O poderoso lobby do amianto

A fibra cancerígena está na vida de todos nós e no corpo de muitos. Proibida em mais de 60 países, é liberada no Brasil

Na semana passada, a Corte Di Cassazione de Roma anulou a sentença de 18 anos de prisão e o pagamento de 100 milhões de euros a que havia sido condenado o bilionário Stephan Schmidheiny, herdeiro da Eternit suíça e fundador da Avina. Por prescrição do crime – e não por inocência. No tribunal foi dito que o Direito e a Justiça nem sempre andam juntos, mas os juízes devem seguir o Direito, uma frase muito interessante.

O processo, histórico, foi liderado pelas vítimas e familiares de vítimas de uma pequena cidade italiana do Piemonte chamada Casale Monferrato, que coleciona centenas de mortes por contaminação ambiental por amianto. No tribunal, ao ouvir a anulação da sentença, os moradores e vítimas gritavam: “Vergonha!”.

No Brasil, como se sabe, o amianto é permitido, com exceção de alguns estados, apesar da coleção de mortes de trabalhadores, nas últimas décadas, por asbestose e mesotelioma. E, cada vez mais, o amianto é usado nas casas dos mais pobres, em periferias e favelas, nas aldeias indígenas e quilombolas, nas colocações de ribeirinhos. O pico da contaminação ambiental por amianto, segundo os especialistas, ainda está por vir. Aqui, vivemos o poderoso lobby da indústria que, em seus métodos, segue fielmente o paradigma do lobby da indústria do tabaco, tão claro em filmes como “O informante” e “Obrigado por fumar”. Hoje, o Brasil é o terceiro produtor mundial, o terceiro exportador e o quarto usuário de amianto.

Stephan Schmidheiny é um personagem fascinante. Para alguns um herói, para outros um vilão. Desde os anos 90 faz uma bem sucedida “lavagem de biografia” – ou de “greenwashing”. De príncipe do amianto se tornou “filantropo” e “ambientalista”. Ganhou prêmios, honrarias, capas laudatórias de revistas. A fortuna construída em boa parte com o amianto passou a financiar ações assistenciais e projetos socioambientais.

A operação, altamente eficaz, é parte da explicação de por que, em vários países e também no Brasil, os trabalhadores do amianto lutam e morrem sozinhos, sem que setores da população, historicamente ligados aos direitos humanos e ao movimento socioambiental, lutem com eles naquele que já é internacionalmente conhecido como um dos maiores escândalos de saúde publica da história e que começa a ser compreendido como um desastre ambiental de enormes proporções. Banido na maior parte do mundo desenvolvido, o amianto hoje faz estragos em países como Brasil, China e Índia, assim como no continente africano.

Essa história está em curso. E, mesmo com tanto silêncio, vamos ouvir muito sobre ela nos próximos anos no Brasil.

Nesta coluna, conto o desfecho do julgamento a partir de Romana Blasotti Pavesi, uma mulher de 85 anos que perdeu cinco pessoas da família para o câncer do amianto. O primeiro foi seu marido, Mario; a última sua filha, Maria Rosa. Estive na casa dela há dois anos, num dos projetos de reportagem que banco com minhas próprias economias, e acabei só escrevendo sobre Romana nesta coluna. As fotos são de João Luiz Guimarães.

Como vocês sabem, acompanho a questão do amianto no Brasil desde 2001. Neste post, coloco algumas das reportagens que fiz ao longo dos últimos 13 anos.

Romana e o bilionário do amianto: a dor que não prescreve

 A italiana que se tornou símbolo da luta contra a fibra assassina é uma das vítimas derrotadas por Stephan Schmidheiny no tribunal que envergonhou a Itália

Fotos: João Luiz Guimarães (2012) e Arquivo Pessoal

Fotos: João Luiz Guimarães (2012) e Arquivo Pessoal

Quando a entrevistei, dois anos atrás, ela me disse que já não chorava. Em algum momento da sua luta contra a Eternit, as lágrimas secaram dentro de Romana Blasotti Pavesi. Passamos uma tarde e uma manhã conversando em seu apartamento em Casale Monferrato. É difícil acreditar à primeira vista que na pequena cidade do Piemonte a tragédia respira entre ruas e paisagens de cinema italiano, nas vitrines das confeitarias onde os krumiris, o delicioso biscoito de Casale, se oferecem a quem passa. Então pessoas como Romana começam a falar. E quando falam enumeram seus mortos. E a narrativa mais uma vez desafina com o cenário do apartamento em que sua solidão é acompanhada por uma população de bibelôs bem ordenados e coloridos, por uma coleção de pequenos elefantes de todas os formatos, origens e texturas – a maioria deles com a tromba para cima, que é como ela gosta. Pergunto a ela se é por significar boa sorte, ela responde que assim parecem felizes. Romana pede um momento, diz com licença, e desaparece no quarto. Volta de lá com uma caixa. De dentro ela tira com a ponta dos dedos um cabelo longo e raro, com diferentes nuances de dourado e vermelho. Bello, molto bello. É de Maria Rosa, ela diz. A filha de Romana foi a quinta de sua família a morrer pelo câncer do amianto.

Leia o texto completo aqui.

Se você prefere ler o artigo em espanhol, basta clicar aqui.

A seguir, algumas das minhas reportagens sobre o amianto e a tragédia de saúde pública:

Lavagem de Biografia

Vítimas lançam uma ofensiva internacional para cassar os títulos e prêmios do bilionário Stephan Schmidheiny, ex-dono da Eternit suíça. No Brasil, miram na Ordem do Cruzeiro do Sul, dada a ele pelo presidente Fernando Henrique Cardoso
Leia aqui. 

A maldição do amianto

Condenados pela fibra cancerígena, centenas de ex-trabalhadores da Eternit e da Brasilit lutam por indenizações na Justiça
*Atenção: essa reportagem foi postada em duas partes. É fundamental ler a segunda também, já que o texto é interrompido na metade
1ª parte:
Leia aqui.
2ª parte:
Leia aqui.

Morto pelo Amianto

O ex-operário da Brasilit Sebastião Alves da Silva, símbolo internacional da luta contra a fibra cancerígena, perdeu sua última batalha
Leia aqui.

Vida e Morte

Brasilit e Eternit travam guerra pesada para convencer governo e opinião pública sobre o futuro do mineral. Em jogo, um mercado de R$ 2 bi
Leia aqui.

Romana e o bilionário do amianto: a dor que não prescreve

A italiana que se tornou símbolo da luta contra a fibra assassina é uma das vítimas derrotadas por Stephan Schmidheiny no tribunal que envergonhou a Itália

 

Quando a entrevistei, dois anos atrás, ela me disse que já não chorava. Em algum momento da sua luta contra a Eternit, as lágrimas secaram dentro de Romana Blasotti Pavesi. Passamos uma tarde e uma manhã conversando em seu apartamento em Casale Monferrato. É difícil acreditar à primeira vista que na pequena cidade do Piemonte a tragédia respira entre ruas e paisagens de cinema italiano, nas vitrines das confeitarias onde os krumiris, o delicioso biscoito de Casale, se oferecem a quem passa. Então pessoas como Romana começam a falar. E quando falam enumeram seus mortos. E a narrativa mais uma vez desafina com o cenário do apartamento em que sua solidão é acompanhada por uma população de bibelôs bem ordenados e coloridos, por uma coleção de pequenos elefantes de todas os formatos, origens e texturas – a maioria deles com a tromba para cima, que é como ela gosta. Pergunto a ela se é por significar boa sorte, ela responde que assim parecem felizes. Romana pede um momento, diz com licença, e desaparece no quarto. Volta de lá com uma caixa. De dentro ela tira com a ponta dos dedos um cabelo longo e raro, com diferentes nuances de dourado e vermelho. Bello, molto bello. É de Maria Rosa, ela diz. A filha de Romana foi a quinta de sua família a morrer pelo câncer do amianto.

