria dos casos por omissão – como o conhecimento vai circular dentro dela e que, por ter crescido num mundo sem ela, nem chega a compreender totalmente o que está em jogo. E por isso deixa a geração de Aaron tão só.

Obviamente sou capaz de perceber os poderosos interesses envolvidos nas decisões relacionadas à internet, boa parte deles conduzidos também por gente da geração a qual pertenço. Mas me refiro aqui à passividade de muitos, no exercício da cidadania, diante de um dos debates cruciais do nosso tempo. E aqui vale uma observação: quando se diz que a juventude atual é alienada, que não trava lutas políticas como seus pais e avós, não é também deixar de enxergar o que se passa na internet, a “rua/praça” de uma série de movimentos políticos levados adiante pelos mais jovens? Já não é um tanto estúpido pensar em mundo real/mundo virtual como oposições? Criticar o “ativismo de sofá” dos mais jovens, menosprezando as ações na rede, não seria má fé ou ignorância? Talvez, como pais e adultos desse tempo, parte de nós tenha apenas medo e vergonha daquilo que não compreende. E, em vez de tentar compreender, num comportamento humano tão triste quanto clássico, desqualifica e rechaça. Afinal, literalmente, a internet tirou o chão que acreditávamos existir debaixo dos nossos trêmulos pés. Ou, pelo menos, nos mostrou que não havia nenhum.

Aaron não era apenas um gênio da internet, ainda que essa palavra “gênio” já tenha sido tão abusada. Talvez o maior ato político de Aaron tenha sido o que fez com seu talento. Ele usou-o para lutar pelo acesso livre ao conhecimento, via internet. Isso, em si, já o tornaria perigoso para muitos. Mas há algo que pode ter soado ainda mais imperdoável: Aaron não queria ganhar dinheiro com o seu talento. Ele não era aquilo que as crianças são ensinadas a admirar: um jovem gênio milionário da internet, como Mark Zuckerberg, o criador do Facebook. Aaron Swartz era um jovem gênio que não queria ser milionário. E, convenhamos, nada pode ser mais subversivo do que isso.

Ao ler sobre a morte de Aaron Swartz, lembrei de dois versos. Ao fim ou diante dele, apesar de todos os argumentos, é só a poesia que dá conta da tragédia. Um é do eternamente jovem Rimbaud (1854-1891): “Por delicadeza, perdi minha vida”. E o outro foi escrito por um Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) já velho: “Alguns, achando bárbaro o espetáculo, prefeririam (os delicados) morrer”.

Quando lemos o que Aaron Swartz escreveu, ouvimos o que disse, ele que acreditava tanto em mudar o mundo, é difícil não pensar: por que ele desistiu de nós, ele que acreditava tanto? Que mundo é esse que criamos, onde alguém como Aaron Swartz acredita não caber?

Então, é isso. Ele nos deixou sozinhos no mundo que legamos à sua geração. Entre os tantos feitos admiráveis deixados por Aaron em sua curta trajetória, ao morrer ele deixou também um outro legado: a denúncia do nosso fracasso.

Perdão, Aaron Swartz.

(Publicado na Revista Época em 21/01/2013)

 

Russomanno e a vulgaridade do desejo

O “patrulheiro do consumidor” lidera em São Paulo porque, se a política é de mercado, ele pode convencer como mercadoria

Como se define um povo? De várias maneiras. A principal, me parece, é pela qualidade do seu desejo. É por este viés que também podemos compreender o fenômeno Celso Russomanno (PRB). Como um homem que se tornou conhecido por bolinar mulheres na cobertura de bailes de carnaval e como “patrulheiro do consumidor” em programa da TV Record, apoiado pela Igreja Universal do Reino de Deus, torna-se líder de intenções de votos na maior cidade do Brasil?

Acredito que parte da resposta possa estar no desejo. Na vulgaridade do nosso desejo. No que consiste o desejo das diferentes camadas da população, seja o topo da pirâmide, a classe média tradicional, o que tem sido chamado de “nova classe média” ou classe C. Para além das diferenças, que são muitas, há algo que tem igualado a socialite que faz compras no Shopping Cidade Jardim, um dos mais luxuosos de São Paulo, ao jovem das periferias paulistanas carentes de serviços públicos de qualidade. E o que é? A identificação como consumidor, acima de todas as maneiras de olhar para si mesmo – e para o outro. É para consumir que boa parte da população não só de São Paulo quanto do Brasil urbano tem conduzido o movimento da vida – e se consumido neste movimento.

Dois textos recentes são especialmente reveladores para nos ajudar a compreender o Brasil atual.

Em sua coluna de 4/9, na Folha de S. Paulo, o filósofo Vladimir Safatle faz uma análise interessantíssima do caso Russomanno. Ele parte do fato de que a ascensão econômica de larga parcela da população no lulismo se dá principalmente pela ampliação das possibilidades de consumo – e não pela ampliação do acesso a serviços sociais de qualidade. Logo, para essa camada da população, os direitos da cidadania são decodificados como direitos do consumidor. Nada mais lógico para representá-la e defender seus interesses do que um prefeito que seja um pretenso “patrulheiro do consumidor”, bancado por uma das igrejas líderes da “teologia da prosperidade”. Russomanno seria, na definição de Safatle, “o filho bastardo do lulismo com o populismo conservador”.

Na ótima reportagem intitulada “O Funk da Ostentação em São Paulo”, o repórter de Época Rafael de Pino conta como se dá a apropriação do funk carioca nas periferias de São Paulo. Preste atenção na abertura da matéria, que reproduzo aqui:

“‘Vida é ter um Hyundai e uma Hornet/10 mil pra gastar, Rolex e Juliet’, canta o paulista MC Danado no funk ‘Top do momento’. Para quem não entendeu, ele fala, na ordem, de um carro, uma moto, dinheiro, um relógio e um par de óculos – um refrão avaliado em R$ 400 mil. Na plateia do show na Zona Leste, região que concentra bairros populares de São Paulo, os versos são repetidos aos berros pelas quase 1.000 pessoas presentes, que pagaram ingressos a R$ 30. O público da sexta-feira é jovem, etnicamente diverso e poderia ser descrito em três palavras: ‘classe C emergente’.”