Luto sem fim: Romana Blasotti Pavesi, em seu apartamento, na cidade italiana de Casale Monferrato JOÃO LUIZ GUIMARÃES/2012

Luto sem fim: Romana Blasotti Pavesi, em seu apartamento, na cidade italiana de Casale Monferrato JOÃO LUIZ GUIMARÃES/2012

Romana é a presidente da Associação de Familiares e Vítimas do Amianto de Casale Monferrato. A cidade foi marcada pela fábrica da Eternit instalada lá em 1906. Durante décadas considerada o melhor lugar para um operário trabalhar, até que os primeiros começaram a tombar das doenças provocadas pelo material conhecido também como asbesto. Depois, já não eram os trabalhadores que tiveram contato direto com a fibra, mas moradores que nunca haviam pisado no chão de fábrica. Professores, médicos, jornalistas, profissionais de todo o tipo que habitavam a cidade começaram a morrer de doenças causadas pelo amianto. A contaminação ambiental já havia se consumado e as décadas seriam atravessadas pela tragédia. Romana afirma que mais de 40 novos casos de mesotelioma, um câncer agressivo e fatal causado pelo amianto, surgem a cada ano na cidade.

Casale Monferrato então se levantou e liderou um processo histórico na Justiça italiana contra o bilionário suíço Stephan Schmidheiny e o barão belga Louis de Cartier de Marchienne, este último morto ao longo do julgamento. Stephan Schmidheiny é herdeiro da família que fundou a Eternit suíça e plantou fábricas de amianto por vários países ao longo do século 20, inclusive no Brasil, semeando a morte. Em 1976, ele assumiu o comando dos negócios e, segundo sua versão, teria decidido abandonar a produção com amianto ao descobrir que a fibra causava doenças fatais. A Eternit suíça só saiu das mãos da família mais de uma década depois, no final dos anos 80. O grupo se retirou da produção quando o amianto já tinha se tornado um escândalo de saúde pública na Europa, com milhares de vítimas e pedidos de indenização. O primeiro país europeu a banir o amianto foi a Islândia, em 1983, logo seguida pela Noruega, em 1984. Em 2005, o material foi proibido pela União Europeia. Hoje, está banido de 66 países do mundo, uma lista da qual o Brasil não faz parte. Com a venda das participações do grupo suíço Eternit, todo o passivo ambiental e humano ficou para trás.

Ao longo do processo da Justiça italiana, os promotores revelaram uma teia de centenas de mortos e doentes, a maioria deles de Casale Monferrato. Homens e mulheres contaram como perderam pais, mães, filhos e irmãos de câncer, alguns doentes só tiveram tempo de dar seu depoimento antes de morrer. Além do mesotelioma, a asbestose, conhecida como “pulmão de pedra”, é outra doença progressiva e fatal causada pelo amianto. Neste caso, a inalação da fibra provoca um ininterrupto processo de cicatrização que vai endurecendo o órgão até impedir o movimento de expiração e inspiração. As vítimas de asbestose morrem lenta e dolorosamente por asfixia. No Brasil, era neste momento que empresas como a Eternit despachavam seus representantes para os hospitais para que os operários em agonia assinassem um documento aceitando uma indenização irrisória em troca da vida que acabava, impedindo assim que suas famílias entrassem com ações judiciais após sua morte.

O marido de Romana, Mario Pavesi, já sofria com a asbestose quando começou a sentir a pontada nas costas que anunciava o mesotelioma. Mario era um homem calado, guardava seu mundo dentro de si, e por meses manteve segredo sobre a ferroada persistente. Ele já tinha visto muitos colegas de fábrica terem esse mesmo sintoma e morrerem depois. Um dia, de repente, Mario deixou escapar um gemido. E Romana soube que a atmosfera da casa se alterava de forma inexorável, porque aquele homem não gemia.

Mario tinha ficado órfão aos 16 anos, obrigado a sustentar a mãe e os irmãos menores. Em seguida, a Segunda Guerra incendiou a Europa e ele foi enviado como soldado a uma de suas frentes mais duras, a dos Balcãs. No dia em que ele se materializou diante de Romana, numa ousadia rara para aquele rapaz sério demais, fazia apenas um ano que retornara da Iugoslávia. Eles nunca haviam se falado e Mario já se apresentou com intenções de casamento. Dias depois, assistiram à Ninotchka no cinema. Mario já tinha visto o filme, mas como Romana era louca por Greta Garbo, fez de conta que era sua primeira vez. Casaram-se sete meses depois. Em 1957, já com os filhos Ottavio e Maria Rosa, Mario ingressou na Eternit, onde trabalharia por 20 anos. Quando sentiu a pontada nas costas, estava aposentado. Morreu de mesotelioma na noite de 15 de maio de 1983, aos 61 anos. Pouco antes de morrer, Mario saiu da sua inconsciência e estendeu a mão para Romana. Ela a segurou por um silêncio longo. Depois de uma vida, despediram-se assim. Romana não poderia adivinhar naquele momento que sua trajetória mudaria radicalmente de curso e o homem que amava seria apenas o primeiro da sua família sepultado pelo amianto. Nesse tempo, Romana ainda chorava.

A família completa: Romana e Mario com os filhos Ottavio e Maria Rosa. REPRODUÇÃO/ARQUIVO PESSOAL

A família completa: Romana e Mario com os filhos Ottavio e Maria Rosa. REPRODUÇÃO/ARQUIVO PESSOAL

Como as doenças provocadas pelo amianto, como o mesotelioma, têm um longo tempo de latência, em alguns casos décadas, o pico da tragédia de saúde pública acontece às vezes com a fábrica já fechada. A Itália baniu o amianto em 1992, mas ainda hoje lida com o escândalo sanitário. No Brasil, a fibra só é proibida em seis estados brasileiros: Rio Grande do Sul, São Paulo, Pernambuco, Rio de Janeiro, Mato Grosso e Minas Gerais. Atualmente, o país é o terceiro produtor mundial, o terceiro exportador e o quarto usuário de amianto. Enquanto a fibra vai desaparecendo dos bairros mais nobres das grandes cidades do centro-sul, segue perigosamente farta nas favelas e periferias, assim como nas casas de quilombolas, ribeirinhos, pequenos agricultores e indígenas.

Desde as últimas décadas do século 20, o Brasil vem colecionando mortes de trabalhadores, assim como de familiares que tiveram contato com as roupas sujas de amianto, por asbestoses e mesoteliomas. Há várias ações na Justiça buscando banir o amianto do país, assim como indenizações para as vítimas, mas a indústria exibe um lobby poderoso atuando no atual governo, no congresso e no judiciário. As mortes de centenas de brasileiros, a maioria deles operários, e a tragédia de saúde pública que se avizinha com a contaminação ambiental têm muito menos visibilidade do que o bom senso e a responsabilidade pública permitiriam, o que torna a persistência do amianto no Brasil uma caixa-preta ainda por ser totalmente desvendada.

Na Itália, as vítimas e familiares de vítimas levaram o bilionário suíço à Justiça e conseguiram condená-lo em duas instâncias. Em 13 de fevereiro de 2012, Stephan Schmidheiny foi condenado, pelo Tribunal de Turim, a 16 anos de prisão e ao pagamento de 100 milhões de euros. O crime foi descrito como “desastre ambiental doloso permanente e omissão dolosa de medidas de segurança para os operários”. Em 3 de junho de 2013, a sentença não só foi confirmada na corte de apelação, como foi ampliada de 16 para 18 anos de prisão. Tudo indicava um desfecho vitorioso para aqueles que perderam a própria vida ou a vida daqueles que amavam no julgamento de última instância, em Roma.

E então, na quarta-feira, 19 de novembro de 2014, o inominável aconteceu. Diante das vítimas de Casale Monferrato e de outras regiões italianas, a corte italiana anulou a condenação de Stephan Schmidheiny: não por inocência do réu, mas porque o crime teria prescrito. Foi dito no tribunal que era uma opção pelo Direito – e não pela Justiça. “Às vezes o Direito e a Justiça tomam direções opostas, mas os juízes não têm alternativa: eles devem seguir o Direito”, disse Francesco Iacoviello, procurador-geral da Corte de Cassação de Roma. Em comunicado, a Corte afirmou que “a acusação era de desastre ambiental e não de homicídio”. E, portanto, “não poderia ignorar a expiração do prazo de prescrição, que começou a contar a partir de 1986, quando a Eternit fechou suas fábricas na Itália”.

O choque durou apenas um segundo antes do primeiro grito, que logo virou um clamor. “Vergonha! Vergonha! Vergonha!”. Vítimas, familiares de vítimas e moradores da cidade contaminada pareciam feridos de morte. A cena era impressionante. Era para ser uma vitória histórica, que impactaria as vítimas do mundo e contribuiria para a aceleração do banimento do amianto de países como o Brasil. E de novo o poder econômico – e por consequência político – venceu. Para alguns, que observavam de fora, era claro que só poderia ser este o desfecho, já que essa sempre foi a lógica do mundo. Mas, nos últimos anos, os habitantes de Casale Monferrato e todos aqueles que perderam pais, mães, irmãs, filhos na brutal agonia provocada pelas doenças do amianto acreditaram que poderiam alterar o curso da História. “Não é possível que a demanda por justiça prescreva em alguns casos”, afirmou à imprensa Matteo Renzi, primeiro-ministro italiano. “Há feridas que não conhecem limites de tempo.” Em Casale Monterrato, os sinos de todas as igrejas tocaram ao mesmo tempo em sinal de luto. Uma das lideranças da luta das vítimas, Bruno Pesce, anunciou que, na semana em que o príncipe do amianto, Stephan Schmidheiny, venceu, dois moradores de Casale Monferrato morreram de mesotelioma. E morreram derrotados de todas as maneiras possíveis.

Aos 85 anos, Romana Blasotti Pavesi descobriu-se vencida. Sua batalha contra Stephan Schmidheiny não foi a mais importante de sua existência. A morte de quem se ama é sempre a maior batalha perdida numa vida humana. E Romana viu primeiro seu marido, Mario, depois sua irmã, Libera, em seguida sua prima, Anna, o próximo foi Giorgio, seu sobrinho, e por fim, embora nunca se saiba se acabou, Maria Rosa, a filha. Todos mortos por mesotelioma, o câncer do amianto. “Não é vingança”, repetiu Romana. “Nossa luta contra Stephan Schmidheiny é por tudo o que ele representa.” A velha mulher desvia o extraordinário azul de seus olhos para dentro, para o lugar das memórias, e diz: “Não tenho rancor contra o responsável por toda essa tragédia, mas se ele tivesse a possibilidade de acompanhar um doente que lhe fosse caro, do princípio ao fim, talvez ele pudesse entender alguma coisa”.

Foi com a morte de Maria Rosa, na bárbara subversão da lógica que obriga uma mãe a sepultar sua filha, que Romana perdeu a capacidade de chorar. Maria foi o nome que o pai escolheu, Rosa foi dado pela mãe. Maria Rosa nunca trabalhou com amianto. Nas lembranças de Romana, uma a sobressalta. Ela e Mario levando a então pequena Maria Rosa para passear nos arredores da fábrica onde o pai era um trabalhador orgulhoso. Redemoinhos de pó se levantavam do material descartado, era até bonito. E então Maria Rosa, já adulta e mãe de um filho, aparece na casa da mãe: “Estou com mesotelioma”. Ela tinha atribuído a dor nas costas a um tombo ocorrido quando esquiava. A radiografia revelou a verdade brutal. Seu último gesto, em agosto de 2004, foi vencer a fragilidade de seu corpo mastigado pelo câncer para abraçar o filho, Michele, com uma força que ninguém sabe de onde tirou.

Família amputada: depois do amianto, restaram Romana e o filho Ottavio REPRODUÇÃO/ARQUIVO DE FAMÍLIA

Família amputada: depois do amianto, restaram Romana e o filho Ottavio REPRODUÇÃO/ARQUIVO DE FAMÍLIA

Com metade da família amputada da vida pelo amianto, Romana dedicou as últimas décadas de sua existência à busca por justiça. Enquanto ela e seus companheiros de luta se organizavam, a maioria deles carregando atestados de óbitos de familiares e colegas de trabalho, Stephan Shmidheiny levava à frente uma das mais fascinantes e bem sucedidas operações de lavagem de biografia – ou de “greenwashing” – da história recente (leia artigo sobre isso aqui). Logo passou a ser chamado pela imprensa internacional de “filantropo” e, por paradoxal que pareça, de “ambientalista” e “ecologista”. Foi uma das estrelas da Rio-92, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, e criou, entre outras organizações, a Avina, uma fundação dedicada a programas ambientais e de redução da pobreza que atua também no Brasil. Entre as honrarias que lhe foram oferecidas, figuram o título de doutor “honoris causa” em letras humanas pela universidade americana de Yale e a Ordem do Cruzeiro do Sul, concedida a ele pelo então presidente brasileiro Fernando Henrique Cardoso.

No site da Avina, o homem levado à Justiça pelas vítimas do amianto como um criminoso socioambiental é apresentado como “pioneiro da luta contra o amianto”. A notícia da anulação de sua sentença pela corte italiana é publicada sob a chamada “desenvolvimento sustentável”. Em posicionamento com data deste mês de novembro, a Avina assim manifesta-se: “(….) contrária a que se continue empregando amianto em qualquer tipo de indústria. Por isso, as autoridades públicas de todas as nações devem normatizar e regulamentar a proibição da produção e uso do amianto, além de desenvolver ações de proteção da cidadania das vítimas por ele afetadas”.

Em sua defesa, o magnata suíço costuma afirmar que desconhecia o potencial destrutivo do amianto. Segundo sua versão, quando soube que a fibra era cancerígena, escolheu abandonar o setor. Em comunicado após a anulação da sentença, porta-vozes de Stephan Schmidheiny afirmaram: “A defesa espera que o Estado italiano proteja Stephen Schmidheiny de futuros processos criminais injustificados e encerre todos os processos correntes”.

Lideranças da luta pelo banimento do amianto, vítimas e familiares contestam a inocência do herdeiro da Eternit suíça apresentando documentos que comprovam que a relação entre o amianto e doenças como a asbestose é conhecida desde o início do século 20. Nos anos 60 do mesmo século já estava documentada a ligação entre a fibra e o mesotelioma. No Brasil, a fábrica da Eternit no município paulista de Osasco foi instalada no começo da década de 40, quando já se conhecia o potencial destrutivo do amianto. Stephan Schmidheiny chegou a fazer uma espécie de estágio na fábrica brasileira, um dos argumentos que usa ao afirmar que desconhecia os males causadas pela fibra. No processo judicial italiano ficou claro que, em 1976, diante das crescentes notícias sobre a relação entre asbesto e patologias fatais, a indústria promoveu uma conferência na Alemanha para discutir estratégias para enfrentar o problema sem deixar de produzir amianto, da qual Stephan Schmidheiny participou.

Segundo as vítimas, ainda que fosse possível aceitar que o desconhecimento sobre o caráter tóxico do amianto fosse de fato real, nada explica o grupo ter vendido a Eternit: uma transação comercial lucrativa que levou à continuidade das operações, ainda que nas mãos de outros donos, como acontece no Brasil e em outros países onde a fibra ainda não foi banida. Assinalam ainda a impossibilidade de justificar o abandono do passivo ambiental e humano consumado enquanto a fortuna da família Schmidheiny era construída. “Stephan Schmidheiny teve na Justiça uma vitória formal”, afirma a engenheira brasileira Fernanda Giannasi, auditora aposentada do Ministério do Trabalho no Brasil, e uma das lideranças mundiais na luta pelo banimento do amianto. “Para o resto de sua vida ele vai ter de conviver com essa marca. Não o deixaremos esquecer nem por um minuto o que ele fez contra a humanidade.”