MC Danado, como nos conta Rafael de Pino, antes de se tornar um astro, trabalhou como office-boy e auxiliar de escritório. Ele diz o seguinte: “Gosto da ostentação, gosto de ostentar. Parte do que canto, eu tenho. Outra parte, desejo e vou conquistar com meu trabalho”. Vale a pena conferir os refrões de outros funkeiros da ostentação, como MC Guimê: “Ta-pa-ta-pa tá patrão, ta-pa-ta-pa tá patrão/Tênis Nike Shox, Bermuda da Oakley, Olha a situação”. Ou MCs BackDi e Bio-G3: “É classe A, é classe A/quando o bonde passa nas pistas geral, tá ligado que é ruim de aturar/É classe A, é classe A/Nós tem carro, tem moto e dinheiro”.

MC Menor, outra estrela ascendente, explica: “Enxergo o mundo como meu público enxerga. Nasci na comunidade, sei que lá ninguém quer cantar pobreza e miséria”. Não por acaso, é em São Paulo que o funk se torna uma expressão do desejo de consumo da juventude emergente das periferias.

Ao ascender economicamente, a “nova classe média” parece se apropriar da visão de mundo da classe média tradicional – talvez com mais pragmatismo e certamente com muito mais pressa. Em vez de lutar coletivamente por escola pública de qualidade, saúde pública de qualidade, transporte público de qualidade, o caminho é individual, via consumo: escola privada e plano de saúde privado, mesmo que sem qualidade, e carro para se livrar do ônibus, mesmo que fique parado no trânsito. O núcleo a partir do qual são eleitas as prioridades não é a comunidade, mas a família.

Se no passado recente o rap arrastou multidões nas periferias de São Paulo com um discurso fortemente ideológico contra o mercado, hoje o espaço é parcialmente ocupado pelo “funk da ostentação” e seu discurso de que uma vida só ganha sentido no consumo. As marcas de uma vida não se dão pela experiência, mas se adquirem pela compra: as marcas da vida são grifes de luxo, segundo nos informam as letras do funk paulista. Alguns dos grandes nomes do rap engajado do passado também podem ser vistos hoje anunciando produtos na TV com desembaraço – o que também quer dizer alguma coisa.

É importante observar, porém, que aquilo que eu tenho chamado aqui de vulgaridade do desejo não é uma novidade trazida pela “nova classe média”. Ao contrário, a influência tem sinal trocado. O que os emergentes da classe C tem feito é se apropriar da vulgaridade do desejo das elites. O funk da ostentação de MC Danado, ao recitar grifes e fazer uma ode ao consumo, pode estar na boca de qualquer socialite que possamos entrevistar agora no corredor de um dos shoppings de luxo.

Neste contexto, a vulgaridade do desejo tem em Russomanno sua expressão mais bem acabada na política. Assim como na religião encontra expressão em parte das igrejas evangélicas neopentecostais e sua teologia do compre agora para ganhar agora. Nesta eleição de São Paulo, testemunhamos uma aliança e uma síntese da nova configuração do Brasil – possivelmente menos transitória do que alguns acreditam ser.

Russomanno não inventou a vulgaridade do desejo – apenas a explicitou e tratou de encarná-la. Seus oponentes têm uma biografia muito mais relevante, assim como partidos mais sólidos. Mas parecem ter perdido essa vantagem junto a setores da população no momento em que se renderem à lógica do consumo e viraram também eles um produto eleitoral. Pela adesão à política de mercado, perderam a chance de representar uma alternativa, inclusive moral.

José Serra (PSDB) tem feito quase qualquer coisa para conquistar o apoio das igrejas na tentativa de vencer as disputas eleitorais. Basta lembrar como um dos exemplos mais contundentes o falso debate do aborto estimulado por ele na última eleição presidencial, na ânsia de ganhar o voto religioso. E Fernando Haddad (PT), que se pretende “novo”, antes do início oficial da campanha já tinha abraçado o velho Maluf. Para quê? Para ter mais tempo de TV – o lugar por excelência no qual os produtos são “vendidos” aos consumidores.

Quem transformou eleitores em consumidores de produtos eleitorais não foi Celso Russomanno. Ele apenas aproveitou-se da conjuntura propícia – e não perdeu a oportunidade ao perceber que os outros reduziram-se a ponto de jogar no seu campo. Afinal, de mercadoria Russomanno entende.

É bastante interessante que entre os mais perplexos diante deste novo Brasil, representado pelo fenômeno Russomanno, estejam o PT e a Igreja Católica. Ambos, porém, estão no cerne da mudança que agora se desenha com maior clareza.

A “era” Lula marcou e segue marcando sua atuação também pelo esvaziamento dos movimentos sociais – e da saída coletiva, construída e conquistada que foi decisiva para a formação do PT. Também estimulou sem qualquer prurido o personalismo populista na figura do líder/pai. Assim como na campanha que elegeu Dilma Rousseff, a sucessora de Lula no governo foi apresentada como filha do pai/mãe do povo. Em nenhum momento, nem o PT nem Lula pareceram se importar de verdade com o fato de que os numerosos militantes que no passado ocupavam os espaços públicos com suas bandeiras e seu idealismo foram gradualmente sendo substituídos por cabos eleitorais pagos, em mais uma adesão à lógica de mercado.

A cúpula da Igreja Católica no Brasil, por sua vez, atendendo às diretrizes do Vaticano, esforçou-se nas últimas décadas para esvaziar movimentos como a Teologia da Libertação, que representavam uma inserção do evangelho na política pelo caminho coletivo e pela formação de base. Esforçou-se com tanto afinco que perseguiu alguns de seus representantes mais importantes – e marginalizou outros. Mas parece que nem o PT de Lula nem a CNBB têm compreendido que o fenômeno Russomanno também foi gerado no ventre de suas guinadas conservadoras – e, no caso do PT, de suas alianças pragmáticas e da sua atuação para transformar a política num balcão de negócios. Sem esquecer, claro, que o PRB de Russomanno é da base de apoio do governo Dilma.