A voz das vítimas tem muito menos ressonância, porém, do que a poderosa operação de marketing internacional investida na mudança da imagem daquele que consideram seu algoz. O financiamento de ações de caridade e programas socioambientais por Stephan Schmidheiny tem silenciado várias pessoas histórica e profissionalmente ligadas à defesa dos direitos humanos e do meio ambiente no mundo e também no Brasil. É parte da explicação de por que as vítimas do amianto, considerado uma das maiores tragédias de saúde pública da história da humanidade, travam suas batalhas sozinhas, isoladas de parcelas da sociedade que, pela lógica, deveriam lutar ao seu lado.

Romana, como uma personagem shakespeariana, viu-se jogada ao som e à fúria de forças poderosas. Ela, que iniciou a vida trabalhando como empregada doméstica na casa dos mais ricos, teve a ousadia de confrontar um bilionário homenageado por revistas como a Forbes e universidades como Yale. No tribunal, ao ver agigantar-se diante dela o espectro aniquilador da injustiça, Romana só conseguiu encontrar um adjetivo: “Abominável”. Depois, diria: “Estou cansada. Cansada de sofrer e de ver as pessoas morrerem ao meu redor. A decepção dói como eu jamais poderia imaginar.”

Os anos se encurtam diante dela. Mas Romana sabe que, enquanto há vida, a escrita da História ainda pode ser disputada. Deixou a corte amparada pelo único filho que lhe restou, Ottavio. E não chorou.

Em pé: Romana diante do que restou da fábrica de amianto da Eternit que contaminou a cidade e provocou centenas de mortes por mesotelioma JOÃO LUIZ GUIMARÃES/201

Em pé: Romana diante do que restou da fábrica de amianto da Eternit que contaminou a cidade e provocou centenas de mortes por mesotelioma JOÃO LUIZ GUIMARÃES/201

(Publicado no El País em 24/11/2014)

 

O longo dia seguinte

A escassez de água em São Paulo é o rei nu das eleições de 2014. No momento em que a maior cidade do país se transforma num cenário de distopia, o processo eleitoral chegou ao fim sem nenhum debate sério sobre o meio ambiente e o modelo de desenvolvimento para o Brasil

 

Chegamos ao dia seguinte sem que o futuro tenha sido de fato disputado. Se a eleição de 2014 foi a mais acirrada das últimas décadas, não só pelos candidatos, mas pelos eleitores, terminou sem debate. Não havia adversários nem nos estúdios de TV, onde os candidatos rolavam ora na lama, ora na retórica mais medíocre, nem nas redes sociais, elas que se tornaram as ruas realmente tomadas pela militância. Havia apenas inimigos a serem destruídos. As fraturas do país dizem respeito bem menos à pequena diferença entre a vencedora e o derrotado – e bem mais a uma fissura entre o país que vivemos e o país inventado. Não como uma fabulação, que é a matéria de qualquer vida. Não como uma utopia, que é onde se sonha chegar. Mas como um deslocamento perverso da realidade, uma cisão. Só essa desconexão pode explicar como a maior cidade do país transformava-se num cenário de distopia durante o primeiro e o segundo turnos eleitorais sem que em nenhum momento o meio ambiente e o modelo de desenvolvimento tenham entrado na pauta com a seriedade necessária. Chegamos ao dia seguinte como parte dos moradores de São Paulo: olhando para o céu à espera de que uma chuva venha nos salvar. E é com essa verdade profunda que temos de lidar.

Se a eleição pareceu interminável, o dia seguinte poderá ser muito mais longo. E seria, qualquer que fosse o vencedor. Com qualquer um deles, o que se disputou foi o poder, não um projeto de país. São Paulo talvez seja a expressão hiper-real desse momento, seja nossa escultura de Ron Mueck, o artista australiano que cria figuras humanas em dimensões superlativas. É como se o futuro tivesse chegado antes na cidade expandida, mais próximo da sombria ficção científica de Philip K. Dick do que da megalópole de comercial de TV onde os novos modelos de carros deslizam céleres por ruas sem trânsito.

Nesse cenário, Geraldo Alckmin, o governador do partido que há 20 anos está no poder foi reeleito no primeiro turno. Confrontados com a crise da água, Aécio Neves (PSDB) disse: “Vivemos a maior estiagem dos últimos 80 anos, e a meu ver o Estado fez algo absolutamente adequado, que foi propor bônus para aqueles que economizassem. Talvez o que tenha faltado foi uma parceria maior do governo federal”. E Dilma Rousseff (PT) rebateu: “Eu disse a ele (Alckmin): governador, pela minha experiência, acho que o senhor deveria fazer obras emergenciais. Porque tudo indica que essa seca se prolongará, e vocês não têm capacidade de abastecimento suficiente”.

Pode existir exibição maior de mediocridade do que essas respostas dadas por aquela que queria continuar presidente e por aquele que desejava se tornar presidente? É de chorar sentado em um dos reservatórios do sistema Cantareira, mas a maioria dos eleitores não pareceu se importar. Um sugere que basta chover ou dar bônus aos consumidores, a outra que obras emergenciais teriam solucionado todo o problema. Nenhum demonstrou nem capacidade nem vontade de fazer relações com o modelo de desenvolvimento, o esgotamento dos recursos, o desmatamento e o modo de vida.

Assim, enquanto São Paulo se transformava numa vitrine do cotidiano corroído pela degradação ambiental, o máximo de discussão que se conseguiu foi sobre de quem é a culpa. Isso num momento global em que as mudanças climáticas e suas consequências são consideradas por alguns dos pensadores mais relevantes do planeta, em todas as áreas, o tema de maior importância desse período, talvez de toda história humana. A cisão com a realidade é total. O monstro bafejava na sala, mas os presidenciáveis disputavam quem tinha dado o nó no rabo do gato.

Mesmo Marina Silva muito pouco tocou nesses temas ao disputar o primeiro turno, desassemelhando-se a si mesma. Ela, de quem se esperava que fizesse a diferença fazendo diferente, preferiu falar sobre a autonomia do Banco Central. No máximo escaparam, ela e todos, pela bandeira fácil do “desenvolvimento sustentável”, como se algum candidato fosse dizer que não quer desenvolvimento sustentável e como se este fosse um conceito já dado. Mas tocar nos temas cruciais do presente e do futuro, disputar a escolha do modelo de desenvolvimento em pontos concretos, com a seriedade que o momento histórico exige, não. O meio ambiente ficou fora da pauta dos presidenciáveis por escolha de conveniência, já que esse é o debate difícil, ao implicar mudanças no modo de vida dos eleitores, mas também porque a população têm escasso ou nenhum interesse no tema, apesar de a degradação ambiental roer o cotidiano. Essa é a fratura da negação.

A escassez de água na maior cidade brasileira é o rei nu destas eleições de 2014. E é por isso que vale a pena revisitar a reeleição de Geraldo Alckmin (PSDB). A seca acentua a nuvem de poluição que envolve a capital, o nariz sangra, a tosse se instala, o recorde de calor fora de época esgarça os nervos dentro de carros e ônibus que se movem lentamente num gigantesco labirinto de concreto. A crise tem produzido cenas como a de caminhões-pipa com escolta policial, prontos para dominar a população desesperada de um interior pintado como bucólico. A polícia que massacrou os manifestantes, agora se prepara para reprimir os sem-água. A imagem dos reservatórios remete ao repertório de geografias historicamente calcinadas. A vida torna-se pior, bem pior. E torna-se bem pior em ritmo acelerado.

Era de se esperar que a experiência cotidiana concreta tivesse um impacto nas urnas. Mas, neste cenário, o governador reelegeu-se ainda no primeiro turno, repetindo: “Não vai faltar água”. E a água já faltava. Se as pessoas votam de forma pragmática, votam pelo retorno imediato, votam naquele que acreditam que vai melhorar a vida delas, por que a crise hídrica teve pouco ou nenhum impacto na eleição? Seria porque a educação, a saúde, a segurança estiveram excelentes nesses 20 anos de governo do PSDB em São Paulo, o que compensaria a escassez de água? Não é o que a realidade mostra. A crise da água tampouco atingiu o desempenho de Aécio Neves, que no segundo turno conquistou 64% dos votos válidos no estado de São Paulo. Que cisão, então, ocorreu nesse momento? E o que ela diz? Ou como a escassez de água não colou na eleição, ou de que forma se colou?

Não tenho respostas, só hipóteses. Uma hipótese possível seria a mesma pela qual a candidatura de Marina Silva erodiu. Marina cometeu vários erros nessa campanha, alguns deles primários. Mas há um deles, que para muitos soa como erro, mas que não me parece que seja. Seu discurso era menos afirmativo do que os eleitores estão acostumados. Ela propunha a construção de soluções, mais do que propostas acabadas (ainda que tenha sido a única entre os três candidatos com chances no primeiro turno a apresentar um programa de governo). Propunha escuta.

Seu discurso foi classificado como “difuso” e “vago”. Às vezes, ser difuso e ser vago são as únicas verdades possíveis em determinado momento histórico, como mostraram as manifestações de junho de 2013. Mas logo essas características, também nela decodificadas como defeitos, foram transformadas em “fraqueza”. E, na sequência, em identidade. Assim, a mulher que nasceu num seringal do Acre, trabalhou desde criança em condições brutais, passou fome, alfabetizou-se aos 16 anos, foi empregada doméstica, sobreviveu a três hepatites, cinco malárias e uma leishmaniose, além de sofrer contaminação por mercúrio, e ainda assim tornou-se professora com pós-graduação, senadora, ministra, uma das maiores lideranças ambientais do planeta e por fim uma candidata à presidência com chances de vencer, foi considerada “fraca”. Mais uma fratura entre imagem e realidade.

As afirmações peremptórias, com pontos de exclamação, assim como as certezas, são mercadorias valorizadas. Em geral ordinárias, mas valorizadas mesmo assim. Num momento em que a falta de controle parece se expressar em toda a sua assustadora grandiosidade, como na escassez de água em São Paulo, assim como na corrosão das condições de vida pela degradação ambiental, talvez as certezas, mesmo que falsas e irresponsáveis, tornem-se ainda mais valorizadas. Talvez a virtude encontrada em Alckmin por parte dos eleitores seja a da negação da realidade: “Tudo sob controle. Não vai faltar água”.

Uma garantia expressada sem hesitação ou titubeio, em voz firme, quando a água se esvai das torneiras e a vida converte-se literalmente em cinza, uma garantia falsa, parece ainda soar como uma garantia. E logo é decodificada como força, como a expressão de alguém que sabe liderar e sabe o que fazer e, principalmente, nos libera de ter de fazer algo. Sua vantagem é manter viva a ilusão mais cara, a ilusão do controle. Esta seria uma cisão para encobrir a fratura maior, a de que os responsáveis não têm responsabilidade. E a de que cada um, que também é responsável pela destruição ambiental, tampouco quer ser responsável, porque isso implicaria mudar de posição e alterar radicalmente seu modo de vida.

Ao esforço de mudar o modo de vida poucos aderem, porque dá trabalho e provoca perdas, exige mediação e concessão. Para muitos, já parece um sacrifício excessivo diminuir o tempo do banho, imagina alterar radicalmente o cotidiano. Assim, vale mais a pena escolher não a ficção, mas a mentira – e ficção e mentira jamais podem ser confundidas –, porque dessa maneira se torna possível manter o máximo de tempo possível uma rotina que não apenas é insustentável a longo prazo, como já não se sustenta agora. E também a fantasia sobre si mesmo como um bom cidadão.

Soa mais conveniente, portanto, acreditar nessa versão mágica, a de que não vai faltar água, quando já está faltando água, promovendo uma cisão com a realidade. De novo, portanto, é um voto pragmático, voltado ao bem-estar imediato de não ter de se mover. De não precisar fazer nada ou muito pouco a respeito. Voltado a algo talvez mais caro do que água, a certeza de que há sempre uma saída que não exija comprometimento e mudança real. Uma saída em que apenas os outros façam o sacrifício, como sempre foi no caso do racionamento muito mais antigo e persistente na casa dos pobres.

No fim da semana passada, foi divulgada uma gravação em que Dilma Pena, a presidente da Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo), dizia numa reunião interna: “A Sabesp tem estado muito pouco na mídia, acho que é um erro. Nós tínhamos que estar mais na mídia, sabe, (…) nas rádios comunitárias, (…) todos falando, com um tema repetido, um monopólio: economia de água. ‘Cidadão, economize água’. Isso que tinha que estar reiteradamente na mídia, mas nós temos de seguir orientação, nós temos superiores, e a orientação não tem sido essa. Mas é um erro”. O diretor metropolitano da Sabesp, Paulo Massato, fez o seguinte comentário na mesma reunião: “Se repetir o que aconteceu esse ano, do final de 2013, de outubro pra cá, se voltar a repetir em 2014, confesso que eu não sei o que fazer. Essa é uma agonia, uma preocupação. Alguém brincou aqui, mas é uma brincadeira séria. Vamos dar férias para oito milhões e oitocentos mil habitantes e falar: ‘saiam de São Paulo’. Porque aqui não tem água, não vai ter água pra banho, pra limpeza da casa, quem puder compra garrafa, água mineral. Quem não puder, vai tomar banho na casa da mãe lá em Santos, lá em Ubatuba, Águas de São Pedro, sei lá, aqui não vai ter”.

É gravíssimo que a presidente da Sabesp tenha sido impedida, por qualquer motivo e mais ainda por motivos eleitoreiros, de alertar a população sobre a enormidade do problema. É criminoso e deve haver apuração e responsabilização de todos os envolvidos. Mas precisamos ter a honestidade de assumir que dificilmente, em 5 de outubro, data da votação do primeiro turno, algum cidadão pudesse alegar desconhecer a situação e a necessidade de economizar água durante a prolongada seca que enfrenta São Paulo.

Geraldo Alckmin deu a mentira que a população queria ouvir porque conhece bem seus eleitores. Parodiando o título do livro do escritor Ferrez, não há inocentes em São Paulo. A reeleição de Alckmin talvez seja um daqueles fenômenos sustentados pela expectativa de que, se mentirmos todos, talvez vire verdade. Em parte, o governador pode não ter vencido apesar da crise da água, mas também por causa dela.

A crise da água na maior cidade brasileira, em plena eleição, é fascinante pelo que diz daquilo que não é dito. Se é um fato que faltou planejamento ao governo estadual tucano, que aí está há 20 anos e agora por mais quatro, esta é só a ponta explícita, a mais fácil de enxergar (ainda que deliberadamente a maioria dos eleitores a tenha ignorado nas urnas). Mas, ao colocar a parte no lugar do todo, revela-se essa crença arraigada, e por estes dias também desesperada, de acreditar que teria bastado algumas obras para escapar do que se tornou a vida cotidiana em São Paulo, na qual a água é apenas a ausência mais gritante. É o dogma, quase religioso, de que o homem pode controlar a catástrofe ambiental que provocou.

De novo, a ilusão do controle, mesmo quando a realidade aniquila os dias, mesmo quando no fundo cada um sabe que, fora e dentro, algo de fundamental da vida de cada um se esvai. Quanto mais se sente que o controle escapa, no miúdo e no macro do cotidiano, maior é a recusa em enxergar. O desastre já passou da porta de casa, mas ainda se crê que basta chover para tudo voltar a ser como antes, que já era ruim, mas menos. Ou que se o não planejado for feito, ainda que tarde, o problema de São Paulo está resolvido. Cinde-se de novo – e talvez uma parte significativa da população sequer perceba que a escassez de água tem causas ambientais profundas. Como se as questões do meio ambiente, que aqui estão, estivessem lá, no mundo abstrato dos outros.

Dilma Rousseff foi reeleita. Sua política ambiental, se é que pode se chamar assim, foi um retrocesso. A visão sobre a Amazônia do governo se notabilizou pela semelhança com o projeto da ditadura militar para a região. Em sua gestão, obras como a hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, foram impostas aos povos da floresta sem consulta prévia, autoritarismo que levou o Brasil à Comissão Interamericana de Diretos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA). Seu próximo alvo é barrar o belo rio Tapajós, onde encontra a resistência dos Munduruku e de comunidades agroextrativistas, como a de Montanha e Mangabal. Pressionado pelo processo eleitoral, o governo disse que, desta vez, cumprirá a lei e ouvirá os índios, mas não escutará os ribeirinhos.