Quando a presidente do país dá o Ministério da Cultura para Marta Suplicy, para que ela suba no palanque do candidato do PT à prefeitura de São Paulo, por mais que os protagonistas aleguem apenas coincidência, é só política de mercado que enxergamos. E tudo piora quando Marta invoca uma trindade político-religiosa no palanque de Haddad: “O trio é capaz de alavancar (a candidatura de Haddad): a presidente Dilma, o Lula e eu. Eu, porque tenho o apelo de quem fez; eu sou a pessoa que faz. O Lula porque é um ‘deus’ e a presidente Dilma porque é bem avaliada. Então, com a entrada desse trio, vai dar certo”.

Diante do que está aí, feito e dito, por que o eleitor vai achar que Russomanno é pior? Ou que as alternativas a ele são de fato diferentes?

O mais importante não é atacar Celso Russomanno, mas compreender o que ele revela do Brasil atual. O fenômeno Russomanno pode ter algo a nos ensinar. Quem sabe sua liderança nas pesquisas eleitorais possa mostrar aos futuros candidatos que ética e coerência na política valem a pena se quiserem se tornar alternativas reais para uma parcela do eleitorado. Ou que se nivelar por baixo em nome dos fins pode ser um tiro no pé – tanto quanto se aliar com qualquer um. E talvez o fenômeno Russomanno possa ensinar aos futuros governantes que um povo se define pela qualidade do seu desejo. E desejo só se qualifica com educação.

Sempre se pode lamentar que o eleitor deseje o que deseja, mas o eleitor – em geral subestimado – sabe o que quer. Se a maioria acredita que tudo o que dá sentido a uma vida humana pode ser comprado num shopping, então São Paulo – e o Brasil – merecem Celso Russomanno.

(Publicado na Revista Época em 17/09/2012)

 

Doutor Advogado e Doutor Médico: até quando?

Por que o uso da palavra “doutor” antes do nome de advogados e médicos ainda persiste entre nós? E o que ela revela do Brasil?

Sei muito bem que a língua, como coisa viva que é, só muda quando mudam as pessoas, as relações entre elas e a forma como lidam com o mundo. Poucas expressões humanas são tão avessas a imposições por decreto como a língua. Tão indomável que até mesmo nós, mais vezes do que gostaríamos, acabamos deixando escapar palavras que faríamos de tudo para recolher no segundo seguinte. E talvez mais vezes ainda pretendêssemos usar determinado sujeito, verbo, substantivo ou adjetivo e usamos outro bem diferente, que revela muito mais de nossas intenções e sentimentos do que desejaríamos. Afinal, a psicanálise foi construída com os tijolos de nossos atos falhos. Exerço, porém, um pequeno ato quixotesco no meu uso pessoal da língua: esforço-me para jamais usar a palavra “doutor” antes do nome de um médico ou de um advogado.

Travo minha pequena batalha com a consciência de que a língua nada tem de inocente. Se usamos as palavras para embates profundos no campo das ideias, é também na própria escolha delas, no corpo das palavras em si, que se expressam relações de poder, de abuso e de submissão. Cada vocábulo de um idioma carrega uma teia de sentidos que vai se alterando ao longo da História, alterando-se no próprio fazer-se do homem na História. E, no meu modo de ver o mundo, “doutor” é uma praga persistente que fala muito sobre o Brasil. Como toda palavra, algumas mais do que outras, “doutor” desvela muito do que somos – e é preciso estranhá-lo para conseguirmos escutar o que diz.

Assim, minha recusa ao “doutor” é um ato político. Um ato de resistência cotidiana, exercido de forma solitária na esperança de que um dia os bons dicionários digam algo assim, ao final das várias acepções do verbete “doutor”: “arcaísmo: no passado, era usado pelos mais pobres para tratar os mais ricos e também para marcar a superioridade de médicos e advogados, mas, com a queda da desigualdade socioeconômica e a ampliação dos direitos do cidadão, essa acepção caiu em desuso”.

Em minhas aspirações, o sentido da palavra perderia sua força não por proibição, o que seria nada além de um ato tão inútil como arbitrário, na qual às vezes resvalam alguns legisladores, mas porque o Brasil mudou. A língua, obviamente, só muda quando muda a complexa realidade que ela expressa. Só muda quando mudamos nós.
Historicamente, o “doutor” se entranhou na sociedade brasileira como uma forma de tratar os superiores na hierarquia socioeconômica – e também como expressão de racismo. Ou como a forma de os mais pobres tratarem os mais ricos, de os que não puderam estudar tratarem os que puderam, dos que nunca tiveram privilégios tratarem aqueles que sempre os tiveram. O “doutor” não se estabeleceu na língua portuguesa como uma palavra inocente, mas como um fosso, ao expressar no idioma uma diferença vivida na concretude do cotidiano que deveria ter nos envergonhado desde sempre.

Lembro-me de, em 1999, entrevistar Adail José da Silva, um carregador de malas do Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, para a coluna semanal de reportagem que eu mantinha aos sábados no jornal Zero Hora, intitulada “A Vida Que Ninguém Vê”. Um trecho de nosso diálogo foi este:

– E como os fregueses o chamam?

– Os doutor me chamam assim, ó: “Ô, negão!” Eu acho até que é carinhoso.

– O senhor chama eles de doutor?

– Pra mim todo mundo é doutor. Pisou no aeroporto é doutor. É ó, doutor, como vai, doutor, é pra já, doutor….

– É esse o segredo do serviço?

– Tem que ter humildade. Não adianta ser arrogante. Porque, se eu fosse um cara importante, não ia tá carregando a mala dos outros, né? Sou pé de chinelo. Então, tenho que me botar no meu lugar.

A forma como Adail via o mundo e o seu lugar no mundo – a partir da forma como os outros viam tanto ele quanto seu lugar no mundo – contam-nos séculos de História do Brasil. Penso, porém, que temos avançado nas últimas décadas – e especialmente nessa última. O “doutor” usado pelo porteiro para tratar o condômino, pela empregada doméstica para tratar o patrão, pelo engraxate para tratar o cliente, pelo negro para tratar o branco não desapareceu – mas pelo menos está arrefecendo.

Se alguém, especialmente nas grandes cidades, chamar hoje o outro de “doutor”, é legítimo desconfiar de que o interlocutor está brincando ou ironizando, porque parte das pessoas já tem noção da camada de ridículo que a forma de tratamento adquiriu ao longo dos anos. Essa mudança, é importante assinalar, reflete também a mudança de um país no qual o presidente mais popular da história recente é chamado pelo nome/apelido. Essa contribuição – mais sutil, mais subjetiva, mais simbólica – que se dá explicitamente pelo nome, contida na eleição de Lula, ainda merece um olhar mais atento, independentemente das críticas que se possa fazer ao ex-presidente e seu legado.

Se o “doutor” genérico, usado para tratar os mais ricos, está perdendo seu prazo de validade, o “doutor” que anuncia médicos e advogados parece se manter tão vigoroso e atual quanto sempre. Por quê? Com tantas mudanças na sociedade brasileira, refletidas também no cinema e na literatura, não era de se esperar um declínio também deste doutor?

Ao pesquisar o uso do “doutor” para escrever esta coluna, deparei-me com artigos de advogados defendendo que, pelo menos com relação à sua própria categoria, o uso do “doutor” seguia legítimo e referendado na lei e na tradição. O principal argumento apresentado para defender essa tese estaria num alvará régio no qual D. Maria, de Portugal, mais conhecida como “a louca”, teria outorgado o título de “doutor” aos advogados. Mais tarde, em 1827, o título de “doutor” teria sido assegurado aos bacharéis de Direito por um decreto de Dom Pedro I, ao criar os primeiros cursos de Ciências Jurídicas e Sociais no Brasil. Como o decreto imperial jamais teria sido revogado, ser “doutor” seria parte do “direito” dos advogados. E o título teria sido “naturalmente” estendido para os médicos em décadas posteriores.

Há, porém, controvérsias. Em consulta à própria fonte, o artigo 9 do decreto de D. Pedro I diz o seguinte: “Os que frequentarem os cinco anos de qualquer dos Cursos, com aprovação, conseguirão o grau de Bacharéis formados. Haverá também o grau de Doutor, que será conferido àqueles que se habilitarem com os requisitos que se especificarem nos Estatutos, que devem formar-se, e só os que o obtiverem, poderão ser escolhidos para Lentes”. Tomei a liberdade de atualizar a ortografia, mas o texto original pode ser conferido aqui. “Lente” seria o equivalente hoje à livre-docente.

Mesmo que Dom Pedro I tivesse concedido a bacharéis de Direito o título de “doutor”, o que me causa espanto é o mesmo que, para alguns membros do Direito, garantiria a legitimidade do título: como é que um decreto do Império sobreviveria não só à própria queda do próprio, mas também a tudo o que veio depois?

O fato é que o título de “doutor”, com ou sem decreto imperial, permanece em vigor na vida do país. Existe não por decreto, mas enraizado na vida vivida, o que torna tudo mais sério. A resposta para a atualidade do “doutor” pode estar na evidência de que, se a sociedade brasileira mudou bastante, também mudou pouco. A resposta pode ser encontrada na enorme desigualdade que persiste até hoje. E na forma como essas relações desiguais moldam a vida cotidiana.

É no dia a dia das delegacias de polícia, dos corredores do Fórum, dos pequenos julgamentos que o “doutor” se impõe com todo o seu poder sobre o cidadão “comum”. Como repórter, assisti à humilhação e ao desamparo tanto das vítimas quanto dos suspeitos mais pobres à mercê desses doutores, no qual o título era uma expressão importante da desigualdade no acesso à lei. No início, ficava estarrecida com o tratamento usado por delegados, advogados, promotores e juízes, falando de si e entre si como “doutor fulano” e “doutor beltrano”. Será que não percebem o quanto se tornam patéticos ao fazer isso?, pensava. Aos poucos, percebi a minha ingenuidade. O “doutor”, nesses espaços, tinha uma função fundamental: a de garantir o reconhecimento entre os pares e assegurar a submissão daqueles que precisavam da Justiça e rapidamente compreendiam que a Justiça ali era encarnada e, mais do que isso, era pessoal, no amplo sentido do termo.

No caso dos médicos, a atualidade e a persistência do título de “doutor” precisam ser compreendidas no contexto de uma sociedade patologizada, na qual as pessoas se definem em grande parte por seu diagnóstico ou por suas patologias. Hoje, são os médicos que dizem o que cada um de nós é: depressivo, hiperativo, bipolar, obeso, anoréxico, bulímico, cardíaco, impotente, etc. Do mesmo modo, numa época histórica em que juventude e potência se tornaram valores – e é o corpo que expressa ambas – faz todo sentido que o poder médico seja enorme. É o médico, como manipulador das drogas legais e das intervenções cirúrgicas, que supostamente pode ampliar tanto potência quanto juventude. E, de novo supostamente, deter o controle sobre a longevidade e a morte. A ponto de alguns profissionais terem começado a defender que a velhice é uma “doença” que poderá ser eliminada com o avanço tecnológico.

O “doutor” médico e o “doutor” advogado, juiz, promotor, delegado têm cada um suas causas e particularidades na história das mentalidades e dos costumes. Em comum, o doutor médico e o doutor advogado, juiz, promotor, delegado têm algo significativo: a autoridade sobre os corpos. Um pela lei, o outro pela medicina, eles normatizam a vida de todos os outros. Não apenas como representantes de um poder que pertence à instituição e não a eles, mas que a transcende para encarnar na própria pessoa que usa o título.

Se olharmos a partir das relações de mercado e de consumo, a medicina e o direito são os únicos espaços em que o cliente, ao entrar pela porta do escritório ou do consultório, em geral já está automaticamente numa posição de submissão. Em ambos os casos, o cliente não tem razão, nem sabe o que é melhor para ele. Seja como vítima de uma violação da lei ou como autor de uma violação da lei, o cliente é sujeito passivo diante do advogado, promotor, juiz, delegado. E, como “paciente” diante do médico, como abordei na coluna anterior, deixa de ser pessoa para tornar-se objeto de intervenção.