A presidente também arrancou um naco do Parque Nacional da Amazônia para facilitar o caminho das hidrelétricas planejadas para o Tapajós. Mas só criou unidades de conservação na Amazônia a 12 dias do segundo turno, na tentativa de minimizar a repercussão de seu péssimo desempenho no setor. O desmatamento na Amazônia voltou a crescer: 191% no bimestre de agosto e setembro deste ano, comparado à 2013. Segundo o Imazon (Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia), porque o governo adiou a divulgação dos dados oficiais para depois das eleições. Dilma foi também a presidente que menos demarcou terras indígenas desde a redemocratização do país.

Pessoas respeitáveis defenderam nestas eleições que o susto de quase perder o poder fará Dilma Rousseff e o PT retomarem algumas lutas históricas, também no horizonte socioambiental. Veremos. Em seu discurso da vitória, neste domingo (26/10), Dilma falou em “diálogo”. E em “pontes”. Num pronunciamento bem pensado, em que a presidente reeleita podia colar tudo, já que o cargo estava garantido por mais quatro anos, vale a pena prestar atenção nas ausências. Dilma Rousseff não mencionou nem “índios” – e nem “meio ambiente”.

(Publicado no El País em 27/10/2014)

O vírus letal da xenofobia

O primeiro teste no Brasil deu negativo para o ebola, mas positivo para o racismo

 

Uma epidemia, como Albert Camus sabia tão bem, revela toda a doença de uma sociedade. A doença que esteve sempre lá, respirando nas sombras (ou nem tão nas sombras assim), manifesta sua face horrenda. Foi assim no Brasil na semana passada. Era uma suspeita de ebola, fato suficiente, pela letalidade do vírus, para exigir o máximo de seriedade das autoridades de saúde, como aconteceu. Descobrimos, porém, a deformação causada por um vírus que nos consome há muito mais tempo, o da xenofobia. E, como o outro, o “estrangeiro”, a “ameaça”, era africano da Guiné, exacerbada por uma herança escravocrata jamais superada. O racismo no Brasil não é passado, mas vida cotidiana conjugada no presente. A peste não está fora, mas dentro de nós.

Foi ela, a peste dentro de nós, que levou à violação dos direitos mais básicos do homem sobre o qual pesava uma suspeita de ebola. Contrariando a lei e a ética, seu nome foi exposto. Seu rosto foi exposto. O documento em que pedia refúgio foi exposto. Ele não foi tratado como um homem, mas como o rato que traz a peste para essa Oran chamada Brasil. Deste crime, parte da imprensa, se tiver vergonha, se envergonhará.

Não sei se há desamparo maior do que alcançar a fronteira de um país distante, nessa solidão abissal. E pedir refúgio, essa palavra-conceito tão nobre, ao mesmo tempo tão delicada. E então se sentir mal, e cada um há de saber como a fragilidade da carne nos escava. Corrói mesmo aqueles que têm o melhor plano de saúde num país desigual. Ele, desabitado da língua, era desterrado também do corpo. Para alcançar o que viveu o homem desconhecido, porque o que se revelou dele não é ele, mas nós, é preciso vê-lo como um homem, não como um rato que carrega um vírus. Para alcançá-lo é preciso vestir o homem. Mas só um humano pode vestir um humano.

E logo ouviu-se o clamor. Não é hora de fechar as fronteiras?, cobrou-se das autoridades. Que os ratos fiquem do lado de fora, onde sempre estiveram. Que os ratos apodreçam e morram. Para os ratos não há solidariedade nem compaixão. Parece que nada se aprendeu com a Aids, com aquele momento de vergonha eterna em que os gays foram escolhidos como culpados, o preconceito mascarado como necessária medida sanitária.

E quem são os ratos, segundo parte dos brasileiros? Há sempre muitos, demais, nas redes sociais, dispostos a despejar suas vísceras em praça pública. No Facebook, desde que a suspeita foi divulgada, comprovou-se que uma das palavras mais associadas ao ebola era “preto”. “Ebola é coisa de preto”, desmascarou-se um no Twitter. “Alguém me diz por que esses pretos da África têm que vir para o Brasil com essa desgraça de bactéria (sic) de ebola”, vomitou outro. “Graças ao ebola, agora eu taco fogo em qualquer preto que passa aqui na frente”, defecou um terceiro. Acreditam falar, nem percebem que guincham.

“Descrever uma epidemia é uma forma magistral de revelar as diversas formas de totalitarismo que maculam uma sociedade. Neste quesito, os brasileiros não economizaram. A divulgação, por meios de comunicação que atingem dezenas de milhões de pessoas, da foto de um homem negro, vindo da África, como suspeito de ebola, foi a apoteose do fantasma do estrangeiro como portador da doença”, afirmou a esta coluna Deisy Ventura, professora de direito internacional da Universidade de São Paulo, pesquisadora das relações entre direito e saúde, autora do livro Direito e Saúde Global – O caso da pandemia de gripe A (H1N1). “Veja que este fantasma é mobilizado em relação aos pobres, sobretudo negros, nunca em relação aos estrangeiros ricos e brancos. O escravagismo, terrível doença da sociedade brasileira, associa-se ao desejo conjuntural de dizer: este governo não deveria ter deixado essas pessoas entrarem. É uma espécie de lamento: tanto se esforçaram as elites para branquear este país, e agora querem preteá-lo?”

A África desponta, de novo e sempre, como o grande outro. Todo um continente povoado por nuances e diversidades reduzido à homogeneidade da ignorância – a um fora. Como disse um imigrante de Burkina Faso à repórter Fabiana Cambricoli, do jornal O Estado de S. Paulo: “Os brasileiros não sabem que Burkina Faso é longe dos países que têm ebola. Acham que é tudo a mesma coisa porque somos negros”. Ele e dezenas de imigrantes de diversos países da África estão sendo hostilizados e expulsos de lugares públicos na cidade de Cascavel, no Paraná, onde o primeiro caso suspeito foi identificado. Tornaram-se “os caras com ebola”, apontados na rua “como os negros que trouxeram o vírus para o Brasil”.

O ebola não parece ser um problema quando está na África, contido entre fronteiras. Lá é destino. O ebola só é problema, como escreveu o pesquisador francês Bruno Canard, porque o vírus saiu do lugar em que o Ocidente gostaria que ele ficasse. “A militarização da resposta ao ebola, que com a anuência do Conselho de Segurança das Nações Unidas, em setembro último, passou da Organização Mundial da Saúde a uma Missão da ONU, revela que a grande preocupação da comunidade internacional não é a erradicação da doença, mas a sua contenção geográfica”, reforça Deisy Ventura.

O homem a quem se acusou de trazer a doença para o Brasil, para o lugar onde o vírus não pode estar, sempre foi um sem nome, um ninguém, um não ser. Só é nomeado, ganha rosto, para mais uma vez ser violado. Para que continue a não ser enxergado, porque nele só se vê a ameaça, que é mais uma forma de não reconhecê-lo como humano. Ele, o rato.

A história do liberiano que morreu de ebola nos Estados Unidos expõe o labirinto. Ele tinha 18 anos quando a guerra civil começou a matança que só terminaria em 250 mil cadáveres. No campo de refugiados na Costa de Marfim conheceu uma mulher e teve com ela um filho. Ela conseguiu migrar para os Estados Unidos com a criança de três anos, ele seguiu para um campo de refugiados em Gana. Só em 2013 conseguiu voltar ao seu país devastado. Em setembro, finalmente, obteve o visto para entrar nos Estados Unidos, para casar com a mãe de seu filho e ver o menino, agora quase um adulto, se formar no ensino médio. Antes de partir, um gesto de solidariedade: ajudou a levar uma vizinha com ebola para o hospital. Sem saber, carregou com ele o vírus da doença para além das fronteiras. O labirinto era sem saída, o futuro só existia como passado, e ele morreu nos Estados Unidos. O filho do qual ficou exilado por 16 anos não pôde se despedir do pai. O legado da saudade do pai era a marca de um flagelo deixado no filho pelo olhar do Ocidente. Para os mesmos de sempre, o exílio ultrapassa a vida.