Num país no qual o acesso à Justiça e o acesso à Saúde são deficientes, como o Brasil, é previsível que tanto o título de “doutor” permaneça atual e vigoroso quanto o que ele representa também como viés de classe. Apesar dos avanços e da própria Constituição, tanto o acesso à Justiça quanto o acesso à Saúde permanecem, na prática, como privilégios dos mais ricos. As fragilidades do SUS, de um lado, e o número insuficiente de defensores públicos de outro são expressões dessa desigualdade. Quando o direito de acesso tanto a um quanto a outro não é assegurado, a situação de desamparo se estabelece, assim como a subordinação do cidadão àquele que pode garantir – ou retirar – tanto um quanto outro no cotidiano. Sem contar que a cidadania ainda é um conceito mais teórico do que concreto na vida brasileira.

Infelizmente, a maioria dos “doutores” médicos e dos “doutores” advogados, juízes, promotores, delegados etc estimulam e até exigem o título no dia a dia. E talvez o exemplo público mais contundente seja o do juiz de Niterói (RJ) que, em 2004, entrou na Justiça para exigir que os empregados do condomínio onde vivia o chamassem de “doutor”. Como consta nos autos, diante da sua exigência, o zelador retrucava: “Fala sério….” Não conheço em profundidade os fatos que motivaram as desavenças no condomínio – mas é muito significativo que, como solução, o juiz tenha buscado a Justiça para exigir um tratamento que começava a lhe faltar no território da vida cotidiana.

É importante reconhecer que há uma pequena parcela de médicos e advogados, juízes, promotores, delegados etc que tem se esforçado para eliminar essa distorção. Estes tratam de avisar logo que devem ser chamados pelo nome. Ou por senhor ou senhora, caso o interlocutor prefira a formalidade – ou o contexto a exija. Sabem que essa mudança tem grande força simbólica na luta por um país mais igualitário e pela ampliação da cidadania e dos direitos. A estes, meu respeito.

Resta ainda o “doutor” como título acadêmico, conquistado por aqueles que fizeram doutorado nas mais diversas áreas. No Brasil, em geral isso significa, entre o mestrado e o doutorado, cerca de seis anos de estudo além da graduação. Para se doutorar, é preciso escrever uma tese e defendê-la diante de uma banca. Neste caso, o título é – ou deveria ser – resultado de muito estudo e da produção de conhecimento em sua área de atuação. É também requisito para uma carreira acadêmica bem sucedida – e, em muitas universidades, uma exigência para se candidatar ao cargo de professor.

Em geral, o título só é citado nas comunicações por escrito no âmbito acadêmico e nos órgãos de financiamento de pesquisas, no currículo e na publicação de artigos em revistas científicas e/ou especializadas. Em geral, nenhum destes doutores é assim chamado na vida cotidiana, seja na sala de aula ou na padaria. E, pelo menos os que eu conheço, caso o fossem, oscilariam entre o completo constrangimento e um riso descontrolado. Não são estes, com certeza, os doutores que alimentam também na expressão simbólica a abissal desigualdade da sociedade brasileira.

Estou bem longe de esgotar o assunto aqui nesta coluna. Faço apenas uma provocação para que, pelo menos, comecemos a estranhar o que parece soar tão natural, eterno e imutável – mas é resultado do processo histórico e de nossa atuação nele. Estranhar é o verbo que precede o gesto de mudança. Infelizmente, suspeito de que “doutor fulano” e “doutor beltrano” terão ainda uma longa vida entre nós. Quando partirem desta para o nunca mais, será demasiado tarde. Porque já é demasiado tarde – sempre foi.

(Publicado na Revista Época em 10/09/2012)

 

Por que o amianto foi parar no meio do mensalão?

Em meio ao período de julgamento do mensalão, o Supremo Tribunal Federal realiza uma audiência pública com 35 expositores para debater o uso do mineral cancerígeno presente em cerca de três mil produtos do nosso cotidiano. Entenda como isso afeta – e muito – a nossa vida e o que está em jogo neste momento no Brasil e na corte

Nas próximas duas sextas-feiras (24 e 31/8), o Supremo Tribunal Federal realizará uma audiência pública sobre o amianto – também conhecido como asbesto. O tema afeta diretamente a população, que ainda bebe água de caixas d’água de amianto ou dorme sob um teto de telhas de amianto ou ainda tem em sua vida cotidiana três mil produtos fabricados com essa fibra mineral comprovadamente cancerígena. Apesar da importância da questão, já estamos na semana da audiência pública e pouco se ouve falar sequer de que ela vai acontecer – seja na imprensa, seja nas ruas, até mesmo nos corredores do próprio Supremo. A razão é óbvia: como é possível que se preste atenção em qualquer outra coisa realizada na corte em pleno período de julgamento do mensalão?

Mesmo que não estejam previstas sessões de julgamento do mensalão nestas duas sextas-feiras, ainda assim é legítimo questionar: se o principal objetivo de uma audiência pública é esclarecer os ministros em temas supostamente controversos, como os principais interessados estarão aptos a concentrar seus esforços em qualquer outra coisa que não seja o mensalão, ouvindo 35 expositores sobre um tema complexo, quando alguns já são flagrados cochilando e outros reclamam publicamente de exaustão devido à agenda semanal pesada?

A audiência pública foi pedida pelo Instituto Brasileiro do Crisotila, que serve à indústria do amianto, no curso de uma ação que tenta derrubar a lei que proibiu a fibra mineral no Estado de São Paulo. Movida pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria (CNTI), esta ação (ADI 3937) alega a inconstitucionalidade da lei paulista. Mas é só uma entre várias ações relativas ao amianto que começaram a tramitar há mais de uma década no Supremo, o que permitiria supor que a corte já estaria bastante informada sobre o assunto. Mas, pelo menos no entender do relator, ministro Marco Aurélio Mello, não está. O Instituto Brasileiro do Crisotila pediu audiência pública e o ministro Marco Aurélio concedeu o pedido – marcando, dias antes do anúncio oficial do cronograma do mensalão, o debate para agosto.

Como tudo o que se refere ao amianto no Brasil, a audiência pública no meio do julgamento do mensalão é só mais um entre muitos capítulos estarrecedores. O quadro é o seguinte. A Organização Mundial da Saúde considera o amianto cancerígeno desde 1977 – há 35 anos, portanto. Segundo estimativas da OMS, cerca de 107 mil trabalhadores morrem a cada ano no mundo por doenças causadas pelo amianto. Documentos provam que a indústria já tinha informações sobre a relação entre amianto e doenças letais desde os anos 30 do século passado. Nos anos 90, a contaminação por amianto tomou proporções de escândalo de saúde pública em países da Europa, como a França, onde estima-se que 100 mil pessoas morrerão de doenças relacionadas ao amianto até 2025. Em toda a Europa ocidental, as estimativas apontam que o câncer causado por amianto matará 250 mil pessoas entre 1995 e 2029. O primeiro país europeu a vetar o mineral foi a Noruega, em 1984 – quase três décadas atrás, portanto. Desde 2005, a fibra está banida em toda a União Europeia. Atualmente, o amianto está proibido em 66 países.

O Brasil é o terceiro produtor mundial, o segundo exportador e o quarto usuário de amianto. A principal ação que tramita no Supremo contesta justamente a lei federal que permite “o uso controlado do amianto”. Seu relator é o atual presidente da corte, ministro Ayres Britto. Mas, como sabemos, ele aposenta-se em novembro. A ação foi colocada na pauta de julgamentos, mas não tem data marcada para ser votada.

Hoje, o amianto é proibido em cinco estados – São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Mato Grosso e Pernambuco – e em mais de duas dezenas de municípios. A única mina de amianto no Brasil está localizada no município de Minaçu, em Goiás. Parte dos parlamentares que formam a chamada “bancada do crisotila”, dedicada a barrar o andamento no Congresso de projetos de lei para banir o amianto no país, tem estado bastante presentes no noticiário desde que estourou o escândalo de Carlinhos Cachoeira. “Crisotila” é o nome do tipo de amianto extraído no Brasil, cuja possibilidade de “uso seguro” é defendida pela indústria junto a ministros, parlamentares e população, apesar de uma ampla gama de pesquisas, realizadas pelos mais respeitados cientistas no mundo nesta área, provar que não há nenhuma maneira segura de usar amianto.

O escândalo do amianto configurou-se no Brasil na virada do milênio. Naquele momento, vieram a público as informações sobre a doença e a morte de dezenas de trabalhadores das fábricas de amianto. As doenças mais comuns causadas pela fibra mineral são a asbestose – conhecida como “pulmão de pedra”, na qual o doente é lentamente levado à morte por asfixia – e o mesotelioma – um tumor maligno, agressivo e letal na maioria dos casos, conhecido como o “câncer do amianto”. Uma em cada três mortes por câncer ocupacional está relacionada ao amianto.

Hoje, começam a surgir os primeiros casos de contaminação ambiental também no Brasil – pessoas que não trabalharam nas fábricas, mas moravam perto de fábricas de amianto ou tiveram contato com a fibra mineral de outro modo. Em uma série de reportagens publicada em maio, o jornal O Globo mostrou o caso da doceira Adelaide de Jesus Morino, que sofre de um mesotelioma. Ela mora a 200 metros da antiga fábrica da Eternit, em Osasco, na Grande São Paulo (leia aqui).

O estarrecedor com relação ao amianto é observar que o Brasil discute hoje o que os países mais avançados da Europa discutiram 30 anos atrás, alguns, 20 anos outros. Como se esta parte do mundo não estivesse globalizada – e as informações não estivessem disponíveis. No caso do amianto, o Brasil alinha-se com as posições de países como Rússia e China – o primeiro e o segundo produtores de amianto do mundo, cujas práticas econômicas, assim como a relação com os direitos humanos e trabalhistas, são bem conhecidas.

Enquanto a Europa discute como fazer a descontaminação ambiental das cidades nas quais havia minas e fábricas de amianto para evitar o aumento do número de mortes de cidadãos, o Brasil discute se é ou não possível o uso seguro do mineral cancerígeno. Em fevereiro, o Tribunal de Turim, na Itália, condenou o multimilionário Stephan Schmidheiny, antigo dono da gigante Eternit, e o barão belga Jean-Louis Marie Ghislain de Cartier de Marchienne, ex-dirigente da multinacional: a 16 anos de prisão, pela morte de cerca de três mil pessoas. Provou-se na corte que eles sabiam do potencial cancerígeno e, mesmo assim, calaram-se. Ações semelhantes são movidas em diferentes países da Europa, como você pode ler aqui. Enquanto isso, no Brasil, é marcada uma audiência pública para debater, entre outras questões, o impacto econômico do banimento do amianto.

Parece surreal? A mim, pelo menos, parece bastante. Mas, assim é que é. E por que é assim?

Para nos ajudar a entender o que está em jogo na audiência pública do Supremo que começa na próxima sexta-feira, entrevistei Fernanda Giannasi para esta coluna. Auditora fiscal do Ministério do Trabalho há 29 anos, ela é a grande referência na luta pelo banimento do amianto no Brasil – e uma das principais protagonistas no cenário internacional. É conhecida como a “Erin Brockovich brasileira”, numa referência à americana que venceu uma poderosa indústria que contaminara a água de uma pequena comunidade na Califórnia, causando doenças e mortes. No cinema, Erin foi vivida por Julia Roberts, em um filme que lhe rendeu o Oscar de melhor atriz.

Nesta luta, Fernanda vem sofrendo todo tipo de pressão, já chegou a receber ameaças de morte, recentemente foi vítima – mais uma vez – de uma tentativa de desqualificação, como foi mostrado aqui. Nos últimos dois meses, ela vem dormindo entre duas e duas horas e meia por noite, para atender às necessidades da preparação da audiência pública. A luta pelo banimento do amianto depende, em grande parte, do idealismo de seus ativistas, já que os recursos são escassos e a infraestrutura é pouca. Fernanda teme que, apesar de todos os esforços empreendidos, a audiência seja esvaziada por conta do período sobrecarregado do Supremo. E poucos estejam dispostos a escutá-los com a atenção que o tema merece.