Para o homem que alcançou o Brasil em busca de refúgio e teve sua dignidade violada na exposição de seu nome, rosto e documentos, ainda existe a espera de um segundo teste para o vírus do ebola. Não importa se der negativo ou positivo, devemos desculpas. Devemos reparação, ainda que saibamos que a reparação total é uma impossibilidade, e que essa marca pública já o assinala. Não é uma oportunidade para ele, é para nós.

É preciso reconhecer o rato que respira em nós para termos alguma chance de nos tornarmos mais parecidos com um humano.

(Publicado no El País em 13/10/2014)

 

Denunciados pela linguagem

Fabiane era inocente. Nós, ao exaltarmos a sua inocência como principal razão para que ela não fosse assassinada, somos culpados

 

O linchamento de Fabiane Maria de Jesus nos denuncia pela palavra. Há um horror, o linchamento. E há o horror por trás do horror, que é a exacerbação da inocência da vítima. É preciso que este também nos espante, porque ainda mais entranhado, suas unhas cravadas fundo numa forma de pensar como indivíduos e de funcionar como sociedade. Nem todos são capazes de pegar um pedaço de pau para bater na cabeça de uma mulher até a morte por considerá-la culpada de um crime, mas é grande o número daqueles que, ao contarem o caso na última semana, enfatizaram: “Ela era inocente”. Não como uma informação a mais no horror, mas como a mais importante. Essa também foi a frase escolhida para ilustrar as camisetas dos que protestavam contra a sua morte: “A dor da inocência”. Mas talvez seja na exaltação da inocência que nossa violência se revele em sua face mais odiosa. O que pensamos ser luz, prova de nossa boa índole, é feito da matéria de nossas trevas mais íntimas. É a exacerbação da inocência que mostra o quanto nós – mesmo os que não lincham pessoas na rua – somos perigosos.

E se ela fosse culpada?, como provoca o título da matéria de Marina Rossi, aqui no El País Brasil. E se ela fosse uma mulher que praticasse magia negra com crianças? Seu assassinato por um bando de pessoas na rua estaria justificado? Então alguém poderia agarrá-la, outro arrastá-la e um terceiro passar com a roda da bicicleta sobre a sua cabeça? É isso o que estamos dizendo quando nos espantamos mais com a inocência de Fabiane do que com o seu assassinato?

O linchamento de Fabiane produziu uma narrativa fragmentada, que revela mais sobre os autores do discurso do que sobre a vítima. O suspeito V. B., eletricista, 48 anos, justificou-se, ao ser preso: teria golpeado Fabiane com um pedaço de madeira porque achou que o boato era “verdade”. O suspeito L.L., ajudante de pedreiro, 19 anos, que teria passado com a bicicleta sobre a cabeça de Fabiane, explicou: “Diante da gritaria das pessoas que tinham reconhecido a mulher, não tive dúvidas de participar do tumulto”. O suspeito C.J., pintor de paredes, 22 anos, teria puxado Fabiane pelos cabelos para se certificar de que era ela mesma, antes de ajudar a matá-la.

Em nenhum momento apareceu o choque por ter espancado uma pessoa com um pedaço de pau, passado sobre a cabeça de alguém com a bicicleta, agarrado uma mulher pelos cabelos. Passada a explosão da hora, a questão que motivou até um pedido de desculpas à família, por parte de um dos suspeitos, era o erro. Mas o erro não seria assassinar – e sim assassinar a pessoa errada. Se havia razões para o arrependimento era a inocência de Fabiane – não o ato de matar. “Não é ela, não é ela”, teria avisado alguém em um dos vídeos de sua morte. Não arrebente porque não é ela. E se fosse?

Se a exaltação da inocência estivesse restrita aos assassinos – e a quem assistiu ao assassinato sem nada fazer para impedi-lo – seria mais fácil. Mas foi a inocência de Fabiane que motivou, nos mais variados espaços, perguntas retóricas como: “onde estamos?” ou “que país é este?”. Entre os tantos comentários sobre o caso, lamentando a morte de Fabiane, talvez o do governador do estado de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), seja o mais revelador.

Fabiane foi linchada no sábado (3/5), no bairro de Morrinhos, na periferia do Guarujá, no litoral paulista, e morreu, no hospital, na segunda-feira (5/5). Tinha 33 anos. Na quarta-feira (7/5), o governador, que pretende tentar a reeleição, foi ao Guarujá para, entre outros compromissos, reinaugurar a maternidade do Hospital Santo Amaro – o mesmo onde, segundo o jornal O Estado de S. Paulo, Fabiane teve de esperar um dia para conseguir vaga na Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Durante a cerimônia, Alckmin manifestou-se sobre a morte de Fabiane, nos seguintes termos: “É inadmissível um ato de barbaridade como esse, tirando a vida de uma pessoa que não tinha nada a ver com a desconfiança da população, até porque tudo não passou de um boato”.

Uma boa questão de interpretação para a prova de língua portuguesa do próximo vestibular. O que, exatamente, o governador está dizendo ao povo do estado que governa? Qual é, para ele, a questão central no linchamento? O que é inadmissível, segundo Alckmin? Linchar uma pessoa, qualquer pessoa, ou linchar uma pessoa inocente?

A exaltação da inocência de Fabiane revela a não inocência da sociedade brasileira na série de linchamentos que vem atravessando o país. As palavras revelam o que também alimenta o espancamento e a morte de pessoas por cidadãos nas ruas. É no discurso, às vezes subliminar, às vezes explícito, que é reeditado cotidianamente o pacto histórico de que há uma categoria de brasileiros que podem ser mortos – ou que ao menos seu assassinato seria justificável. É esta mesma lógica que tolera – quando não deseja – a tortura e a morte de presos nas delegacias e nos presídios do Brasil. Encarar os linchamentos como algo que só pertence ao bárbaro, que é sempre o outro, é ocultar a nossa responsabilidade, a de cada um, com uma máscara de inocência. Fabiane era inocente. Nós, ao exaltarmos a sua inocência como principal razão para que ela não fosse assassinada, somos culpados.

A barbárie não deveria nos surpreender, como se fosse nova entre nós. A sociedade brasileira historicamente a tolera, quando não a estimula. Como já foi dito mais de uma vez, também aqui, ela está nas raízes da formação do Brasil. A barbárie chegou junto com os que se anunciavam como civilizados diante dos povos indígenas que aqui estavam – os bárbaros. E foram também os chamados civilizados que promoveram uma força de trabalho escravo, alimentada por negros trazidos da África (e também por índios). Nem a escravidão nem o extermínio indígena foram superados no Brasil – e as marcas de uma e a reedição do outro fazem parte do cotidiano do país, hoje.

Fingir que a barbárie é surpreendente não vai nos ajudar a combatê-la. No Brasil atual, indígenas, ribeirinhos e quilombolas têm sido expulsos de suas terras por atos do próprio governo federal – e muitos deles têm sido mortos por pistoleiros, a mando de fazendeiros. É assustador o número de moradores de rua assassinados no Brasil nos últimos tempos, assim como o de crimes por homofobia. A retirada de pessoas de suas casas para a construção de estádios da Copa do Mundo é conhecida – ou deveria ser – por todos. A violência nos presídios e as execuções nas favelas e periferias tornaram-se uma banalidade só interrompida por espasmos. Mesmo os linchamentos estão longe de nos ser estranhos, o que em nada diminui o seu horror e a necessidade de combatê-los.

Se há algo de novo é talvez a forma como as palavras encarnaram para tornar Fabiane uma pessoa para o linchamento. A internet não criou – nem piorou – o humano. Ela apenas o revelou como nunca antes. Ela deu-nos a conhecer. Antes não sabíamos o que pensava o vizinho ou o caixa do banco ou o sujeito que nos cumprimentava na padaria. Agora, ele grita na internet – e, mais do que grita, exibe todo o seu inferno. Passeia o time completo, com titulares e reservas, de seus ódios e preconceitos. Na internet, o humano perdeu o pudor de suas vísceras. Ao contrário, em vez de ocultá-las, passou a exibi-las como um troféu de autenticidade.

É nesse contexto que o dono do perfil no Facebook “Guarujá Alerta” postou, em 25 de abril, a seguinte “notícia” – que jamais poderia ser chamada de notícia porque sequer foi apurada antes de ser publicada: “Boatos rolam na região da praia do Pernambuco, Maré Mansa, Vila Rã e Areião, que uma mulher está raptando crianças para realizar magia negra… Se é boato ou não devemos ficar alertas”. Nenhum pudor de postar um boato. Zero pudor. Ao contrário, a internet nos mostra que há um orgulho no despudor, no “assumir” a falta de princípios, confundindo-a com o que é apresentado como “coragem de denunciar”.

Alguns dos comentários de homens e mulheres, postados na sequência, mostra a disseminação do ódio, travestida como defesa do bem: “Mata essa filha da puta. Quem achar, sem dó”/ “Se vir pro Morrinhos vai tomar só rajada essa cachorra”/ “Vamos fazer uma magia de revolta com ela, ‘botando fogo nela’”. Logo surgiu um retrato falado, que seria descrito pela imprensa como o de uma mulher “negra e gorda”, em seguida a foto de uma loira.

Dias depois da publicação do boato, Fabiane, com pouca ou nenhuma semelhança com qualquer uma das imagens, foi linchada. Inclusive crianças participaram do seu espancamento. O retrato falado tinha sido feito em 2012 pela polícia carioca e referia-se a uma suspeita de ter sequestrado uma criança na zona norte do Rio. Nenhum menino ou menina desaparecera na região do Guarujá nos últimos tempos, o crime não existia. Mas as “bruxas” começaram a ser vistas em toda parte – e também em outras regiões do país, na qual o boato foi reproduzido. Fabiane foi a única morta, mas várias mulheres podem ter corrido o risco de ser assassinadas. De novo, as mulheres e a bruxaria, como nas fogueiras da Inquisição.

(Só um parêntese. Vale pensar sobre o peso da palavra escrita nessa tragédia. Sobre o quanto a palavra escrita, agora na internet, é decodificada ainda por muitos, em especial por aqueles que ao longo da história tão pouco tiveram acesso a ela, como “verdade”. A frase “está no jornal” ou “li no jornal”, usada para assegurar a veracidade de algo diante de outros, é agora também “está (ou li) na internet”. É o que mostra a quantidade de spams com boatos os mais estapafúrdios que atravancam todos os dias as caixas de e-mail e também as redes sociais, porque muitos os replicam, sem apurar a fonte ou sequer duvidar, para alertar seu circuito de conhecidos, familiares e amigos sobre ameaças terríveis. Falta muito para que a leitura crítica, tanto da imprensa tradicional quanto da mídia alternativa, como de qualquer outra produção narrativa, se estabeleça para a maioria, tão carente de educação no país.)

Quando Fabiane foi agarrada naquele sábado, carregava um livro de capa preta. Quem passava por ela, viu nele uma obra de magia negra. Quando ela ofereceu uma fruta a uma criança na rua, o gesto foi interpretado como uma tentativa de sedução. Foi só alguém gritar “é ela, é ela”, para o linchamento começar. É importante compreender como Fabiane tornou-se bruxa. Mas também é fundamental entender como ela deixou de ser bruxa.

O feitiço ao contrário é revelador. O livro de magia negra era uma Bíblia. A fruta oferecida era um gesto de generosidade. Fabiane era branca, era religiosa, era mãe de duas filhas, era dona de casa e gostava de crianças. Sua única “mácula”, para o senso comum, seria um diagnóstico de “transtorno bipolar”, relacionado nos relatos “ao parto da primeira filha”. Mas, mesmo neste caso, ela foi poupada do preconceito costumeiro, associado às doenças mentais, por depoimentos como este, de uma amiga: “(Nas crises) ela saía abraçando as pessoas, falando que amava todo mundo, nunca fez mal a ninguém”.

Fabiane, portanto, não só era inocente, como era a imagem da inocência. Era o retrato idealizado do feminino ligado à maternidade. Não tenho como aferir o quanto essa imagem, desfeito o feitiço, colaborou para a comoção do país. Mas suspeito que bastante. E isso também revela o quanto nós não somos inocentes.

E se Fabiane fosse “negra e gorda”, como descrita no retrato falado? E se Fabiane exibisse piercings e tatuagens pelo corpo? E se Fabiane fosse lésbica? E se Fabiane fosse agressiva? E se Fabiane fosse do candomblé ou do batuque ou de outra religião afro-brasileira, as quais os pastores evangélicos neopentecostais tanto relacionam nos templos e nos programas da TV com satanismo, uma atitude criminosa pouco ou nada combatida? E se Fabiane fosse bruxa? E se Fabiane fosse o oposto da idealização feminina? Será que tantos hoje chorariam por ela?

E Fabiane seria, por isso, menos inocente?

Talvez, se sua imagem não correspondesse ao estereótipo da mãe de família, ouviríamos coisas como: “Também, com aquela aparência, era fácil confundi-la”. Ou: “Essa história está mal contada, boa coisa ela não era”. Talvez então o feitiço jamais fosse desfeito e Fabiane continuasse na lista não escrita das pessoas “lincháveis”. É possível? Ou estou exagerando? Gostaria de estar exagerando, mas me arrisco a suspeitar que não.

Vale a pena prestar atenção ao comentário de L., ao ser preso e pedir desculpas à família de Fabiane. “Peço desculpas à família, estou muito arrependido. Desculpa mesmo. A gente vê a nossa mãe em casa, nossa tia, e imagina que poderia ter sido com elas”. De repente, o algoz percebe que sua vítima não é mais uma “bruxa”, uma diferente, uma outra, mas sim semelhante às mulheres da sua família que ocupam um lugar materno. E, como filho, sobrinho, dessas mulheres, semelhante a ele mesmo. Pela lógica imediata, se a conversão em bruxa pela turba enlouquecida, da qual ele fez parte, aconteceu com Fabiane, por que não aconteceria com sua mãe, com sua tia? Com ele, com cada um de nós? Será também um medo novo que faz aumentar a comoção por Fabiane? E agora, que a barreira dos “lincháveis” foi rompida e uma mãe de família, uma devota, morreu a pauladas?

Um dos suspeitos disse à polícia que dois outros autores do linchamento de Fabiane foram executados pelo tráfico. A informação foi publicada na imprensa. Se queremos de fato enfrentar a barbárie, precisamos saber se essa afirmação é verídica. E, se for verídica, precisamos exigir que os assassinos dos assassinos sejam investigados, julgados e punidos, no rito da lei. Do contrário, somos só bárbaros que acreditam que linchadores devem ser mortos, no olho por olho, dente por dente. Como aqueles bárbaros que salivam em suas casas quando assistem à notícia de que estupradores foram violados na cadeia, onde estão sob proteção do Estado.

Chorar pelos inocentes é fácil. O que nos define como indivíduos e como sociedade é a nossa capacidade de exigir dignidade e legalidade no tratamento dos culpados. O compromisso com o processo civilizatório é árduo e exige o melhor de nós: respeitar a vida dos assassinos. Fora isso, é só demagogia.

Há vários apelos circulando na internet sobre as palavras “justiceiro” e “justiçamento”. Quero trazer a reflexão para cá, porque já descobrimos há muito – e também agora – que as palavras são poderosas. E andam. E encarnam. E revelam. E autorizam. Linchamento não é “justiçamento”. É crime. Linchador não é “justiceiro”. É criminoso. Seja uma pessoa ou uma turba, quem mata é assassino. Quem lincha e mata não quer justiça, quer vingança – às vezes sem nem mesmo saber do quê. Se queremos superar a barbárie, talvez seja necessário jamais confundir “justiça” e “vingança” – também nas palavras.

(Publicado no El País em 12/05/2014)

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