O que está em jogo nesta audiência?
Fernanda Giannasi – A tentativa de adiar decisões com a composição atual do Supremo. Segundo avaliações de decisões anteriores, a maioria dos ministros hoje é desfavorável ao uso do amianto. Assim, os advogados do lobby pró-amianto pediram audiências públicas em todas as ações relativas ao tema, com o objetivo de protelar as votações, na esperança, talvez, de que a próxima composição do Supremo seja mais favorável à indústria do amianto. Uma das ações que o ministro Ayres Britto colocou em pauta, na véspera de assumir a presidência do Supremo, foi a ação que analisará a constitucionalidade da lei federal do uso controlado do amianto. Se esta lei for julgada inconstitucional pelo Supremo, todas as demais ações perdem sua razão de ser – e o amianto será banido. Mas Ayres Britto é o relator – e se aposentará no final deste ano.

Mas não é importante discutir o amianto?
Fernanda – Primeiro, as perguntas que estão postas para a audiência pública são as perguntas que foram trazidas pelo lobby do amianto. Claramente têm uma intencionalidade: reforçar a ideia de que o amianto brasileiro, o crisotila, é diferente dos outros, que o uso seguro é possível e que as outras fibras que estão sendo usadas como alternativa têm um custo alto e a substituição do amianto causaria muitas demissões. Bem, eu pretendo esclarecer duas destas questões. A primeira é que o uso seguro do amianto não se tornou viável em nenhum lugar do mundo. Apenas para dar um exemplo, minha equipe já multou caminhões que na ida carregavam amianto e, na volta, torradas e panetones de uma das empresas líderes de mercado. Não é realista imaginar que se conseguirá neutralizar os riscos da manipulação de um produto cancerígeno da mineração à construção civil e ao transporte, sem contar o consumo. A segunda questão que pretendo esclarecer é o impacto econômico e social da substituição do amianto. O lobby do amianto fala em 200 mil empregos, nos quais inclui os empregados no transporte dos produtos e da construção civil. Ora, os caminhoneiros transportam todo o tipo de produto, com ou sem amianto, e os trabalhadores da construção civil usam todo o tipo de material, com ou sem amianto. De fato, segundo os cadastros do Ministério do Trabalho, no qual sou auditora fiscal há 29 anos, a indústria do amianto gera no Brasil 5.500 empregos diretos e indiretos – enquanto as 170 empresas que substituíram o amianto geram, apenas no estado de São Paulo, 10.500 empregos diretos. Estes postos de trabalho, sim, estão ameaçados, se o amianto for mantido e começarmos a importar produtos com amianto da China, como já estamos fazendo. Nossa fiscalização mostrou que produtos com amianto estão chegando até mesmo por meio de compras pela internet. O fornecedor fica em Macau, o cliente recebe pelo federal express. Recentemente, inclusive, houve um escândalo na Austrália, onde o amianto é proibido, ao comprarem 23 mil carros e descobrirem que as juntas automotivas continham amianto. Agora, estão fazendo um recall para devolver os carros à China.

Mas não é importante mostrar tudo isso em uma audiência pública no Supremo?
Fernanda – O debate é sempre importante e temos discutido essa questão, em todas as instâncias, há pelo menos 20 anos, com grande dificuldade e, mais no passado do que hoje, até com risco pessoal. O problema é que essa audiência foi uma surpresa para nós, que lutamos pelo banimento do amianto. E me arrisco a dizer que foi uma surpresa também para alguns ministros do Supremo.

Por quê?
Fernanda – Primeiro, porque a questão do amianto tramita no Supremo há mais de uma década. A primeira ação é de 2001. Já houve decisões e, portanto, os ministros estão bem informados e esclarecidos sobre o tema. Neste sentido, é curioso realizar uma audiência para debater algo que os ministros já estão prontos para votar. Ainda assim, nós sempre estamos dispostos a debater. Portanto, tão logo o pedido de audiência pública feita pelos defensores do amianto foi deferido pelo ministro Marco Aurélio, no início de maio, começamos a empreender todos os nossos esforços para trazer os especialistas internacionais mais relevantes na área para qualificar o debate. E então, de novo fomos surpreendidos: as audiências foram marcadas para agosto, no mesmo período do julgamento do mensalão. O país inteiro está mobilizado para este julgamento: ministros, imprensa, público. Já que chamaram uma audiência pública, gostaríamos de ter a presença massiva dos ministros, a atenção do público e da imprensa, para que realmente haja foco no debate. Mas receamos ter, em vez disso, um debate esvaziado. Esta é a nossa perplexidade: a quem interessa realizar uma audiência pública sobre um tema que tramita há anos e já está na pauta de julgamentos? E, além disso, uma audiência pública realizada no mesmo período do julgamento do mensalão? Qual é o objetivo de fato desta audiência pública?

Mas quando a audiência pública do amianto foi marcada para agosto, não havia ainda a definição do cronograma do mensalão. Pelo que consta no andamento do processo no Supremo, o ministro Marco Aurélio determinou em despacho de 23 de maio que a audiência fosse realizada em agosto. E a data do julgamento do mensalão foi anunciada pelo Supremo alguns dias depois, em 6 de junho. Não teria sido apenas uma coincidência?
Fernanda – Não. Ainda que o julgamento do mensalão não tivesse sido oficialmente marcado e anunciado para agosto, quando a audiência pública foi marcada já estava sendo acertada a data do julgamento entre os ministros. Já se sabia que esta era a proposta. Sei disso porque, assim que nossos advogados souberam que a audiência seria marcada para agosto, manifestaram sua preocupação a ministros do Supremo, mencionando o mensalão. No início, pensamos que seria cancelada por conta disso, mas o fato é que não foi.

Qual é o seu temor?
Fernanda – Que a maior parte dos ministros não acompanhe o debate com a atenção e o foco que poderiam ter em outro momento, já que estão totalmente dedicados ao mensalão, numa agenda que já é pesada por si só. E você não imagina o esforço que é para o movimento social participar dessa audiência. Eu estou indo a Brasília com as minhas milhas, vou pagar o hotel do meu bolso. O Eliezer (de Souza, presidente da Associação Brasileira de Expostos ao Amianto) está indo de ônibus. Estamos hospedando gente nas casas de amigos, porque não temos dinheiro para hotel. Estamos tentando conseguir recursos para pagar a tradução simultânea. E só conseguimos trazer os convidados estrangeiros porque eles obtiveram os recursos para as passagens com suas próprias universidades e centros de pesquisa. E tudo isso para algo que pode nem ter repercussão na imprensa. Ainda nem temos certeza se a TV Justiça vai transmitir a audiência. De novo: a quem de fato interessa isso? Para quem é fácil mobilizar recursos nesse nível? Só pro lobby pró-amianto. Pra nós é um sacrifício e corremos o risco de termos um resultado pífio.

Está mais do que provado que o amianto é cancerígeno, já morreram milhares de pessoas e a previsão é de que morram centenas de milhares nas próximas décadas. Por que você acha que setores da indústria, do sindicalismo e mesmo da academia no Brasil se dedicam a continuar defendendo algo que mata gente?
Fernanda – É um lobby que tem sustentáculos em várias instâncias. Inclusive no próprio parlamento, com a “bancada da crisotila”, que agora ficou em destaque com o escândalo do Cachoeira. Dentro das universidade públicas mais renomadas, como USP e Unicamp, há pesquisadores que têm suas pesquisas financiadas pela indústria do amianto. Há sindicatos financiados pela indústria do amianto, como já provamos mais de uma vez. E hoje temos três ex-ministros do Supremo que advogaram ou advogam para a indústria do amianto depois de terem se aposentado. O primeiro foi o falecido Maurício Corrêa, que foi substituído pelo Carlos Velloso e, pelo que soubemos, até mesmo o Francisco Rezek está assessorando o lobby do amianto para as questões no STF. É aquela história, o que o homem persegue? Poder, dinheiro e prestígio. Hoje, prestígio já não há, com industriais e cientistas já respondendo por crimes em tribunais europeus. Mas poder, ainda que efemeramente, sim. Há notórios lobistas do amianto mantidos pela presidente Dilma Rousseff nos ministérios de Minas e Energia e do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. E riqueza rápida, certamente. É fácil perceber os indícios de riqueza na vida de alguns sindicalistas e acadêmicos.

Quantas pessoas já morreram no Brasil por causa do amianto?
Fernanda – Oficialmente, houve 2.400 casos de mesotelioma nos últimos dez anos. E o número vem crescendo ano a ano, com a melhoria dos diagnósticos e dos registros. Mas ainda vivemos o chamado “silêncio epidemiológico”. Os nossos registros oficiais não refletem o fato de o Brasil ser o terceiro produtor mundial, segundo maior exportador e quarto maior usuário de amianto. Isso não é porque a nossa crisotila supostamente seria mais segura, mas porque há problemas de registro. A Argentina comprava a nossa crisotila e tem mais casos registrados de mesotelioma do que o Brasil. Sem contar que há situações inexplicáveis, como uma decisão do STJ (Superior Tribunal de Justiça) que autoriza 17 empresas do amianto, entre elas a Eternit, a não informarem ao Sistema Único de Saúde quem são os seus doentes. Esta decisão existe desde 2006 e até hoje não foi revogada. Há basicamente dois mecanismos que tornam nossos dados invisíveis à sociedade: o primeiro é esta decisão imoral, e o segundo mecanismo são os acordos extrajudiciais. Temos quatro mil acordos extrajudiciais, celebrados pelas empresas com trabalhadores doentes, e seria necessário torná-los visíveis às instituições de saúde e à previdência, assim como ao público. Fizemos um enorme esforço e conseguimos ter acesso a pouco mais de mil destes acordos.

Há alguns analistas que comparam o lobby do amianto ao do tabaco. Você concorda?
Fernanda – É muito parecido com o lobby do tabaco, sim. São os chamados “mercadores da morte”. Se você tiver oportunidade, dê uma olhada num livro que os advogados da indústria americana do tabaco escreveram, chamado “O nosso produto é a dúvida” – ou seja, a cada nova certeza, eles produzem uma nova dúvida. E assim vão ganhando tempo e dinheiro enquanto as pessoas morrem. Com o amianto é a mesma coisa. Há o financiamento de uma ciência própria, com cientistas financiados pela indústria para produzir determinados resultados. E, a cada etapa que avançamos, o lobby do amianto vai gerando novas dúvidas, sempre para atrasar o processo. Do mesmo modo que agora, em outra instância, quando ações estão na pauta de votações, tratam de pedir uma audiência pública. E, assim como o cigarro, o amianto também é um lobby mundial. Os mesmos processos intimidatórios, as mesmas tentativas de desqualificar quem luta pelo banimento. As práticas se repetem.

Neste sentido, o que hoje acontece aqui é semelhante ao que acontecia na Europa décadas atrás. Atualmente, a preocupação de alguns países europeus é como fazer a descontaminação ambiental das cidades onde havia minas e fábricas. Assim como megaempresários do amianto, como os antigos donos da Eternit, são condenados por crime, como aconteceu no mês de fevereiro, em Turim. Se a Europa é o nosso futuro, no que se refere ao amianto, podemos contar como certo o banimento daqui a alguns anos?
Fernanda – Ninguém tem dúvida de que mais cedo ou mais tarde o amianto vai ser banido no Brasil. Mas eles apostam no mais tarde. Essa indústria está com os dias contados. O que eles querem conseguir é prazo. O amianto é superado no mundo desenvolvido. A OMS (Organização Mundial da Saúde) fala em banimento, a OIT (Organização Internacional do Trabalho) fala em banimento. Quem hoje defende o uso do amianto? Mesmo no Brasil, aqueles que antes estavam mais em cima do muro, hoje já estão começando a se posicionar. Restaram apenas os que não podem mudar de posição e quem está usando essa disputa para ganhar dinheiro rapidamente, mesmo que isso vá custar mais tarde a perda de prestígio, poder, dinheiro e, certamente, uma enorme mancha no currículo, quando não uma ficha policial. O que eles querem é uma sobrevida – que estão conseguindo à custa de vidas.

(Publicado na Revista Época em 20/08/2012)

 

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